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Salta uma reserva mal passada à la Lula

OESP, Vida, p. A20
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
08 de Ago de 2007

Salta uma reserva mal passada à la Lula

Marcos Sá Corrêa

Como senha, ela parece à primeira vista complicada demais. Mas, por via das dúvidas, todo brasileiro tradicional deve esforçar-se por decorá-la. Ela deve ser o caminho mais simples para ganhar do Ministério do Meio Ambiente alguns quilômetros quadrados de reserva extrativista.

Eis a fórmula: "Sabendo que o interesse dessas famílias é garantir o direito tradicional de uso sustentável dos recursos necessários a sua subsistência e reprodução social, por meio do acesso à terra e à biodiversidade, acreditamos ser de suma importância para o nosso Estado e mesmo para o cerrado brasileiro, que vem sendo devastado".

Assim, sem tirar nem pôr uma vírgula, ela figura em todas as cartas de recomendação que passaram batidas pelos assessores técnicos da Diretoria de Desenvolvimento Sustentável, em Brasília. Repete-se como um mantra. Engorda processos que resolvem o destino de milhares de hectares em menos de dez folhas. Sumários, os processos atravessam a diretoria como luz em vidraça. Pela agilidade, soam como palavras mágicas.

Nelas só muda o remetente. Num dia, é a Associação Rede Solidária de Agricultores Familiares e Extrativistas do Cerrado, com sede em Goiás, mesmo se, no caso, "o nosso Estado" fica em Lassance, que é um município de Minas. No outro - aliás, uma semana depois - reencarna por meio da Rede de Comercialização Solidária, que tem outro logotipo, mas o mesmo endereço da associação. Ou seja, BR-153, quilômetro 4, Goiânia. Vem assinada por Eliana Rolemberg, de Salvador.

Até aí, a repetição talvez seja um caso de dupla personalidade jurídica. Coincidência mesmo é reencontrar o parágrafo, intacto, no pedido do Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Cerrado - que, por sinal, também fica no quilômetro 4 da BR-153, mas não se deixou intimidar por esse detalhe. Também solicitou providências contra a devastação do "nosso Estado".

Diante desse modelo, chega a ser admirável a pontaria geográfica do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lassance, que fala do "nosso Estado" com a autoridade de quem, pelo menos, está em Minas. Louve-se, igualmente, o empenho pessoal do coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra, que não se contentou em copiar o estribilho. Depois de atestar, como os outros, "o interesse dessas famílias" e patati-patatá, ele soltou a criatividade na frase: "Entendo que essa é a melhor forma de preservação do bioma cerrado".

Isso, mais ou menos, resume o conteúdo das cinco cartas de apoio para a criação da Reserva Extrativista Sempre Viva, em Lassance. O processo traz as assinaturas de 19 agricultores, dos quais 17 puseram no papel os números de seus registros no CPF, provando que até o Brasil tradicional anda moderno.

Os signatários representam as 30 famílias habilitadas pelo processo 02001-724/2005 a compartilhar 19 mil hectares na Sempre Viva. Ela é uma das 14 reservas extrativistas que o governo - como sempre "sabendo que o interesse dessas famílias..." - está implantando em áreas do cerrado. Elas abrangem 204 mil hectares em três Estados. E, juntas, atendem a 550 famílias.

Estão longe de ser incontroversas. A extração de sempre-vivas, por exemplo, tradicionalmente põe fogo no mato para acelerar a brotação das flores, em prejuízo de outras espécies. Mas, pelo tamanho da empreitada, era de se esperar pelo menos que alguém, lá em cima, estivesse cuidando do projeto. A menos que seja essa a maneira que o governo Lula tem de cuidar das coisas.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco

OESP, 08/08/2007, Vida, p. A20

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