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Seca na Terra das Águas

OESP, Aliás, p. J7
Autor: LEONARDI, Victor
31 de Out de 2010

Seca na Terra das Águas
Não é possível que o desmatamento não tenha a ver com a estiagem do Rio Negro

Victor Leonardi

A bacia amazônica possui rios que nascem no hemisfério norte da Terra e rios que nascem no hemisfério sul. O regime de cheias não é o mesmo nesses dois hemisférios, por isso o rio principal dessa bacia - o Amazonas - , para o qual afluem as águas dos demais rios, apresenta sempre, em tempos normais, um grande volume de água. Os rios que vêm do Norte, entre eles o Negro, costumam ter volume máximo em julho. Já os que nascem ao sul da calha central, como o Purus, normalmente têm volume máximo em março. Isso é o que costuma ocorrer, com pequenas variações, em tempos normais. Algo muito diferente está ocorrendo este ano, e então o transtorno é grande. Muito maior do que as pessoas que não conhecem a Amazônia podem imaginar.
As populações ribeirinhas estão acostumadas e preparadas para conviver com cheias e vazantes anuais, em tempos de normalidade. Como as várzeas são inundadas nas cheias, as casas são construídas em terras firmes, acima dos grandes barrancos, em local distante da margem do rio. Ou então, sobre palafitas. Em alguns beiradões, são frequentes as casas flutuantes, inclusive casas comerciais. Até pequenos currais flutuantes, para transporte de gado, eu já vi!
Algumas ilhas são parcial ou totalmente cobertas pelas águas na época das cheias. Existem mais de 300 ilhas no arquipélago das Anavilhanas, que fica entre Manaus e Novo Airão, no Rio Negro, e cerca de 700 ilhas no arquipélago de Mariuá, nesse mesmo rio, nas imediações de Barcelos.
Quando o rio está baixo, a paisagem muda e surgem praias extensas e belas. Algumas são famosas e procuradas por turistas, como as do Rio Tapajós, em Alter do Chão, imediações de Santarém. Já naveguei em épocas diferentes pelo Rio Negro e senti uma grande diferença. Nas imediações de Moura e Carvoeiro (300 quilômetros a montante de Manaus), na cheia, só dava para ver a copa das grandes árvores da margem direita, pareciam moitas aflorando, ou boiando nas águas. Meses depois, na época da vazante, vi que as "moitas" eram, na realidade, copas de enormes árvores cujos troncos haviam sido cobertos, na cheia, pelas águas do Negro.
Até a escolaridade das crianças pode ser afetada pelo regime de águas. Lendo um relatório escrito em 1910 por Araújo Lima, inspetor de ensino, percebo que as alagações periódicas provocadas pelas enchentes dos rios interrompiam demoradamente o período letivo, pois domicílios e algumas escolas do interior eram invadidos pelas águas. Naquela época, o êxodo sazonal também alterava a frequência nas escolas, pois grande parte da população abandonava suas casas, partindo para a extração da borracha.
A época das vazantes nem sempre traz grandes problemas. Pelo contrário: é período de lazer nas praias de areia branca, e, em muitas cidades, período das festas locais associadas a uma espécie da fauna ou da flora amazônica, como a tartaruga, o peixe-boi e a castanheira. Porém, é verdade que, na vazante, a navegação fluvial fica mais difícil ou é interrompida nos altos rios. No Acre, em algumas terras indígenas da fronteira com o Peru, os barcos maiores não passam e as grandes canoas encalham nos bancos de areia dos formadores do rio Juruá. É preciso descer para empurrá-las. No alto Rio Negro isso não costuma acontecer, porém afloram grandes blocos de pedra e a navegação noturna não é aconselhável entre Santa Isabel e São Gabriel da Cachoeira.
O problema do abastecimento deixou de ser grave, nos períodos de estiagem, nas localidades vizinhas das estradas abertas a partir da mudança da capital federal para o Centro-Oeste, como a Belém-Brasília. Mas existem centenas de localidades distantes que só são ligadas ao resto do Brasil por via fluvial. Nessas, sim, uma seca prolongada e dura como esta causa enormes transtornos.
Fico preocupado quando recebo notícias a respeito da seca que hoje atinge a região: rios estão quase secos, comunidades ribeirinhas estão isoladas, milhares de barcos encalharam, peixes estão morrendo, as pessoas estão sem comida e a água de muitos rios e igarapés tornou-se imprópria para o consumo. O nível do Rio Negro, em Manaus, monitorado desde 1902, é o menor já registrado.
Costumo chamar a Amazônia de Terra das Águas. Quando, na Terra das Águas, começa a faltar água, algo grave deve estar ocorrendo no meio ambiente. Não é possível que o desmatamento não tenha nada a ver com essa mudança climática.

VICTOR LEONARDI É ESCRITOR E HISTORIADOR, FOI PROFESSOR DE HISTÓRIA DA AMAZÔNIA EM BRASÍLIA, MANAUS E BERKELEY. É MEMBRO DO NÚCLEO DE ESTUDOS AMAZÔNICOS DA UnB

OESP, 31/10/2010, Aliás, p. J7

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