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São Paulo ganha santuário de chimpanzés

FSP, Ciência, p. A15
26 de Set de 2005

São Paulo ganha santuário de chimpanzés
Pesquisa inédita no Brasil monitora formação de grupo social em cativeiro com 37 animais no interior do Estado

Reinaldo José Lopes

Antropólogos da USP estão se preparando para assistir de camarote aos primeiros passos de uma história fascinante de alianças, intrigas, amizade e traição -e nem vão precisar acompanhar a próxima novela das oito para isso. A idéia é monitorar a formação de um dos primeiros grupos sociais de chimpanzés em cativeiro no Brasil, num santuário de grandes primatas perto de Sorocaba criado pelo empresário e microbiólogo Pedro Ynterian.
Além de ajudar a responder a algumas das incógnitas que ainda pairam sobre a vida em sociedade da espécie, o esforço pode ajudar na reintrodução de alguns dos 37 chimpanzés do santuário em seu ambiente natural -coisa que, infelizmente, ninguém ainda sabe direito como fazer. A iniciativa vem numa das piores horas da história da espécie: sua população selvagem pode estar encolhendo para apenas dezenas de milhares de indivíduos.
O antropólogo Rui Murrieta, do Instituto de Biociências da USP, conta que a idéia é ser o menos invasivo possível. "A gente deve passar os primeiros seis meses do ano que vem acompanhando a formação desse grupo sem nenhum tipo de intervenção. Queremos ver como se dão as alianças, os conflitos e também verificar qual o papel da presença humana no comportamento deles. Depois, pouco a pouco, a idéia é introduzir estímulos que possam aumentar a coesão entre o grupo e o encoraje à resolução de problemas."
O elenco da novela símia deverá ser composto principalmente pelas crianças e adolescentes do santuário, os quais têm mais chance de desenvolver vida social saudável de acordo com os padrões da espécie. Vários dos bebês chimpanzés, como Guga, 6, Emílio, 4, e Carlos, 5, já passam a maior parte do dia brincando juntos, num dos recintos com cerca elétrica do sítio Velho Jatobá.
Juventude primata
Guga, aliás, foi o estopim que levou Pedro Ynterian, de origem cubana, a idealizar o santuário, há seis anos. "O Guga tinha sido rejeitado pela mãe, e nós o trouxemos para morar conosco em São Paulo quando ele tinha três meses", conta Ynterian, caminhando por entre os vários recintos do complexo. "Foi aí que eu percebi o erro que tinha cometido." Por mais fofos que sejam, filhotes de chimpanzé começam a revirar a casa muito mais cedo que bebês humanos, e logo ganham uma força desproporcional em relação ao seu tamanho.
Sem saber o que fazer com Guga, Ynterian pôs-se a estudar tudo sobre a espécie e acabou decidindo transformar o criatório conservacionista que já tinha (com animais brasileiros) num refúgio para chimpanzés maltratados em circos e zoológicos. Por conta dos maus-tratos, vários dos adultos têm problemas de comportamento.
"Numa espécie como essa, que é altamente social e que depende de um longo período de aprendizado, como nós, a vida em isolamento ou na companhia apenas de humanos acaba causando problemas terríveis", explica Murrieta. É por isso que as maiores esperanças de criar um grupo social estável são depositadas nos filhotes do santuário.
Para Murrieta, a pesquisa sobre o comportamento dos chimpanzés está entrando numa nova fase, e o santuário em Sorocaba pode fazer parte desse avanço. "Até agora, nós tivemos dados sobre alguns grupos na natureza e em cativeiro, mas relativamente pouca comparação entre grupos", analisa. Em alguns casos, isso pode ter favorecido algumas análises forçadas, ou que não refletem de forma adequada a diversidade de comportamento da espécie.
Os estudos das últimas décadas têm apontado um conjunto impressionante de estratégias sociais, tecnológicas e culturais. O uso de ferramentas parece ser generalizado, mas varia de forma significativa de região para região, e até de bando para bando. Fala-se na formação de coalizões entre membros subordinados de um grupo para "derrubar do poder" o macho que os domina.
Há também debates sobre o grau de agressividade e xenofobia inato aos chimpanzés, que poderia abrir uma janela sobre a origem desse tipo de instinto em humanos. Ainda há que conteste, por exemplo, a existência de "guerras" entre grupos da espécie. "A gente está no momento de pegar essa plêiade de questões e tentar sair do universo hipotético", conclui Murrieta.

Animais trazem traumas de cativeiro
Carolina é ciumenta, Luck é carente, Billy Júnior, hiperativo. Um giro rápido pelo santuário de grandes primatas tem uma semelhança curiosa com folhear um álbum de família -e nem é preciso que algum primo comente as fotos que vão passando. A personalidade de cada "parente" está quase escrita na testa.
Algumas coisas, no entanto, parecem não depender muito de personalidade. Todos os bichos têm uma fascinação inexplicável por calçados humanos de todos os tipos: se o visitante coloca o tênis entre os vãos da cerca elétrica do recinto dos menores, logo vê sua sola sob o cerco de um batalhão de primatas, que arranham, cheiram, mordiscam e puxam.
E, com exceção dos mais traumatizados ou carrancudos, a pose básica dos macacos diante de um recém-chegado é idêntica: mão estendida para fora da cerca ou da grade, pedindo um toque. A necessidade de contato físico dos bichos é impressionante, e chega ao extremo com Luck, um adolescente que sempre interagiu mais com humanos do que com os de sua espécie.
"Cadê meu macacão?", brinca Murrieta ao entrar na mistura de dormitório e comedouro que fica colada ao recinto aberto onde Luck passa a maior parte do dia. É preciso um tempo para se dar conta de que o barulho possante e gutural que Luck (um macho grande e musculoso) está fazendo é de alegria pura. "Isso aí é só festa", diz o antropólogo, tentando acalmar quem nunca viu espetáculo semelhante tão de perto.
Como quase todos os outros machos que chegaram ao santuário depois da primeira infância, Luck não se interessa sexualmente pelas fêmeas, embora fique especialmente contente com a visita de mulheres humanas, segundo Ynterian. Por conta disso, só dois nascimentos aconteceram no santuário até hoje. Num deles, o filhote, prematuro, acabou morrendo. O outro foi o de Luísa, hoje com dois anos, filha de Gilberto e Ditty. "No fim, o controle de natalidade é feito naturalmente, mas não tentamos impedir que as fêmeas tenham bebês. Os filhotes são importantes para a vida social deles, tornam-se o centro das atenções", conta Ynterian.

Histórias de horror
A impotência, na verdade, é o menor dos problemas que os bichos mais velhos ali tiveram de enfrentar. Há vários casos de animais perturbados, que comem as próprias fezes ou se automutilam, como Caco, que chegou a receber antidepressivos para escapar do pior das crises.
Outros tiveram todos os dentes arrancados para evitar que mordessem seus donos humanos no circo ou em outros lugares. Com mais de 95% da constituição genética do Homo sapiens -segundo dados do genoma, recém-publicado- não dá para esperar que sejam anjinhos. Carolina, por exemplo, uma fêmea que hoje vive ao lado do argentino Alex, faz a pose clássica da mão para fora apenas para puxar com força quem se arriscar a tocá-la. E morre de ciúmes de seu companheiro.
Além do estudo que será desenvolvido por Murrieta e seus colegas, o santuário integra o GAP (Projeto dos Grandes Macacos, na sigla inglesa), uma iniciativa criada pelo filósofo australiano Peter Singer, da Universidade Princeton (EUA), e apoiada por alguns dos principais primatologistas do mundo. Sua meta é ambiciosa: usar os argumentos científicos sobre a proximidade entre humanos e grandes macacos e sobre a vida complexa desses bichos para que eles alcancem status moral de pessoa. Isso significaria direito à vida, à liberdade e proteção contra o sofrimento físico -mesmo que infligido em benefício dos seres humanos.
Alheios ao debate, no fim da tarde os bichos só pensam numa coisa: as guloseimas (e o leite dos menores) que Ynterian distribui diariamente. Como um pai coruja, ele não consegue deixar o ritual de lado. Ao ver Ynterian, sua mulher, Vânia, e seu filho, Lucas, brincando com os bebês no fim do dia, dá para antever um novo desafio: deixar, um dia, que os macacos sigam suas vidas.
"Vai ser difícil para todos, mas, se num futuro muito longínquo a gente for pensar numa reintrodução na natureza, os chimpanzés precisam ficar menos dependentes emocionalmente do contato com humanos", diz Murrieta. (RJL)

FSP, 26/09/2005, Ciência, p. A15

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