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Sem estereótipo

Avisa lá n. 40, nov. 2009, p. 4-9
Autor: BUENO, Ana Cecilia Venceu; MIRAS, Júlia Trujillo; GONGORA, Majoí Fávero
30 de Nov de 2009

Sem estereótipo

Ana Cecilia Venceu Bueno, Júlia Trujillo Miras e Majoí Fávero Gongora (1)

(1) Integrantes da Equipe Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental (ISA). O ISA é uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) fundada em 1994 para propor soluções que integrem questões sociais e ambientais, como foco central na defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural e às populações indígenas e tradicionais.

De que maneira tomamos conhecimento dos povos indígenas ao longo de nossas vidas? Durante as primeiras aulas de história sobre o descobrimento do Brasil e o (des) encontro entre colonizadores e as populações nativas? Depois disso, quando os índios são novamente mencionados no contexto escolar? No dia 19 de abril, Dia do índio?

Quando essa temática é ensinada nas escolas, a ênfase geralmente recai sobre suas contribuições para a formação do caráter nacional. Fala-se da influência na culinária ou da incorporação de palavras indígenas ao vocabulário brasileiro. Nota-se que esse tipo de abordagem parte de um ponto de vista genérico, cujo objetivo não é conhecer a diversidade dos mais de 200 povos indígenas existentes hoje no País, mas apontar os elementos presentes em todos nos, não indígenas.

Não é à toa que é bastante difundida a ideia de que o Tupi é a única língua falada pelos índios. Poucos sabem que o Tupi é o nome de um tronco linguístico que abrange 41 línguas indígenas das cerca de 180 faladas atualmente no Brasil.

Diante do pouco conhecimento transmitido às pessoas sobre esse tema, o imaginário social acerca das populações indígenas foi sendo construído a partir de estereótipos, nos quais os indígenas são vistos ora como bons selvagens e seres puros e amigos da natureza, ora como povos primitivos, atrasados culturalmente, que vivem em ocas na floresta. Quando são portadores de uma tradição que não índios não identificam como sendo original, são imediatamente taxados de aculturados, como se cultura fosse algo que se perdesse, como uma mala de viagem.

O espaço diminuto que a temática indígena ocupa nas escolas fica ainda mais explícito quando observamos que, somente em 2008, foi aprovada a Lei (2) que tornou obrigatório o ensino de história e cultura indígena nas escolas brasileiras. Apesar de um acontecimento a ser comemorado, o fato revela o lugar de marginalidade que foi reservado a essa parcela da população ao longo de séculos.

Indígenas em foco
Foi com o objetivo de divulgar informações de qualidade sobre os povos indígenas e enriquecer o debate nacional que o Instituto Socioambiental (ISA) criou o tema Povos Indígenas no Brasil (PIB). O PIB vem desenvolvendo, há mais de duas décadas, iniciativas que disponibilizam dados atualizados sobre os índios e suas terras. Uma dessas iniciativas é o site Povos Indígenas no Brasil, que reúne textos, mapas, imagens e notícias sobre a realidade das populações indígenas, além de apresentar mais de 170 verbetes que descrevem a história e os modos de vida específicos de cada povo.

O curioso é que esse site, voltado ao público adulto, foi despertando de maneira crescente o interesse de muitas crianças. Era bastante frequente o recebimento de e-mails do público infantil perguntando sobre os índios. Imaginavam, até mesmo, que nós, membros da equipe, éramos indígenas. Por causa disso, era comum recebermos frases como: "O que vocês comem?"; "Como vocês brincam?"; "Onde vocês moram?"; "Gosto muito de vocês!".

A partir dessa demanda, percebemos esse grande hiato de informações de qualidade em linguagem apropriada ao público infanto-juvenil. Assim surgiu a ideia de construir o site Povos Indígenas no Brasil Mirim (PIB Mirim). O passo seguinte foi viabilizar o projeto.

(2) Em 10 de março de 2008, foi sancionada a Lei 11.645 que torna obrigatório no ensino fundamental e médio, nas escolas brasileiras públicas e particulares, o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

Princípios importantes
Antes de darmos início ao projeto, tínhamos em mente alguns princípios: mostrar a diversidade dos povos indígenas de maneira educativa e lúdica, romper com os estereótipos amplamente difundidos e despertar o interesse e o respeito das crianças às culturas indígenas existentes no Brasil.

Tais princípios são imprescindíveis, pois para respeitar as diferentes culturas é preciso antes de tudo conhecê-las. Assim, buscamos dar ênfase à riqueza e à diversidade dessas tradições culturais, visto que cada grupo indígena tem uma história própria, além de possuir práticas e conhecimentos muito particulares. Apesar das semelhanças que existem entre os povos indígenas, não podemos dizer que existe uma única "cultura indígena" ou "o índio brasileiro".

Com o objetivo de desfazer o estereótipo do "índio genérico", o PIB Mirim apresenta as qualidades que singularizam cada povo. Afinal de contas são cerca de 230 povos indígenas vivendo no território nacional. A maior parte encontra-se nos mais de 600 territórios conhecidos como Terras Indígenas, situados em variados biomas. As casas e aldeias indígenas são um bom exemplo para mostrar essa diversidade.

A ideia bastante difundida de que os índios vivem em casas chamadas de ocas leva a uma generalização acerca das habitações indígenas. Entretanto, as casas são muito diferentes entre si. São feitas a partir de diversas técnicas que utilizam os mais variados tipos de materiais e podem ser de muitos formatos, assim como as aldeias. As casas podem ser habitadas por uma ou mais famílias nucleares, que neste caso ocupam um setor específico, que pode ou não ser delimitado por marcos físicos. Essas formas revelam maneiras próprias de se relacionar com o ambiente, com o espaço habitado e com os demais membros da comunidade.

Além de olhar para os modos de vida indígenas hoje, também é preciso conhecer suas histórias, que começaram muito antes da chegada dos europeus e vão muito além do que ouvimos sobre os Tupiniquins e Tupinambás do litoral. A diversidade de culturas e línguas entre os povos no Brasil era ainda maior na época da chegada dos colonizadores. Muitos estudos indicam que no século XVI havia entre 2 e 4 milhões de índios que pertenciam a mais de mil povos e falavam mais de mil línguas.

A diversidade linguística é também um assunto pouco explorado, considerando que existe mais de 180 línguas e dialetos. Além do tronco linguístico Tupi, existe outro tronco que é igualmente importante, o Macro-Jê, além de aproximadamente 20 famílias linguísticas, dentre elas as Aruák, Karíb e Pano.

Para levar adiante um projeto que pretenda apresentar as diversas realidades dos povos indígenas ao público infanto-juvenil, é fundamental levar em consideração as expectativas, dúvidas e interesses das crianças diante do tema. Com base nesta ideia a elaboração dos textos do PIB Mirim partiu de questões que apareceram nos e-mails enviados pelas crianças. E assim, foi criado o núcleo temático do nosso projeto. Os conteúdos do site giram em torno de cinco grandes eixos: Antes de Cabral, Quem são, Onde estão, Como vivem e Línguas. Cada um deles se subdivide em seções, cujos assuntos se desdobram em uma série de perguntas e respostas encadeadas, tornando a linguagem acessível ao público.

Além disso, a equipe realizou inúmeras pesquisas bibliográficas, aliadas as conversas com especialistas em Antropologia, Arqueologia, Educação, entre outras áreas de conhecimento. Uma constante pesquisa audiovisual enriquece o site com fotos, mapas, desenhos e vídeos. Paralelo a esse trabalho, a equipe e a 8D Games, empresa especializada em jogos e interação digital, criaram o espaço Aldeia Virtual (veja box na pág. 7).

Parceria com as comunidades
O PIB Mirim busca dar espaço aos conteúdos produzidos pelos próprios indígenas ou em parceria com eles. O site conta com vários conteúdos elaborados pelas comunidades com as quais o ISA desenvolve projetos, como é o caso de populações da região do alto rio Negro e do Parque Indígena do Xingu. Vídeos sobre brincadeiras e línguas indígenas, textos sobre jogos, alimentação, divisão das tarefas cotidianas, além de diversos desenhos que ilustram seus variados modos de vida são algumas das opções.

Os Yudja falam uma língua do tronco Tupi e vivem em seis aldeias próximas à beira do rio Xingu, em Mato Grosso, e também perto da foz do rio próximo à cidade de Altamira, no Para. Vale a pena conferir trechos do texto coletivo feito pelas crianças Yudjá da aldeia Tuba Tuba proposto pela educadora Paula Mendonça, da equipe do Programa Xingu/ISA, a respeito de suas brincadeiras.

"Nos, meninos aqui da aldeia, gostamos de brincar com nosso arco e flecha. (..) Fazemos com qualquer tipo de material só para brincar e aprendera lançar flecha. O mais difícil é colocar a pena da ponta da flecha para voar bem. (..)

Nós, meninas, gostamos de fazer pulseira, colar de miçanga. (..) Gostamos de brincar de pega - pega no rio, de escorregar no barranco... De desenhar animal ou pessoa na terra, de brincar de rodar o peão com semente de tucum... E de fazer brincadeira de barbante. (...) À noite, nós gostamos de brincar no pátio da aldeia contando as músicas de brincar ou, então, as músicas das nossas festas. Estudamos na escola de nossa aldeia, estudamos em nossa língua e no português e ouvimos as histórias que os mais velhos contam para a gente durante a aula."
Depois de iniciada essa empreitada, as ideias não cessaram. Há uma infinidade de assuntos a serem abordados sobre as populações indígenas e seus modos de vida. Além de trazermos novos conteúdos - inspirados nos comentários postados pelos visitantes -. lançaremos em breve uma galeria de vídeos. fotos e desenhos, tornando o acesso a esses recursos mais ágil e prático. Pretendemos criar novos jogos. ambientes e aldeias, localizadas em diversos biomas. como a Mata Atlântica e a Amazônia.

Pensando nesse site como uma ferramenta para trocas de ideias e informações. criaremos, ainda, um espaço interativo para educadores e pessoas que tenham interesse em compartilhar experiências relacionadas ao ensino da temática indígena. O PIB Mirim está somente no começo. Nossa perspectiva é agregar sempre novos parceiros para construir coletivamente esse projeto que nasceu no ISA e é de todos.

Brincadeira na diversidade

Aldeia Virtual é um jogo interativo. Decidimos nos apropriar da linguagem dos games e proporcionar uma experiência que explora a diversidade cultural dos povos indígenas de maneira a conciliar diversão e aprendizado. Para a equipe, era fundamental a criação de um espaço virtual que mostrasse as diferenças entre os povos, isto é, aquilo que os particulariza, nos afastando do estereotipo do índio genérico.

No jogo, o primeiro contato do participante com o diferente se dá quando ele faz o cadastro. Além de preencher os dados convencionais, é necessário escolher um avatar (personagem), com o qual brincara. Os avatares são desenhos criados a partir de referências reais sobre sete povos indígenas: Ashaninka, Asurini do Xingu, Karajã, Krahô, Matis, Xikrin Kayapó e Yanomami. Logo no início, o jogador se depara com desenhos de índios muito diferentes entre si, pois destacam estéticas singulares: um usa um longo manto, outros possuem pinturas corporais e cortes de cabelo específicos, outros, ainda, trazem junto ao corpo ornamentos marcantes.

Depois de escolher uma etnia e nomear o avatar, a criança esta pronta para entrar na aldeia, conversar com as outras pessoas que ali estiverem e participar do jogo Corrida de Toras. O ambiente é livremente inspirado no Cerrado brasileiro e a aldeia é circular, seguindo o formato característico de alguns povos que vivem na região central do País. Lá, os pequenos encontram informações sobre algumas plantas, trocam impressões sobre o site e o jogo e fazem amizades.

A Corrida de Toras é o único jogo que existe. Essa atividade é típica de algumas populações que vivem no Cerrado brasileiro e geralmente esta associada a um ritual ou a praticas cotidianas. Os Krahô, por exemplo, realizam-na sempre que retornam de uma caçada coletiva. Já os Xavante correm em competições esportivas cerimoniais.

A novidade desse espaço é a Casa do Moitará, onde é possível trocar os pontos ganhos por objetos produzidos por diferentes populações indígenas e aprender como eles são feitos, quais são os materiais utilizados e para qual finalidade são usados. A Casa do Moitará foi criada a partir do modelo de habitação dos Ikpeng, que vivem no Parque Indígena do Xingu. Muitos povos dessa região, especialmente os do alto Xingu, realizam um evento conhecido como moitará (troca em Tupi-Guarani), no qual são trocados objetos e produtos entre as casas de uma mesma aldeia ou entre comunidades distintas.

Ficha técnica

Povos Indígenas no Brasil - PIB Mirim
Endereço: Av. Higienópolis, 90, bairro Higienópolis, São Paulo (SP). CEP 01238-001
Tel.: (11) 3515-8900
Site: http://pibmirim.socioambientai.org/pt-br
E-mail: pibmirim@socioambientai.org
Twitter: http:/twitter.com/PIB_Mirim
Coordenação: Fany Pantaleoni Ricardo
Organização e edição de conteúdo: Ana Cecilia Venci Bueno, Fany Pantaleoni Ricardo, Júlia Trujillo Miras, Majoi Favero Gongora, Rogério do Pateo e Sílvia de Melo Futada
Desenvolvimento, design e produção: Alex Piaz, Eduardo Ultima e Gabriella Contoli
Desenvolvimento do jogo Aldeia Virtual: 8D Games

Para saber mais

Livros
A temática indígena na escola - Novos subsídios para professores de 11 e 2Q graus, de Aracy Lopes da Silva e Luís Donisete Benzi Grupioni (orgs.). Editora Global. Tel.: (11) 3277-7999.

Índios no Brasil, de Luís Donisete Benzi Grupioni (org.). Editora Global.

Série Morena, de Ciça Fittipaldi. Editora Melhoramentos. Tel.: (11) 3874-0800.

Avisa lá n. 40 nov. 2009, p. 4-9

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