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Seca no Sudeste atinge 133 cidades e já afeta economia

FSP, Cotidiano, p. C1; C3-C6
02 de Nov de 2014

Seca no Sudeste atinge 133 cidades e já afeta economia
Com 27,6 milhões de habitantes, municípios detêm 23% do PIB do Brasil
SP tem situação mais crítica; indústria faz racionamento, e setor de cana-de-açúcar prevê safra menor

Fabrício Lobel, Dhiego Maia, Marcelo Soares e Marcelo Leite de São Paulo

A seca que assola o Sudeste atinge ao menos 133 cidades e vai além dos pesadelos domésticos para seus 27,6 milhões de habitantes. Elas reúnem 23% do PIB brasileiro.
A riqueza envolvida corresponde a R$ 946,4 bilhões, a preços de 2011 (último ano com dados detalhados por cidade). Corrigido pela inflação (17,85%), o valor representaria hoje R$ 1,1 trilhão.
Se fosse um país, esse novo "polígono da seca" em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro seria a segunda maior economia da América do Sul. Ficaria atrás só do Brasil.
Se em cada um desses municípios a produção caísse 1%, seria o bastante para tirar 0,23 ponto percentual do PIB nacional. O crescimento da economia neste ano está projetado para 0,3%.
A situação em São Paulo é a pior. De seus 645 municípios, 92 (14%) enfrentam algum tipo de dificuldade.
É difícil estimar quanto da economia foi afetada pela crise hídrica, mas empresas relatam prejuízos. A Unica (União da Indústria de Cana de Açúcar) havia feito em abril projeção 2,9% menor para a safra 2014/2015 no centro-sul.
Em agosto, piorou a estimativa de redução para 8,6%. O Estado de São Paulo deve ter um declínio de 11,71% na moagem de cana.
Em Paulínia (SP), a multinacional química Rhodia chegou a recorrer por um mês a um rodízio em quatro de suas 22 unidades.
O setor têxtil também é atingido. Segundo Rafael Cevone, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção, há unidades inteiras paradas. Para piorar, o preço dos caminhões-pipa dobrou nos últimos meses (de R$ 600 para R$ 1.200 por 10 mil litros).
"Não dá para culpar São Pedro", diz Cevone. "Não foram feitos investimentos para interligação de mananciais e outras obras, como a maior captação do aquífero Guarani", queixa-se.
A gestão Geraldo Alckmin (PSDB) vem afirmando que fez investimentos necessários, mas atribui a crise a uma seca histórica.

MULTA
O levantamento feito pela Folha sobre o impacto da seca no Sudeste considerou cidades com relatos consistentes de falta d'água, como a capital paulista. Ao menos 61 cidades da região adotaram racionamento e 19 implantaram multas para inibir aumento do consumo.
Colaboraram LUCAS VETTORAZZO, do Rio, e GISELE BARCELOS, de Uberaba

Cidades de SP e MG fecham colégios e multam desperdício
Em município no interior paulista, morador que lavar a calçada está sujeito a pagar até R$ 750 como punição
Prefeitura em Minas construiu 4,5 km de canos para puxar a água de uma cachoeira e utilizá-la no dia a dia

A avenida Deputado Renato Azeredo, no município mineiro de Campo do Meio, há muito tempo recebeu o apelido de Beira Lago. Não há ninguém na cidade que a chame de outro nome, já que ela percorre a margem do extenso lago da represa de Furnas que passa por lá.
Ou melhor, percorria. A estiagem mais severa dos últimos anos fez a água recuar cerca de 5 km e sumir da vista dos moradores da cidade.
"A Beira Lago se transformou em Beira Pasto", diz o prefeito Robson Machado, em referência às vacas que pastam no que já foi um alagado da cidade a 335 quilômetros de Belo Horizonte.
A devastação causada pela seca no interior de Minas e de São Paulo mudou a paisagem dos municípios e já afeta serviços públicos.
Em Cristais Paulista (a 414 km ao norte de SP), as aulas tiveram que ser canceladas, pois não era possível manter água nos banheiros.
A cidade decretou estado de emergência. Também devido à crise, aulas foram suspensas em Oliveira (a 160 km de Belo Horizonte) durante duas semanas.
Em Itu (a 101 km de SP), sob racionamento oficial desde fevereiro, os moradores fazem fila de madrugada para encher baldes, panelas e garrafões em bicas.
A prefeitura teve que disponibilizar 44 caminhões-pipa e 24 caminhões-tanque (com maior capacidade de reserva) para tentar suprir a demanda. Mesmo assim, as queixas continuam.

'PUXADINHO'
Para driblar a crise, municípios têm adotado medidas emergenciais tanto para aumentar a oferta de água como para punir quem mais desperdiça. Elas vão do cálculo ao improviso.
Em Águas da Prata (a 224 km de SP), o prefeito Samuel Binati (PSC) publicou lei que obriga a Sabesp a decretar racionamento no município.
A companhia se recusou, alegando não haver necessidade de tal medida. Assim como em Águas da Prata, a Sabesp descarta a necessidade de racionamento nos 363 municípios em que atua (56% das cidades paulistas).
Já em Alagoa (a 450 km de Belo Horizonte), a saída encontrada pela prefeitura foi um "puxadinho" de canos com 4,5 km de extensão, construído emergencialmente para captar a água de uma cachoeira.
Em Santa Isabel (a 61 km de SP), no Vale do Paraíba, como em muitas cidades atingidas pela seca, a prefeitura recorreu a caminhões-pipa. Como a oferta é limitada, uma lei prioriza domicílios com idosos e doentes.
A multa a quem desperdiça água foi adotada por ao menos 19 cidades de São Paulo e de Minas.
Em Vargem Grande do Sul (a 234 km ao norte de SP), ser flagrado lavando a calçada com mangueira pode custar R$ 750 caso o morador já tenha recebido advertência.
Muitos municípios também correm para perfurar novos poços semiartesianos, que são mais superficiais e dependentes do regime de chuvas, para complementar o abastecimento de água.
Segundo a Copasa, responsável pelo abastecimento de 74% dos municípios mineiros (ou 631 de 853), já faltou água nas torneiras em cidades das regiões sul, centro-oeste e sudeste do Estado.
A companhia admite que vai demorar muito para o nível dos mananciais voltar ao normal depois da estiagem deste ano.
O presidente da empresa, Ricardo Simões, alega que o cenário poderia ser pior.
Ele afirma que os investimentos em captação direta em rios e represas, construção de poços e preservação das nascentes minimizaram o impacto da falta de chuva.
Segundo ele, o cenário deve ser amenizado com volta das chuvas do final do ano.
(Dhiego Maia e Fabrício Lobel)

No Rio, 11 cidades sofrem com a estiagem
Baixo nível do Paraíba do Sul, única fonte de água do Estado, prejudica municípios do interior e se agrava no norte
Principal reservatório, o da hidrelétrica do Funil, atingiu 10,45% de seu volume, a pior marca desde 2001

Lucas Vettorazzo enviado a Itatiaia e a Barra do Piraí (RJ)

A estiagem que atinge o rio Paraíba do Sul, a única fonte de água do Estado do Rio de Janeiro, tem agravado o problema de desabastecimento no interior fluminense.
Até o momento, a capital e a região metropolitana não foram prejudicadas. A Folha apurou, contudo, que ao menos 11 das 92 cidades do interior registram falta d'água devido à estiagem, considerada a pior dos últimos 40 anos.
Os municípios afetados são principalmente das regiões do Médio Paraíba, centro-sul, noroeste e norte, que concentram atividades industriais, agropecuária e agricultura.
O Estado tem apenas um reservatório de grande porte, o da hidrelétrica do Funil, em Itatiaia. Responsável por acumular água para gerar energia e controlar a vazão do rio, ele estava na quinta (30) com 10,45% de seu volume útil.
É a pior marca desde agosto de 2001, quando o nível chegou a 3,92%, segundo Furnas, subsidiária da Eletrobrás que opera a usina. Em 30 de outubro de 2013, o nível do reservatório estava em 37,7%.

SECA NA CAIXA D'ÁGUA
Em Barra do Piraí, 660 famílias estão sem fornecimento, segundo a secretaria municipal de Água e Esgoto. A prefeitura colocou três caminhões-pipa para rodar a cidade de 94 mil habitantes.
Moradores dizem ficar até uma semana sem água.
"Se lavar roupa, no dia seguinte não tem água para tomar banho. Depois que a caixa d'água esvazia, leva três dias para o caminhão-pipa passar", afirma o metalúrgico Leonardo Ferreira Gomes de Andrade, 20, morador do bairro que, ironicamente, leva o nome de Caixa D'água.
Em São João da Barra e em Campos dos Goytacazes, extremo norte do Estado, a baixa vazão do rio está fazendo com que o mar invada o leito e salinize as redes de distribuição, afetando a agricultura e agropecuária.

Cachoeira dá lugar a filete de água no sul de Minas
Um dos pontos turísticos de Poços de Caldas, represa está quase vazia
Em Campanha, na região, escola cortou suco da merenda; ao menos 14 cidades tiveram racionamento

Juliana Coissi enviada especial ao Sul de Minas

A cachoeira Véu das Noivas, em Poços de Caldas (MG), ficou na lembrança. No suvenir pendurado na banca de artesanato, perto do mirante, a foto é de uma cascata frondosa e branca.
A imagem que espera hoje o turista, porém, é a de filetes de água em um paredão de rochas, antes encoberto. Pedalinhos e lanchas foram retirados da represa Bortolan, que está quase vazia.
A seca alterou a paisagem no sul de Minas Gerais, principalmente nos últimos dois meses. A Folha percorreu na última semana 830 km na região para visitar oito cidades afetadas pela estiagem.
Sem chuvas, não só cachoeiras, mas rios e represas estão vazios, e ao menos 14 cidades da região enfrentaram rodízio em outubro.
Escolas e hospitais mudaram drasticamente a rotina e há moradores que estocam água em casa.
Em São Gonçalo do Sapucaí, a aposentada Hilda Ribeiro Silva de Azevedo, 64, voltou ao tempo da roça.
A bacia de metal enferrujada, que passa dos 50 anos de idade e estava encalhada no quintal, foi resgatada. "Tive que tomar banho de caneca na bacia, igual quando eu era pequena no sítio", diz.
Na escola estadual Vital Brasil, a maior da cidade de Campanha, com 1.500 alunos, o suco e o macarrão foram cortados da merenda. O motivo: economizar a água que seria gasta para lavar canecas e pratos engordurados.
O feijão tropeiro, prato típico de Minas, ficou difícil de ser digerido na merenda. "Eles reclamam de não ter suco", diz a vice-diretora Gislene Figueiredo. Os alunos são estimulados a trazer suas garrafas de água de casa.
Em Ouro Fino, quando a caixa d'água da Santa Casa quase esvaziou, foi preciso esterilizar os materiais hospitalares em outra cidade.
Com a lavanderia cheia de peças sujas, a solução foi comprar mais roupas cirúrgicas e pedir que acompanhantes dos pacientes levassem seus próprios cobertores.

RUÍNAS NAS ÁGUAS
O trecho do lago de Furnas que banha Pontalete, distrito de Três Pontas, está praticamente vazio. É possível andar no meio do leito seco.
A estiagem trouxe à tona ruínas de duas pontes que ficaram submersas após a criação do reservatório, em 1963.
A estiagem revelou as pontes os poucos. Se as muretas já despontavam da água nos últimos anos, agora é possível passar de carro pelas duas pontes, completamente secas, para ir a outros municípios antes ligados por balsa.
Os pescadores de Pontalete, que hoje não puxam das redes nem metade dos 10 kg diários de peixe, lamentam.
Sem dinheiro, pescadores como Tarcísio da Silva, 58, vivem um paradoxo: aguardam ansiosamente o dia em que serão proibidos de pescar.
Na piracema, época de reprodução dos peixes, eles ao menos recebem o seguro-desemprego pelo veto à pesca.
"Ver aquele tanto de água e agora assim, vazio, dá uma tristeza na gente", diz Silva.

Do sertão ao Tietê, catador vive saga da seca
Cearense que viveu de pesca por 20 anos às margens de afluente do Amazonas foi tentar a vida na 'terra da garoa'
Em favela ao lado do rio, de onde tira o lixo que vende para a reciclagem, ele volta a sofrer falta de água

Leandro Machado Apu Gomes de São Paulo

O céu está tão escuro quanto a água do rio onde Macuxi, 62, vai entrar logo mais. São 5h, e ele começa mais um dia de trabalho no Tietê, num tom quase preto de tão poluído. Parece petróleo.
A relação do cearense Antônio Nunes, o Macuxi, com a água é uma verdadeira saga. Enfrentou a seca do sertão, a cheia dos rios amazônicos e agora encara a crise hídrica de São Paulo.
Fim da madrugada. Ele pega sua "carnoa" na margem e começa a passear por um dos braços do Tietê, de onde tira o lixo que o sustenta.
Sem peixes à vista, Macuxi diz que "pescra" 500 kg de garrafas PET por semana --vende o quilo a R$ 0,40 para a reciclagem, no Brás (centro).
"Colchão, sofá, televisão tem direto. Isopor", enumera. Ele mora na margem, em um barraco na favela da Vila Any, divisa da cidade de Guarulhos com o Itaim Paulista, na periferia de São Paulo.
Todos os dias, o lixo é trazido pela correnteza fraca. Estaciona na região da Vila Any, onde o nível da água está mais baixo nos últimos meses.
Remando em pé, Macuxi anda pelo rio dentro de uma carcaça de uma Kombi que encontrou abandonada. "Chamo meu barco de carnoa', carro com canoa. Vem lixo de todo lado. Sempre digo: moro na fronteira da bosta", comenta, rindo.
O expediente, porém, é curto. Às 10h, com o sol já quente, é hora de abandonar o barco. "Com o calor, o rio ferve. Borbulha." O cheiro fica insuportável --uma "caatinga desgraçada."
O governo do Estado tem, desde a década de 90, um programa de despoluição do rio Tietê. Apesar de alguns avanços, grande parte do rio continua acumulando lixo e recebendo água de esgotos.

SAGA DA ÁGUA
Aos 14 anos, Macuxi fugiu da árida Boa Viagem, no Ceará. "Eu tinha que cair no mundo para sobreviver. No Ceará não tinha água para beber, eu não aguentava aquilo", diz.
"O sertão era tão seco que a madeira estralava."
Decidiu fugir: iria para onde tivesse mais água no Brasil, onde chovesse todos os dias. De carona, chegou sozinho a Boa Vista (RR), e foi viver às margens do rio Urubu, afluente do Amazonas --fronteira entre Brasil e Guiana.
Encontrou a água que queria e viveu da pesca por mais de 20 anos. Criou os 12 filhos entre os índios da etnia macuxi --daí seu apelido.
Mas veio a malária, que atacou a família toda. "Os índios nos levaram de cavalo para o hospital mais próximo, que ficava a 40 km."
Antônio Macuxi desistiu da mata e veio para São Paulo há 19 anos. Terra da garoa e do emprego, prometiam os parentes, já migrados.
Oito dias de viagem num ônibus. Quando chegou, foi viver na Vila Any, num barraco do lado do Tietê, onde está até hoje. Desempregado, foi viver da reciclagem.
Mas perdeu tudo várias vezes quando, durante as fortes chuvas, o rio invadia os barracos da favela. "Enchente aqui era brava", conta.
Não é mais. Na região onde vive, o Tietê está mais baixo com a estiagem --também por isso o lixo acumula mais.
"Para mim, é mercadoria. No meio do nada é onde se tem tudo", diz.
Na semana passada, faltou água na favela, mais um sintoma da crise hídrica no Estado. Nenhuma gota na torneira de Macuxi. "A seca voltou, estou quase indo para o Amazonas de novo", diz, olhando para o rio sujo.

FSP, 02/11/2014, Cotidiano, p. C1-C6

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/193665-seca-no-sudeste-ating…

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/193666-cidades-de-sp-e-mg-fe…

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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/193668-cachoeira-da-lugar-a-…

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FSP, 02/11/2014, Cotidiano, p. C1; C3-C6

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/193665-seca-no-sudeste-ating…

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