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Sampa para todas as tribos

OESP, Suplemento Feminino, p.F5
28 de Fev de 2004

Sampa para todas as tribos
Na vasta extensão da capital paulista e dentro das múltiplas raças que abriga, ainda há índios de várias tribos. Uma das principais é a dos guaranis, nativos de nosso estado, que vivem em três aldeias autênticas, duas na região de Parelheiros e uma no Parque do Jaraguá
Fabiana Caso

É difícil acreditar, mas ainda estamos em São Paulo. O carro percorre uma estrada coberta por vegetação nativa e muitos manacás exibem o colorido das flores roxas e brancas. O centro ficou para trás, há quase duas horas.
Aqui, a região central é a do bairro de Parelheiros, que mais parece uma cidade do interior. Finalmente, alcançamos a estrada de terra João Lang, que dá acesso à aldeia guarani Tenumdeporã, mais conhecida como Morro da Saudade, que se localiza dentro da Área de Proteção Ambiental de Capivari-Monos.
Quando os portugueses chegaram, os guaranis ocupavam a faixa litorânea, desde a região sul até o Espírito Santo. A aldeia de Morro da Saudade foi fundada na década de 50, por algumas famílias de Itanhaém que usavam a região de Parelheiros como passagem para escoar o artesanato para a capital paulista. Hoje, em seus 26 hectares, moram 107 famílias, totalizando 546 pessoas, na conta do cacique Timóteo da Silva, ou Verá Potygua, seu nome guarani, de 33 anos. É ele quem cuida da parte "administrativa" da aldeia.
Ao redor, os olhos percorrem casinhas feitas de pau-a-pique com cobertura de sapê, plantações de mandioca, milho e feijão, um campo de futebol, a grande construção da escola estadual que vai até a oitava série e tem aulas bilíngües, em guarani e português, e um computador onde a população acessa a internet - no momento, o site dos guaranis está em construção.
Outro exemplo do convívio pacífico entre a preservação das raízes e a modernidade é o vestuário: o cacique calça um vistoso tênis, com bermuda e camiseta. Mas as diferenças culturais logo aparecem nos rostos sujos de terra das crianças: elas correm, brincam e rolam pelo chão, sem sombra de repreensões paternas. A língua que se ouve é apenas o guarani, cheio de sons guturais, vogais fechadas e consoantes mudas.
O povo bilíngüe (cuja tribo é apenas guarani e não tupi-guarani, aqueles que conhecemos nos livros da escola) só usa o português para falar com essa repórter. Nos reunimos num banco ao ar livre próximo ao centro espiritual da aldeia, uma grande construção de formato arredondado cheia de fumaça em seu interior, território comandado pelo pajé (o sacerdote da aldeia). A princípio, apenas os homens participam da conversa, fumando um cachimbo com fumo de corda, e o cacique é o porta-voz de postura séria, mas com algo zen.
"Nós plantamos, colhemos as sementes para o artesanato, andamos pelas trilhas até a cachoeira. Sempre fazemos brincadeiras, um jogo, uma dança", conta ele sobre o dia-a-dia na aldeia, sem revelar os mistérios inerentes às práticas religiosas. "Somos acostumados com a amplitude. Queremos mais terras para caçarmos e praticarmos nossos rituais. Até os anos 80, caçávamos antas e pacas na região. Hoje temos que ir muito longe para conseguir algo."
Timidamente, chegam as índias Heloísa Martins Varyju, de 19 anos, e Clarice Honório Jaxuka, da mesma idade, que já é casada e tem dois filhos. Entre os guaranis, as meninas geralmente se casam com 15 ou 16 anos, só com membros da tribo. À parte os traços índios, o temperamento recatado e um sorriso muito especial, pelo visual elas poderiam ser confundidas com as meninas da cidade, vestindo jeans, bijus e blusinhas coloridas. As duas trabalham como agentes de saúde do posto da Fundação Nacional da Saúde (FUNASA) do local, onde há remédios, mas não uma equipe médica de plantão.
Os guaranis ainda usam plantas e ervas medicinais para curar alguns males (os quais eles não revelam), mas para casos mais graves, reivindicam um hospital especial na afastada região.
Apesar de amarem sua aldeia e raramente saírem dela, os índios não se privam da caixa preta que reflete imagens. Pela televisão, os homens gostam de acompanhar os jornais, já as mulheres preferem as novelas.
O artesanato é feito coletivamente por toda a tribo, que trama colares, brincos, cintos e arco e flechas. Esses últimos ainda são usados pelos guaranis na caça. Povo regido pelos ciclos da natureza, durante o período da menstruação, as índias ficam proibidas de sair de casa. "Elas descansam e fazem apenas tarefas leves", conta um dos professores da aldeia, Roberto Veríssimo Karai Tataendy.
Hoje, os guaranis de Morro da Saudade são beneficiados pelo programa Renda Mínima, da Prefeitura, que se soma ao que ganham com a venda do artesanato.
"Mas não é suficiente, porque a maioria das famílias tem dez ou doze filhos", comenta o cacique. Um de seus anseios é desenvolver o turismo no local. Para agendar um passeio, o número de contato é o 5978-4800. Em abril, farão uma apresentação de dança e música no SESC Pompéia, ocasião em que também estarão lançando o CD Memória Viva Guarani, com o canto das crianças. Sua música tradicional é tocada com violão e rabeca, com uma afinação própria.
Além de Morro da Saudade, existem mais duas aldeias guaranis na capital paulista: Krukutu, que também fica na região de Parelheiros, e a do Jaraguá, próxima ao pico. A Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente está coordenando um projeto de educação ambiental nas aldeias que inclui coleta seletiva de lixo e também está incentivando o registro dos costumes e lendas da tribo.

OESP, 28-29/02/2004, p. F5.

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