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Sem CPF, sem certidão e sem saúde

Gazeta Mercantil-São Paulo-SP
04 de Jun de 2003

Base eletrônica de dados vai permitir a melhoria do
atendimento às 3,5 mil comunidades. Não é fácil imaginar como vivem os
índios brasileiros. E mais difícil ainda é realizar um recenseamento
sanitário destinado a apoiar ações de melhoria da saúde indígena. "É
preciso levar em conta que índio não tem CPF, não tem certidão de
nascimento e, dependendo da aldeia, muda de nome com o passar dos anos.
É um outro universo", diz Ricardo Chagas, diretor do Departamento de
Saúde Indígena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Além disso, um
censo desse tipo precisa descobrir também e por exemplo, como são as
aldeias; que hábitos dos não-índios já foram incorporados; quais
tradições foram mantidas ou se as aldeias têm telefone e como seus
habitantes se sustentam.

A radiografia das populações indígena começa a ser revelada a partir do
trabalho iniciado pela Funasa que visa, principalmente, identificar as
fontes de água utilizadas pelas comunidades indígenas, os hábitos de
higiene e o destino do lixo, mas que oferece um panorama bem
interessante sobre a vida nas aldeias.

Sem energia
O levantamento é feito com a ajuda dos Agentes Indígenas de Saúde e
Saneamento, primeiras referências da Funasa nas comunidades que possuem
familiaridade com as peculiaridades de cada etnia. No quesito
"características das aldeias", o questionário mostra, por exemplo, que
das 1.628 cadastradas até agora, 1.208 já possuem escolas. A maioria,
847, não é servida por qualquer tipo de energia. As moradias ainda são
tradicionais, em geral, não têm reboco, as paredes são de taipa ou barro
e o piso de chão batido.Quando perguntados sobre as fontes preferidas de
água, algumas novidades aparecem. Os rios ainda são apontados como a
mais freqüente forma de tomar banho por 727 aldeias, seguidos dos
igarapés (413) e córregos (225), ficando a água encanada em quarto
lugar, preferida por 390 aldeias. Mas quando a água é utilizada para
preparar alimentos, beber, lavar roupa e lavar vasilhas, a relação se
inverte. E a água encanada encabeça a lista em todas as opções.

O resultado se explica. A "água encanada dentro de casa" está em 9.609
moradias, e é uma das primeiras intervenções da Funasa. "É uma ação que,
sem dúvida, interfere na cultura indígena tradicional, mas é necessária
por causa do enorme ocorrência de doenças causadas pela água de má
qualidade", destaca a diretora do Departamento de Engenharia de Saúde
Pública da Funasa, Kátia Regina Ern. Segundo ela, ao incorporar este
benefício, os próprios índios acabam solicitando outras intervenções,
como banheiros, o segundo melhoramento. Por último, chega o sistema de
esgoto, ainda pouco encontrado.

As práticas de higiene são ainda peculiares. O hábito de defecar "no
mato" ainda é predominante em 1.114 das aldeias, sendo que a privada é o
local para satisfazer essa necessidade fisiológica em 748 delas, embora
muitas vezes seja um espaço coletivo. Mas há problemas de aceitação.

No Distrito Sanitário Indígena do Xingu, por exemplo, 60% das 59 aldeias
possuem fossas secas como banheiros, segundo as informações do médico
Douglas Rodrigues, do Departamento de Medicina Preventiva da
Universidade Federal de São Paulo (Ufesp), que trabalha na área desde o
final da década de 70. "A aceitação não foi das melhores", diz.
Rodrigues destaca que algumas aldeias querem banheiros tradicionais mas,
para ele, nada garante que vá funcionar, por causa dos hábitos
culturais. "É preciso melhorar a manutenção das fossas secas, ensinando
a jogar cinzas ou terra, e ainda instalá-las onde hoje já são os
banheiros 'naturais' ", acrescenta. Ao invés do papel higiênico, os
índios ainda preferem as folhas.

Mas há também um hábito que começa a ser bem incorporado - o de escovar
os dentes, manifestado em 1.273 aldeias. Mas os problemas ainda são
enormes. Em uma primeira etapa de avaliação da saúde bucal indígena, a
Funasa constatou insuficiência de recursos humanos de apoio, alta
rotatividade e pouca participação indígena na prestação de serviço às
comunidades, que dificulta o repasse de informações.

Até setembro de 2002, foram identificadas mais de 120 mil pessoas com
problemas dentários nas comunidades indígenas, sendo que 33% delas
concluíram a primeira fase do tratamento. Outra informação aponta que,
durante os procedimentos coletivos, em que vários indígenas são
orientados ao mesmo tempo, 160 mil pessoas tinham necessidade de
fluorterapia e 43,5% completaram o tratamento.
Nas comunidades onde já foram introduzidos alimentos cariogênicos, como
açúcar, pão, arroz e macarrão, a Funasa realiza escovação supervisionada
com distribuição de escova e creme dental, privilegiando o sistema de
troca de uma escova velha por outra nova e um tubo de creme dental vazio
por outro cheio, visando o controle do lixo nas aldeias, outra dor de
cabeça.

O lixo é queimado, na maioria dos casos, em 1.042 aldeias. Outras
destinações também são inadequadas, como enterrar os dejetos ou jogá-los
a céu aberto, perto das casas ou de fontes de água para beber, cozinhar
e tomar banho. No Xingu, uma equipe de especialistas desembarca no
Distrito Sanitário, em junho, para tentar encontrar uma solução desse
problema.

Toneladas de pilhas
"Além dos dejetos humanos, há outros conseqüentes de novos hábitos.
Somente de pilhas, por exemplo temos mais de 400 quilos de resíduos no
Xingu", comenta Douglas. Sem contar o lixo gerado na intervenção em
saúde. De acordo com o Censo Sanitário, em 494 aldeias das 1.628
cadastradas o lixo oriundo dos postos de saúde é queimado. Os restos
também são enterrados, em 234 aldeias, ou lançados a céu aberto. Em
apenas 118 os resíduos são recolhidos pela própria equipe de saúde e, em
28, pela coleta municipal.

Grandes parte das aldeias - 743 - não se comunica de forma alguma; 664
utilizam rádios transmissores; 172 telefones fixos e 163 aparelhos
celulares. E suas principais atividades são a produção de artesanato e
as casas de farinha, mas a pecuária, de gado e ovelhas, a criação de
galinhas, porcos e peixes também têm destaque.

Leia amanhã, a terceira e última reportagem da série sobre as doenças
mentais e as sexualmente transmissíveis, que atingem as populações
indígenas brasileiras.

Informações detalhadas sobre saneamento

A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) está implantando uma base
eletrônica de dados sobre saneamento em áreas indígenas que permitirá o
monitoramento mais refinado das ações de engenharia de saúde pública nas
aldeias e de seus resultados. "Com isso, também haverá uma ligação mais
direta entre a qualidade da água e as doenças que mais afligem as
comunidades, como as diarréias, os problemas de pele e as verminoses",
explica a diretora do Departamento de Engenharia de Saúde Pública da
Funasa, Kátia Regina Ern.

Chamado de Sistema de Informação de Saneamento em Áreas Indígenas
(Sisabi), é composto por quatro módulos: Censo Sanitário, Cadastro de
Obras e Saneamento (Casan); Sistema de Informações sobre a Água
(Sisagua) e Agentes Indígenas de Saneamento (Aisan).

Kátia diz que o módulo Censo Sanitário já está em andamento e reúne
dados sobre as fontes de água utilizadas pelas comunidades indígenas,
hábitos de higiene, destino do lixo, sistemas de transportes e
comunicação e atividades econômicas nas aldeias indígenas. Das cerca de
3,5 mil aldeias, 1.628 já estavam cadastradas até o dia 27 de maio, o
equivalente a uma população de 215 mil pessoas. Os responsáveis pela
aplicação do questionário do Censo Sanitário são os Agentes Indígenas de
Saneamento, escolhidos pelas tribos, hoje 630 pessoas. Os integrantes
das equipes multiprofissionais de saúde dos pólos-base também participam
da coleta e atualização do banco de dados, que é diária.

Já o Casan armazena dados que revelam em que estágio encontram-se as
obras de melhoria sanitária, abastecimento de água, construção de
estabelecimentos de saúde e se estão sendo utilizadas pela população
indígena. Pelo Censo, das aldeias já cadastradas, apenas 589 possuem
sistema de abastecimento de água.

O Sisagua é um sistema de informação de vigilância da qualidade da água
para o consumo humano em áreas indígenas. "É o que vai nos possibilitar
controlar os níveis de cloro, mercúrio, flúor e ainda o ph (medida de
alcalinidade) da água nas comunidades", explica Kátia. Ela destaca que,
embora não existam problemas graves de contaminação nos poços, pois eles
são profundos (80 a 120 metros), é preciso pelo menos algum
monitoramento. No Mato Grosso, Amazonas, Pernambuco e Ceará, por
exemplo, as coordenações regionais já possuem laboratórios portáteis que
chegam às aldeias. Em outros estados, o material é coletado e analisado
nas cidades próximas.

Se os poços não têm problemas, o mesmo não se pode dizer das fontes
naturais de água existentes. Em março passado, o Conselho Indígena de
Roraima (CIR) e a Associação dos Povos Indígenas de Roraima (Apir), em
reunião com a ministra do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, Marina
Silva, denunciaram a contaminação dos rios Cotingo, Tacutu e Surumu que
cortam a região.

Segundo eles, os rizicultores destruíram grande parte da mata ciliar dos
rios e igarapés e vêm usando agrotóxicos que contaminam as fontes de
água e levam doenças aos índios das comunidades próximas. Problemas
semelhantes existem em vários locais.

O quarto módulo integrante do Sisabi é o Agente Indígena de Saneamento
(Aisan), responsável pelo registro e monitoramento das atividades
realizadas pelos agentes indígenas de saneamento, as informações deste
módulo mostram as condições de trabalho do agente e quais as
intervenções realizadas por eles. A atuação dos agentes é feita em
conjunto com as equipes multiprofissionais de saúde.

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