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A saga perto do fim

O Estado de S.Paulo, p. A-2 (São Paulo - SP)
Autor: NOVAES, Washington
19 de Abr de 2002

Neste 19 de abril, em que se comemora o Dia do Índio, os jornais estão povoados de notícias inquietantes para eles. Uma das últimas dá conta de que, mais uma vez, os avás-canoeiros estão ameaçados de ter de sair de suas terras, agora inundadas pela Hidrelétrica de Cana Brava, que enche seu reservatório. Antes, foi a usina de Serra da Mesa que os expulsou. Antes e antes...

É uma das histórias mais dramáticas do Brasil a saga dos avás-canoeiros, que sofreram vários massacres e tiveram de fugir de lugar em lugar, até se refugiarem no nordeste de Goiás, quando já eram apenas seis pessoas, entre elas duas crianças, que enfrentarão uma alternativa dramática: o incesto (são irmã e irmão), única possibilidade de sobrevivência da etnia ou a miscigenação e o fim de um povo e sua história, sua cultura única, sua língua.

Ainda recentemente, o antropólogo Mário Arruda, da Universidade Católica de Goiás, e a musicista Maria Augusta Callado, da Universidade Federal de Goiás, narraram a triste e bela história de sua tentativa de preservar sons musicais únicos, produzidos pelos avás num tronco de tamboril escavado, sobre o qual se estendem cordas de tripas de macaco. Só que, com as seguidas expulsões, os avás já não dispõem de tamboril nem de macacos, agora fazem seu instrumento com canos de PVC.

História banal num país que despreza sua rica diversidade cultural. Diz o Relatório Nacional para a Convenção sobre a Diversidade Biológica (Ministério do Meio Ambiente, 1998) que em 1500 havia no Brasil mais de 350 etnias, mais de 1.400 grupos, mais de 5 milhões de indivíduos. Cinco séculos depois, assegura a Comissão Pós-Conferência Indígena (2001) que restam 225 etnias e 180 idiomas, 350 mil pessoas em 561 áreas reconhecidas, mas na sua grande maioria não demarcadas; nas cidades, mais de 150 mil índios. Ao todo, 551 mil índios. E ainda há 53 grupos não contatados. Mas, afirma aquele relatório, só entre 1900 e 1957 desapareceram 87 etnias. Hoje, seriam pelo menos 20 ameaçadas de igual destino.

Ainda há poucas semanas, noticiou este jornal que os guaranis-caiovás de Mato Grosso do Sul ameaçavam suicidar-se coletivamente se fossem despejados das últimas terras que ocupam. Outra longa história, com suicídio atrás de suicídio, centenas deles, ano após ano. Os guaranis-caiovás não podem ser índios, porque as poucas terras que lhes restaram não lhes permitem viver como seus antepassados. Fora de sua cultura, sem qualificação específica para outra, estão condenados à triste e quase fatal trajetória de bóia-fria, alcoólatra, mendigo, louco. "Eu não tenho lugar", deixou escrito na areia, sob seus pés, um jovem índio recém-casado, que se enforcou numa árvore.

Não são apenas os guaranis-caiovás. Os pataxós-hã-hã-hães estão com freqüência nos jornais, tentando que a Justiça impeça que invasores os continuem espancando, matando, expulsando. Os cintas-largas de Roraima estão sendo assassinados e torturados por invasores de sua área em busca de diamantes, com a cumplicidade de funcionários de áreas oficiais. Os xukurus de Pernambuco exumam o cadáver de seu chefe Chicão, para esclarecer seu assassinato. Em Rondônia, até novos municípios se criam dentro da área indígena Raposa-Serra do Sol, para impedir sua consolidação. Os craôs-canelas pedem socorro ao Congresso para recuperar sua área na Ilha do Bananal, de onde foram expulsos por uma cervejaria (a ilha, que deveria ser só reserva indígena e parque nacional, continua ocupada por 45 mil cabeças de gado de fazendeiros de fora).

Também há algumas notícias positivas. A mortalidade infantil entre índios, segundo o IBGE, caiu 21% entre 1991 e 2000, de 94 por 1.000 para 74,3. Mas ainda está uns 50% acima da média brasileira. E pode sofrer com a extinção da Funasa, que cuidava da saúde dos índios.

É difícil entender, numa época em que se defendem direitos humanos em todo o mundo. Mais difícil ainda entender o desprezo pela riqueza cultural de tantas etnias. Quem já esteve entre índios que conseguem preservar seus formatos culturais se admira com a riqueza de suas manifestações, sua música, suas festas. Aprende com os formatos próprios e únicos de viver de cada grupo, principalmente com a capacidade de não sobrecarregar o ambiente que os cerca. Maravilha-se com o respeito pelas crianças. E a antropologia está sempre e sempre chamando a atenção para os formatos sociais e políticos que apontam para muitas das utopia humanas - a sociedade sem poder (o chefe não manda, não dá ordens), a informação aberta (o que um sabe todos podem aprender), a propriedade coletiva da terra, a auto-suficiência no nível pessoal (um índio na força de sua cultura sabe fazer tudo de que precisa).

Muito luxo. Principalmente para as nossas culturas, não-índias, que já vivem a insustentabilidade, segundo vários relatórios internacionais.

Muita possibilidade até de soluções decisivas, na hora em que a biodiversidade se torna o caminho do futuro (mas ainda não se reconhecem os conhecimentos indígenas nessa área).

Temos um mínimo de obrigação: exigir que o Congresso Nacional discuta e aprove o Estatuto do Índio, cujo projeto ali se arrasta há mais de uma década. É um desrespeito, comandado por lobbies que defendem madeireiras, pecuaristas invasores, mineradores e outros interessados em terras indígenas - quando não os votos desses grupos.

Há alguns séculos, um papa precisou promulgar uma bula, dizendo que índio tem alma, para que cessassem os pretextos para a escravidão. A Igreja está pedindo perdão pela conivência com muitas atrocidades. A CNBB proclama 2002 o ano da fraternidade com os povos indígenas. Já passou da hora de ouvir. E reconhecer.

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