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Sem nome, sem lei

OESP, Espaco Aberto, p.A2
Autor: ROSENFIELD, Denis Lerrer
07 de Mar de 2005

Sem nome, sem lei
Denis Lerrer Rosenfield
"X" nasceu no sul do Pará, nessa terra sem lei onde a irmã Dorothy foi morta. "X" não tem nome, pois seu pai foi assassinado quando vinha de um assentamento e já se encontrava em suas terras. Sua mãe, abalada, não consegue dar-lhe um nome, pois essa seria uma função paterna. Cláudio era o nome do pai, que, para sempre, será um desconhecido para essa criança que teve a desgraça de nascer num lugar onde o Estado inexiste. O nome do pai não diz nada para quase todos os brasileiros, pois se tratava de um pequeno agricultor que vivia, como tantos outros, a duras penas. Sua mulher e seus seis filhos se encontram agora abandonados, devendo enfrentar um futuro de duras lutas para as quais não estão preparados. Menores, seu destino é totalmente incerto.
Cláudio é um nome brasileiro, como todos os Josés e Joões que vivem, muitas vezes, no limiar da sobrevivência. Seus dias foram terminados abruptamente, sem que os seus assassinos tenham sido presos. Suspeitas e indícios, segundo apurado pelo Estadão (1.o/3, A8), não faltam, embora a vontade de investigar não se faça presente. Onde não há Estado, não há segurança. Toda pessoa fica a cargo de si mesma, na defesa de sua própria vida ou na impossibilidade de fazê-lo. Qualquer investigação fica subordinada a meras correlações de força. O cidadão, inexistente, fica exposto à violência.
Dorothy é um nome americano. Naturalizada brasileira, por identificação com nosso país, o seu assassinato foi rapidamente esclarecido. Nem os mais otimistas poderiam suspeitar de tamanha eficiência. Numa velocidade de fazer inveja às melhores polícias do mundo, tudo parece estar explicado. Num lampejar, o Estado brasileiro se fez presente com força-tarefa, Polícia Federal, Exército, ministros, senadores, Incra e tantas outras instâncias e representantes, numa clara demonstração de que, quando o Estado quer, determinadas ações produzem resultados. A segurança é uma incumbência propriamente estatal. Num passe de mágica, um assassinato, como tantos outros não esclarecidos dessa região e de outras de nosso país, foi claramente elucidado, não deixando dúvidas quanto à eficácia da ação estatal. A ONU, por sua vez, acompanhará de perto o Poder Judiciário, mostrando que se trata de uma questão internacional. Organizações de direitos humanos se fazem igualmente presentes. O secretário Nacional dos Direitos humanos tor na esse fato brutal uma questão pretensamente universal. O embaixador americano emite nota pedindo apurações do ocorrido e o FBI participa das investigações. Afinal, na melhor tradição dos EUA, Dorothy continua sendo uma americana.
A Igreja, via Comissão Pastoral da Terra e MST, trata-a como uma mártir. Sua trajetória já é comparada à de Chico Mendes. Depois do assassinato de policiais pernambucanos, a construção da imagem de uma mártir se ajusta perfeitamente a movimentos de tipo revolucionário, que querem fazer esquecer o que aconteceu com aqueles pobres policiais que tiveram a infelicidade de não ter nascido americanos e não ser honrados pelo Estado que deveria respeitá-los. O mártir tem um inegável apelo religioso e político, fazendo com que um corpo caído se torne um símbolo - um símbolo que pode, inclusive, fazer apagar outros crimes e assassinatos. Há aqui uma clara manipulação política.
Cláudio não era americano. Era um brasileiro comum como tantos outros que habitam o nosso país. Infelizmente, não contou com a ajuda do embaixador americano, do FBI, da ONU, das organizações e dos representantes dos direitos humanos, da Polícia Federal, do Exército, enfim, do Estado brasileiro em suas instâncias federal e estadual. Nenhum ministro fez nenhuma manifestação grandiloqüente. Nem políticos se utilizaram desse episódio para captar votos. Anônimos não dão mídia. Sua viúva se retirou, depois de parir esse filho sem nome, para a casa de um parente. Suas declarações expressam uma dor enorme e, para além de sua situação de desamparo, ela clama por justiça. Infelizmente, ela é viúva de uma pessoa comum, um brasileiro como tantos outros. O Estado nem se deu ao trabalho de encenar uma investigação, uma busca dos culpados. A Polícia Civil se diz assoberbada pelo trabalho de investigação da morte da irmã Dorothy. Uma morte vale mais do que a outra. O Estado omite-se na educação das crianças que ficaram sem p ai, com uma mãe que, como ela mesma diz, não sabe cuidar da terra. Numa terra sem lei, onde o Estado não cumpre suas funções básicas, a quem deve essa mulher recorrer?
A demagogia tomou conta do assassinato da irmã Dorothy. O silêncio apoderou-se do destino de outros brasileiros também lá assassinados. Dorothy está-se tornando uma mártir. Cláudio ruma velozmente para o esquecimento. O governo gaba-se de sua eficiência no esclarecimento de um assassinato que teve sobre si os holofotes da mídia nacional e internacional. O governo omite-se quando se trata de um brasileiro comum. Dois pesos e duas medidas fazem parte da História brasileira. Para um governo e um partido que se diziam da mudança, é triste constatar que nada mudou na aplicação da Justiça e na presença do Estado. Para uns, as instituições estatais. Para outros, a violência de uma terra sem lei. Uma morte anônima deixa um filho sem nome.
Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado de Estado em Filosofia pela Universidade de Paris, é autor, entre outras obras, de Hegel (Jorge Zahar Editor, Coleção Passo a Passo) e editor da revista Filosofia Política, da mesma editora. denisrosenfield@terra.com.br

OESP, 07/03/2005, A2

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