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Saudades do Brasil, parte 2

OESP, Caderno 2, p. D1
19 de Abr de 2004

Saudades do Brasil, parte 2
Às vésperas dos 70 anos da viagem de Lévi-Strauss pelas tribos do Mato Grosso, o 'Estado' revisitou os bororo da região. Hoje, Dia do Índio, o retrato é triste: aculturação, dependência, álcool. Mas há uma reação

JOTABÊ MEDEIROS

ALDEIA MERURE (MT) - Sem nunca ter ouvido falar no filósofo grego Heráclito, o índio Geraldo Bororo, de 67 anos, formula tese semelhante à do grego sobre a passagem do tempo num fluxo contínuo. "O rio que desce, a água que vai, você não consegue botar ela no lugar de novo", dizia o bororo Geraldo, numa noite estrelada, sentado na rede de uma choupana improvisada na aldeia Merure, grupamento de índios bororo a 500 quilômetros de Cuiabá, no sudoeste do Mato Grosso.
O lugar onde vivem Geraldo e mais 419 índios bororo é um exemplo dessa água de um rio que não volta mais. A região foi visitada pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss em 1935, encontro registrado no livro Saudades do Brasil (Plon, 1994, e Companhia das Letras, 2001), e o Estado voltou ao local às vésperas de completarem-se 70 anos daquele contato. Cerca de 60% dos habitantes da aldeia sofrem com problemas de alcoolismo - apesar do aviso, nos bares da região, de que servir bebida alcóolica a um índio pode dar de 6 meses a 2 anos de prisão.
As crianças já não fazem mais questão de falar a língua bororo. Rituais importantes, como o rito fúnebre da tribo, foram praticados durante anos clandestinamente, proibidos por religiosos e pelos governos.
Toda essa situação é conhecida. Mesmo Lévi-Strauss já a assinalava há 10 anos, quando Saudades do Brasil foi editado na França. A novidade é que os índios querem revertê-la. "Pedimos ajuda da Funai, nunca fomos ouvidos.
Pedimos ajuda dos governos, só veio conversa fiada. Resolvemos fazer o nosso próprio plano de mudança", disse Paulo Meri Ecureu, líder e presidente de uma associação cultural da Aldeia Merure.
Os primeiros passos para mudar o curso do rio da aculturação são ousados. A etnóloga Aivone Carvalho, do Museu Dom Bosco de Campo Grande (MS), recuperou há dois anos, em Turim, Itália, objetos bororo que estavam num museu italiano desde 1910. Boa parte desses objetos repatriados pertence a clãs da aldeia e não são mais produzidos pelos índios. Com o material, os índios reaprenderam a fazer peças ritualísticas e estão remontando o quebra-cabeças do seu passado.
"O bororo é um povo que tem alma de artista", diz Aivone. "Qualquer trabalho manual que você propuser a eles, qualquer um que forem mexer, sai", afirma a etnóloga, autora da proeza do repatriamento dos objetos do museu italiano.
Ela diz que foi difícil, mas com perseverança acredita que é possível até mesmo recuperar peças como o famoso manto tupinambá, que o Brasil só viu recentemente após empréstimo do Nationalmuseet da Dinamarca. Só existem sete exemplares no mundo dessa veste sagrada do século 19, feita de penas vermelhas de guará.
Outra proposta dos bororo é a criação de uma aldeia-modelo, para uma espécie de recondicionamento étnico. Hoje, os índios vivem em casas de alvenaria como as daqueles conjuntos habitacionais das periferias das grandes cidades.
Pelo projeto, ao lado de um conjunto de 8 casas tradicionais, com cobertura e paredes de palha trançada, será feito um centro cultural de 650 metros quadrados, com conexões para internet, acervo de foto, vídeo e DVDs, salas de exposição e feira de artesanato.
Além disso, serão replantadas frutas, ervas e árvores que sumiram da região, como o jatobá e o aru, devido à ação dos plantadores de soja. Cinco selecionadas famílias bororo vão viver no complexo. O projeto, estimado em R$ 3,5 milhões, tem o apoio do Instituto de Tradições Indígenas (Ideti), que reúne 5 nações (krenak, xavante, kaxinawá, guarani e bororo). "Que isso sirva de exemplo, para que os brancos sentem com a gente, em vez de dizer como é que devemos fazer", disse o presidente do Ideti, o xavante Jurandir Siridiwê.
Na Aldeia Merure, depois de um ritual para chamar a alegria no meio do mato, iluminado por fogueiras, o índio desce do caminhão e brinca com o cinegrafista, imitando a turma do hip hop. "Tá ligado, mano?". Num momento em que os conflitos entre índios e brancos resultam em chacinas terríveis, como a que os cinta-larga inflingiram aos garimpeiros de Rondônia, é melhor ficar ligado na questão indígena.

OESP, 19/04/2004, Caderno 2, p. D1

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