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Ruptura democrática no Brasil agrava política indigenista

Carta Maior - https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria
22 de Ago de 2018

Ruptura democrática no Brasil agrava política indigenista
Forças políticas e econômicas tomaram de assalto a Constituição e os territórios dos povos indígenas, detentores de direitos originários sobre o que representa refúgios da biodiversidade do planeta

Por Erika Morhy

O impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, conseguiu agravar um cenário que já vinha sendo deplorável, com a afronta constitucional aos direitos dos povos indígenas, grupos sociais que, junto com as demais populações tradicionais, manejam 95% dos recursos genéticos do mundo. O paradoxo está manifesto em disputas travadas por indígenas, indigenistas e ambientalistas junto aos três poderes da República, com notáveis vantagens a quem explora economicamente de forma acintosa os territórios de mais de 800 mil indígenas que habitam o Brasil, pondo em risco a própria existência desses povos.

Um dos mais recentes imbróglios se assenta no enfrentamento jurídico junto à Advocacia Geral da União (AGU), alvo de severas críticas devido às restrições para demarcações de terras indígenas impostas pelo parecer 001/2017. Em carta emitida no último dia 09 de agosto, 126 organizações da sociedade civil, membros do coletivo Mobilização Nacional Indígena (MNI), pedem a imediata revogação do arbítrio, já solicitada também pelo Ministério Público Federal (MPF). De acordo com o parecer, a administração pública deve adotar como regra para todos os processos de demarcação de terras indígenas as condicionantes estabelecidas no julgamento da ação popular tratada na Petição n.3.388, de 2013, sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. É nas ementas que mora o perigo, especialmente em duas delas: a que trata do chamado marco temporal de ocupação e a que descreve o conceito de esbulho renitente.

Publicado este ano, sob organização de Manuela Carneiro da Cunha e Samuel Barbosa, a obra "Direitos dos povos indígenas em disputa" (Editora Unesp, 2018) tem como eixo central o minucioso parecer do constitucionalista José Afonso da Silva sobre a ilegitimidade das diretrizes estabelecidas no julgamento, que, segundo explicita, requer a observação da natureza dos direitos dos índios e de referências históricas sobre sua evolução. Professor titular aposentado da Universidade de São Paulo (USP), ele descreve um a um os direitos dos indígenas reconhecidos e firmados ainda durante o período colonial. Alcança, em seguida, a primeira Constituição a acolher expressamente o indigenato, a de 1934, e a incorporação desses princípios no art.231 da Constituição de 1988 em vigor. Evidencia, assim, os direitos originários dos povos indígenas.

O constitucionalista põe em xeque o acórdão também na medida em que este fixa a data da promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 como marco temporal de ocupação das terras indígenas por quem de direito originário e confere à interpretação uma dimensão normativa aplicável a todos os casos de ocupação. José Afonso da Silva conclui que, se os direitos originários são "reconhecidos", conforme preceitua a Carta Magna, e não "conferidos", é porque já existiam antes da Constituição. "A Constituição de 1988 é o último elo do reconhecimento jurídico-constitucional dessa continuidade histórica dos direitos originários dos índios sobre suas terras e, assim, não é o marco temporal desses direitos, como estabeleceu o acórdão da Pet. N.3.388", resume o jurista.

O marco temporal estabelecido ignora, igualmente, conforme destaca o parecer de José Afonso da Silva, as pesquisas e relatórios da Comissão Nacional da Verdade, emitidos em 2014, em que estão especificadas graves violações aos direitos humanos contra povos indígenas perpetradas por agentes do Estado, entre os anos de 1946-1988, tendo sido deslocados à força para outras áreas. Vários casos ocorreram contra os Guarani-Kaiowá e os Ava-Guarani, em Mato Grosso do Sul e oeste do Paraná.

Na investida em favor de quem usurpa terras indígenas, está a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal para o esbulho renitente, contestado em quatro argumentos por José Afonso da Silva. Entre eles, o esdrúxulo de uma controvérsia possessória judicializada que exige dos indígenas não só o ônus da prova, mas uma tutela pelo direito civil, quando o são pelo direito constitucional.

Legisladores - Professora emérita da Universidade de Chicago e figura de grande influência na Constituinte, a antropóloga luso-brasileira Manuela Carneiro da Cunha é taxativa: "A Constituição de 1988 é muito importante de ser defendida. Mas ela está sendo torpedeada. Temos o Supremo dividido e talvez os únicos que estão defendendo esses direitos seja o Ministério Público Federal". Em voz mansa, aponta certeira. "Quem manda hoje no país é o agronegócio. Exige o que quer e está garantindo o governo Temer até agora. Tenta acabar com os direitos dos índios e das populações tradicionais: acabar com licenciamento, ampliar o uso de agrotóxicos sem entraves...", indigna-se.

Ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP), Manuela menciona o poder da chamada Bancada do Boi e sua articulação com as demais frentes parlamentares no Congresso contra as garantias dos povos indígenas. "Propõem uma série de emendas constitucionais, como a que pretende passar o processo de demarcação de áreas indígenas da União e para o Congresso, que é emenda constitucional 215", exemplifica. A PEC propõe também a proibição da ampliação das terras já demarcadas e pretende garantir indenização aos proprietários de áreas dentro dessas reservas.

Integrante da Frente Parlamentar Ambientalista, o deputado Edmilson Rodrigues (Psol-PA) contabilizou, em 2016, quando as novas regras para demarcação de terras indígenas ficaram prontas para votação no Plenário da Câmara, 228 processos de homologação prontos e 144 processos sub judice. O presidente Temer não homologou nenhuma Terra Indígena até agora, o que o remete ao pior desempenho presidencial desde 1985, segundo análise do Instituto Sócio Ambiental (ISA).

A postura do Executivo, Legislativo e Judiciário brasileiros vai na contra mão dos conhecimentos produzidos internacionalmente sobre o papel dessas populações para a subsistência do próprio planeta. Manuela Carneiro da Cunha integra uma força tarefa da Plataforma Intergovernamental da Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos e anuncia que, "vai sair daqui a alguns meses, o diagnóstico global da biodiversidade. Nela se mostra que 95% dos recursos genéticos do nosso planeta estão sendo manejados por povos tradicionais. Quer dizer, na biodiversidade, o papel deles é absolutamente central". Ela esteve na capital paraense, na segunda semana de agosto, durante o XVI Congresso da Sociedade Internacional de Etnobiologia, que celebrou a Declaração de Belém, em que povos e comunidades tradicionais de mais de 50 países defendem os critérios de respeito aos seus territórios, liberdade de gestão e autodeterminação de seus modos de vida.

Resistência - Ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), o antropólogo Márcio Meira ressalta a urgência de se aproveitar as eleições de 2018 para mudar a correlação de forças inclusive dentro das casas legislativas. "É ali que vai se decidir muito do que nós queremos e do que vamos ser do ano que vem p´ra frente", aposta.

As organizações de base, regionais, macro-regionais e nacionais constituídas por povos indígenas precisam ser tidas como os canais principais de diálogo sobre a política indigenista e têm obtido alianças dentro das universidades públicas, instituições de pesquisa, entidades não-governamentais, organizações da sociedade civil e de partidos políticos representativos da esquerda, analisa Márcio Meira. Foi na relação estreita com os povos indígenas que se pode dar início à Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Pngati), processo acolhido pelo Poder Executivo na gestão do então presidente Lula, em 2008, e decretado como lei pela presidenta Dilma, em 2012. "De alguma forma, ela é uma virada de página na política indigenista brasileira, do regime de tutela para o respeito a autonomia sociocultural indígena", arremata.

Ele reconhece que os procedimentos administrativos são complexos e podem demorar alguns anos até sua implantação, mas o cenário atual é chocante. "A Funai foi entregue a ruralistas, evangélicos e militares. Aos que não querem que a política indigenista se efetive. Desde quando foi promulgada a Constituição de 1988, você pode ter variações no número de demarcações, mas nunca haviam parado", compara.

Márcio Meira pondera que o corpo funcional da Funai também é composto por concursados que resistem às adversidades e que, acima de tudo, os povos indígenas estão ativos no enfrentamento. E as próximas eleições ainda poderão recolocar o Brasil no eixo do Estado Democrático de Direito. Ele dá destaque para a presença da liderança indígena Sônia Guajajara, como vice-presidenta na candidatura de Guilherme Boulos (Psol), mas deposita na legítima participação do ex-presidente Lula nas eleições sua confiança em um prognóstico democrático para o país.

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