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Sede de água

Pesca Brasil, abr. 2008, p. 67-74
18 de Fev de 2009

Sede de água
A qualidade de um habitat natural

Por Ângela Arraya

Enquanto as discussões sobre água focam a questão quantitativa, o Brasil, um dos maiores detentores mundiais de água doce, tem uma considerável parte de seus reservatórios seriamente prejudicada pela poluição, uma catástrofe que aniquila a vida aquática e inviabiliza o consumo. Poluição é a inserção de agentes químicos, físicos e biológicos que alteram as características da água e a saúde dos seres que a habitam e a consomem. Rios nestas condições já não têm capacidade de abrigar vida, e sua água não serve para banho, ingestão ou irrigação.
Apenas ações humanas têm a capacidade de provocar tamanha alteração. As mais comuns são o despejo de lixo e esgoto, que podem conter desde dejetos a produtos químicos altamente tóxicos, e os diversos usos abusivos do solo. Além da poluição das águas de superfície (rios,, lagos e oceanos), a destinação aleatória do lixo e dos resíduos industriais e agrícolas (fertilizantes, pesticidas, adubo químico) também pode contaminar os lençóis d'água que formam as nascentes e aqüíferos subterrâneos.

Reação em cadeia
Todo problema ambiental agrega questões de natureza social, política e comportamental. Eventos envolvidos na poluição da água não fogem à regra. São influenciados pelas deficiências projetuais da malha urbana, a pobreza, os deslocamentos demográficos e até desvios ecológicos que aparentemente não têm ligação direta com o tema, como o desmatamento. "Alguns mananciais são compostos por diversas nascentes, diversos córregos que alimentam as represas, não somente um grande corpo d'água. Por outro lado, qualquer córrego que abasteça uma população ou um lugarejo é um manancial. É preciso trabalhar de um jeito que envolva diversos lados, não pode haver visão unilateral", explica Léo Ramos Malagoli, especialista em biodiversidade do Programa Mananciais, do Instituto Socioambiental (ISA).
São Paulo é o espelho nacional quando o assunto é encadeamento de processos poluidores no desenvolvimento da sociedade - os rios Tietê, (piranga, Anhagabaú, Tamanduateí e Pinheiros viram as regatas e piqueniques em suas margens darem lugar a lixo, dejetos, indústrias e loteamentos (ou favelas) à medida que a cidade crescia. Hoje, o desafio é evitar o mesmo destino para as bacias Billings, Guarapiranga e Cantareira, que se dividem entre o abastecimento de água e a geração de energia, depósitos de lixo, loteamentos e até atividades mineradoras.
O urbanista especializado em gestão ambiental e tratamento de água, Fábio Vital, do Instituto Acqua, lembra que o histórico das grandes regiões brasileiras aconteceu em volta de recursos hídricos, que ironicamente passaram a viver o descompasso da infra-estrutura no atendimento dos novos hábitos de trabalho e vida da população. "A relação dos rios com lazer, esporte, pesca e até expressão religiosa deu lugar a uma dinâmica de afastamento - o rio que induziu a ocupação das cidades passa a ser um problema. Todas as regiões do país reproduzem esse modelo de crescimento, mero inchaço sem benefícios e sem desenvolvimento, sem um conjunto de ações coligadas ocorrendo ao mesmo tempo".
Além do despejo de esgoto industrial e doméstico, o adensamento populacional e a especulação imobiliária são alguns dos principais agravantes dessa situação. Toda população que precisa ficar na área urbana, mas não pode pagar para morar na região central, foi empurrada para as áreas de mananciais, onde a falta de estruturas barateia a terra (cerca de 10% dos 20 milhões de habitantes da região metropolitana). Esse processo aumenta ainda mais o desmatamento, o despejo de esgoto in natura e compactação-impermeabilização do solo.
A expansão da malha urbana também força a retificação e canalização de diversos corpos d'água, agravando ainda mais os problema, conforme explica Vital:
"Cimentar, entubar ou canalizar um rio é uma engenharia que sai pela culatra. A própria- sinuosidade do curso d'água é uma defesa: a água percorre todo um trajeto de curvas, se espraia corretamente e ainda tem maior aptidão ao desenvolvimento de biodiversidade. Quando o rio é retificado, transforma-se numa reta e diminui sua extensão, enche, transborda, etc. No caso dos rios canalizados é pior ainda. São obras caríssimas para jogar tudo o que é fedido e sujo para baixo do tapete, onde não dá para ver se tem colchão, pneu, gente. Enfim, frutos de visões técnicas equivocadas, visões de planejadores que não levaram em conta o respeito a alguns princípios naturais, e o custo disso é muito alto".
A situação de ocupação e gestão insustentável dos recursos hídricos é baseada numa lógica setorial, na qual as questões de abastecimento, legislação, saneamento, habitação e infra-estrutura são pensadas isoladamente, em claro descompasso à complexidade da demanda. "A legislação não previa uma série de possibilidades no uso dos mananciais e a fiscalização não funciona na mesma velocidade da exclusão social. O crescimento da cidade se deu muito rápido, e faltou um pouco de visão política, de visão cidadã, faltou entendimento sobre o que estava sendo feito com a cidade. Falta muita informação, falta muita educação, falta muita sensibilidade de todos para resolver essa questão com mais profundidade e mais responsabilidade", explica César Pegoraro, biólogo e educador ambiental do ISA.
Por causa dessa falta de entendimento interligado, as perspectivas de reverter, a situação não são fáceis, pois além de muito dinheiro, envolvem uma reformulação cultural da população e da classe política. "Se esses reservatórios ficarem comprometidos ao ponto de tudo que acontecer ser irreversível, além da perda de biodiversidade, vão instaurar um colapso no abastecimento - não haverá oferta de água suficiente, o preço ficará muito elevado, será preciso buscar água cada vez mais longe, o que vai demandar uma quantidade imensa de megaobras, caos... um efeito cascata, para piorar alerta Malagoli.

O que acontece nas principais bacias da região metropolitana de São Paulo
Tietê
O trecho deste rio que atravessa a capital paulista foi retificado e seus remanescentes viraram lucrativos loteamentos, um dos maiores erros ambientais da história do país. As conseqüências do desrespeito as áreas de proteção do rio foram: poluição, enchentes, contaminação dos afluentes e morte biológica do rio. Já foram gastos mais de U$ 180 milhões no projeto de despoluição, que pouco efeito surtiu.
O Tietê e outros rios da região, como o Tamanduateí, o Pinheiros e o Ipiranga, nunca mais voltarão a ser mananciais, mas ainda têm chance de, pelo menos, voltarem a abrigar vida e outros tipos de relação com a população, mas precisam de um plano de despoluição mais efetivo.

"No caso das bacias da região metropolitana, ninguém sabe ao certo que tipos de peixes as habitam. Sabe-se que o adensamento populacional introduziu espécies exóticas, como a tilápia, mas nunca foi feito um levantamento das espécies nativas que compõem essas represas.
Nesses corpos d'água a pesca comercial praticamente inexiste, mas a pesca amadora é muito comum, e as pessoas acabam consumindo os peixes, tanto os que pescam, quanto o que é comercializado na beira da represa em barracas de comida e bebida.
Nem sempre o peixe dos pesqueiros é contaminado. Depende se o pesqueiro funciona num braço da represa, mas não é aconselhável ingerir. Eu trabalho nessa área há uns sete anos, e sempre vi o pessoal comendo isso. É preciso um alerta mais insistente para a população, pois os problemas são inúmeros. Talvez o maior deles é que a maioria dos contaminantes são cancerígenos"
Léo Malagoli

Os vários rostos da poluição

Lixo, sedimentos, sujeira e corantes bloqueiam a luz solar, impedindo a fotossíntese e o desenvolvimento do ciclo biológico. Plantas e peixes não conseguem se reproduzir nem se alimentar naturalmente, e toda a vida do ecossistema aquático é afetada.

Partículas de sujeira podem cobrir os organismos aquáticos, ocasionando inclusive a morte de peixes e outros animais por obstrução respiratória.

Despejos químicos (industriais e agrícolas) alteram a concentração de diversos elementos, desequilibrando as condições ideais para a vida aquática e contaminando toda a cadeia trófica por processo de bioacumulação.

Materiais tóxicos sintéticos como detergentes, inseticidas e herbicidas interferem no pH (potencial hidrogeniônico) da água, tornando-a ácida (ph menor que sete) ou alcalina (ph maior que 7) demais para as espécies nativas do rio.

Este tipo de tóxico também influi na salinidade da água, interferindo na atividade osmótica dos peixes e demais' animais aquáticos, o que pode fazer as células dos mesmos "explodirem". '

A tensão superficial da água, que garante a estabilidade de todo o sistema biótico e molecular do rio, é profundamente afetada pelos tóxicos sintéticos, principalmente os detergentes, que diminuem a coesão molecular da água e desestruturam toda a fauna aquática.

Desmatamento e práticas agrícolas que erodem o solo causam assoreamento - depósito de sedimentos no fundo, o que diminui a vazão do rio, soterra a vegetação subaquática, dificulta a reprodução dos peixes, e pode obstruir as brânquias de muitas espécies.

Por mais sujo que um rio possa parecer em sua superfície, é no fundo que a maior parte dos sedimentos e materiais tóxicos está acumulado. Essa "bomba" pode vir à tona a qualquer movimentação da água, num fenômeno conhecido como ressuspensão ou rolamento.

Resíduos de mercúrio lançados nos rios por mineradores envenena a água e os peixes. Pessoas que se banham ou bebem dessas águas, bem como as que consomem os peixes, sofrem lesões neurológicas e correm risco de morte.

Esgoto contendo dejetos humanos introduz na água microorganismos como bactérias, vírus, protozoários e vermes, que podem ocasionar doenças como cólera, hepatite, febre tifóide, tuberculose,leptospirose, infecções, amebíases, diarréias, esquistossomose, etc.

Os sais minerais contidos nessa matéria orgânica alimentam desordenadamente algumas algas, que se reproduzem rapidamente e podem aumentar a toxicidade do rio e causar mal cheiro, gosto desagradável e turbidez.

Nitrogênio, fósforo e potássio, despejados por indústrias ou resultantes da atividade agropastoril também aumentam a floração de algas e destroem o fitoplâncto (responsável pela renovação de 70% do oxigênio da atmosfera).

Quando a quantidade de poluentes químicos e físicos lançados na água ultrapassa a capacidade de auto-regeneração do rio, ocorre o aparecimento de gases nocivos à vida aquática.

Toda a flora marginal (mata ciliar, manguezais, etc) pode ser afetada pela poluição de um rio, ocasionando a morte de mais uma enorme quantidade de espécies animais e plantas.

Usinas canavieiras, termelétricas e indústrias que usam água de rios para refrigeração despejam água em altas temperaturas nos rios, o que diminui, a oferta de oxigênio e causa enorme mortandade de peixes, insetos e outros organismos. .

Existe solução?

Pesquisadores são unânimes em apontar como única solução viável a ação integrada e transversal de todos os fatores que culminam na poluição da água. 'Já tentamos priorizar vários aspectos, de preservação a infra-estrutura, até percebermos que as prioridades devem ser várias, não só uma ou outra. É um conjunto de ações que tem que acontecer. Não adianta querer proteger uma área se não tem políticas habitacionais e fiscais eficientes, não há trabalho educativo com a população, não existe comunicação eficiente entre os meios envolvidos", defende Pegoraro.
Além da recuperação de lagos e represas, através de processos mecânicos, químicos ou biológicos, o urbanista Fábio Vital e o biólogo Léo Malagoli apontam um conjunto de ações eficazes para preservação e recuperação de águas:
Todas as ações propostas pelos pesquisadores podem ser sintetizadas na idéia de percepções diferenciadas em relação à água e à natureza. Vital reitera essa idéia compartilhando uma experiência pessoal: "Estava com um amigo dando uma volta de barco na Billings. Tinha umas coisas na água, pensamos que fosse lixo, mas eram dezenas de biguás que, de repente, levantaram vôo sobre o barco.
Eu fiquei extasiado em viver algo assim dentro da área urbana, me mostrou que recursos naturais podem ser lugares de referência no espaço urbano, de estabelecer relações diferentes com a cidade na qual se vive, sem precisar buscar isso em outros lugares. É lógico que tem o direito legal humano de um lado, mas sempre tem maneiras de fazer melhor, mais inteligente, recuperando e reaproveitando essas riquezas".

Verde para que te quero

Preservar as matas nativas e ecossistemas naturais no entorno dos rios e sobre a área de recarga dos aqüíferos é uma forma de zelar também pelos reservatórios de água. O estado da vegetação é um fator essencial para a qualidade e quantidade de água nos rios e mananciais. Por isso, essas áreas merecem especial cuidado quanto à proximidade de estradas, habitações e criação de animais, que constituem potencial risco de contaminação, erosão do solo e outros fatores que causam desde o turvamente da água até o soterramento de nascentes.
"A importância de uma mata preservada na verdade são várias, não há só um tipo de relação da vegetação com a água", defende Pegoraro. A primeira dessas relações é a contribuição das árvores para o microclima e o volume das chuvas, devido a sua intensa atividade de transpiração na superfície folhosa.
Outra função das árvores é amortecer, também por meio das folhas, a velocidade com que as gotas de chuva atingem o solo, o que proporciona menor acúmulo de água e evita a formação de fluxos de água. Estes fluxos não são bem vistos porque carregam o solo e provocam erosão. "A erosão é um problema porque se a terra sai de um lugar, vai se depositar em outro, ela não desaparece, normalmente vai para no fundo de rios. O fato de ter sedimentos no leito de um rio causa um processo chamado assoreamento, o rio vai ficando cada vez mais raso e comporta menos água", explica Pegoraro.
Segundo Malagoli as raízes também participam desse processo - retém a terra e facilitam a infiltração da chuva, fazendo a captação, filtragem e transporte da água da chuva para o manancial de forma segura e limpa através do próprio solo.
As árvores também têm a vantagem de produzir água como um subproduto de seu metabolismo - durante a noite, sem luz para realizar fotossíntese, elas produzem hidrogênio, que se combina com o oxigênio do solo e forma novas moléculas de água. Algumas áreas são especialmente caras para a contribuição de todas essas atividades com o corpo d'água, como as nascentes, topos de morro, fundos de vale e áreas de grande inclinação. Vital, no entanto, alerta para o fato de que toda a cidade pode contribuir com áreas verdes e permeáveis: "O manancial tem uma função ambiental e ecológica que vai muito além da produção de água, inclui micro-climas, relação de umidade, equilíbrio. Sem a área manancial nós estamos indo para o inferno, literalmente. Por outro lado, as áreas de manancial são todas as áreas da cidade. A maior demanda feita pela população aos vereadores de São Paulo é canalização de córregos. Imagine tudo o que está tapado debaixo dos bairros, acrescido à verticalização da cidade e à cultura de cimentar qualquer pedacinho aberto de chão".

Em alto-mar

Os efeitos da poluição nos rios são mais visíveis, mas o oceano é o destino final de todos eles. Segundo o relatório "In Dead Water" CEm Águas Mortas"), da ONU, em poucas décadas o oceano sofrerá uma extinção em massa, conseqüência de mudanças climáticas, acidificação da água, poluição e desenvolvimento litorâneo.
O relatório mostra que o aumento da temperatura e a acidificação do mar, devido à dissolução de CO2, danificará peixes e corais, fundamentais na ecologia marinha. 0 desenvolvimento litorâneo, por sua vez, pode atingir 91% de todas as costas desabitadas até 2050.
Ás mudanças climáticas também afetam a circulação das grandes correntes, e o fenômeno de fluxo e refluxo de água continental. 0 maior indício de declínio da biodiversidade nos mares é apontado pelo aumento de zonas mortas (com déficit de oxigênio) de 149 para mais de 200.

Pesca Brasil, abr. 2008, p. 67-74

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