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Rota da biotecnologia

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: GRAZIANO, Xico
09 de Dez de 2003

Rota da biotecnologia

Xico Graziano

Não teria graça o Natal, se não fosse a agricultura. Na ceia, fé e esperança se misturam com a comilança. Carnes, frutas e guloseimas recheiam as orações natalinas, trazendo o gosto do campo.
No passado, a caça servida espelhava a força bruta do homem. Hoje, saboreia-se pura tecnologia. A refeição é uma vitrine da moderna agropecuária. Nela se referencia, inconsciente, a biotecnologia. Duvida?
Lembre-se do chester, peru parecido com frango. Desenvolvido pelo melhoramento genético, surgiu criado pela tecnologia. O bicho não é transgênico, mas inova no reino dos galináceos.
Nectarina deriva do pêssego, mas parece ameixa. Uvas sem sementes, multicoloridas, provocam o pensamento: antes tudo era "uva Itália", importada, caríssima. Hoje as delícias se esparramam pelo acalorado Noroeste Paulista e pelo árido Nordeste.
Alimentos modificados geneticamente fazem parte da humanidade há séculos. Os povos ancestrais, ao guardarem a melhor semente para o plantio, sem o saber cultuavam a ciência. Somente há 50 anos, porém, os cientistas começaram a desvendar os profundos mistérios da reprodução, fundando as bases da genética moderna.
Aceleraram-se, a partir de então, as alterações nas plantas e nos animais.
Cruzamentos híbridos permitiram um salto na produtividade das lavouras e, posteriormente, das criações. Além da seleção, mutações genéticas foram forçadas pela irradiação nuclear.
Muita ciência se esconde no caminho do frango caipira da roça até chegar ao frango assado da padaria. As raças modernas de galinhas perderam o instinto maternal, transformadas em verdadeiras máquinas de postura de ovos. Suas antepassadas, encontradas nos sítios do interior, namoram galos, chocam e criam seus pintinhos. Elas, não. Somente botam ovos, felizes da vida, sem saber o prazer que deixaram para trás na rota da tecnologia.
Agora, o salto da biotecnologia atinge a estratosfera com a engenharia genética. Ao descobrirem que os genes podem ser transferidos entre as espécies, os pesquisadores prescindem dos cruzamentos sexuados para obter descendentes favoráveis. A tecnologia torna-se mais rápida e segura por meio da manipulação dos cromossomos.
Entretanto, por razões que ninguém sabe direito explicar, a biotecnologia chegou criando uma celeuma incrível na sociedade. Ao contrário da evolução anterior, aceita com gosto especialmente pelas massas urbanas, grupos mobilizados renegam os resultados da engenharia genética. Os alimentos transgênicos quase viraram bicho-papão. Por quê?
Uns dizem que as grandes multinacionais, disputando primazia no mercado, se engalfinharam numa disputa comercial que, afinal, saiu de seu controle. Por trás dessa contenda estariam os interesses estratégicos da União Européia versus os dos Estados Unidos, os primeiros atrasados em relação aos segundos. Daí surgiu a proposta de moratória por cinco anos: os europeus precisavam de tempo para investir em biotecnologia. Faz sentido.
Resistentes aos vírus, pragas e doenças, as plantas no futuro dispensarão as pulverizações de pesticidas. Por isso há quem afirme que as empresas de agrotóxicos financiam ONGs para azedar o caldo da biotecnologia. Embaralham o jogo, enquanto se preparam para o novo ambiente competitivo. Pode ser.
No plano espiritual, supunha-se que Deus ou a religião se opunham à transgenia. Mas, de forma oficial, o Vaticano já esclareceu que está a favor da ciência, embora continue contra a camisinha. Restou o medieval temor do desconhecido.
Alardeia-se, também, que os transgênicos seriam armas do neoliberalismo. Os grandes capitalistas, pode-se pensar, querem dominar as nações pobres.
Todavia, depois que se soube que a China é o país que mais investe em transgênicos, caiu a máscara da ideologia. Além de comunista, lá só tem pequeno agricultor familiar. A esquerda boba perdeu o discurso.
Pouco importa descobrir as razões. O fato concreto é que, fruto da discórdia irracional, as pesquisas com biotecnologia no Brasil estão paralisadas há três anos, desde que se contestou judicialmente a liberação, pela CTNBio, da soja RR. Politicamente, os transgênicos viraram gênios do mal.
Com o vazio jurídico, os órgãos ambientais se arvoraram no direito de legislar, criando empecilhos burocráticos insuperáveis. Laboratórios de excelência nas universidades e nos institutos de pesquisa aguardam autorizações descabidas para dar continuidade a seus trabalhos em biotecnologia. Um atraso de vida.
A Embrapa, a maior e melhor empresa pública de pesquisa agropecuária do mundo, está realizando pesquisas no exterior, vistas as limitações internas estabelecidas. Experimentos com banana e feijão transgênicos foram montados, respectivamente, em Honduras e nos Estados Unidos. É esdrúxulo.
Cerceada na pesquisa, baixou o obscurantismo na Embrapa. Seus pesquisadores foram constrangidos, pela direção superior, em se manifestar publicamente sobre o projeto de lei encaminhado pelo governo ao Congresso. Patrulha petista cega.
Há um clima de apreensão na comunidade científica, agravado com a proposta de incluir, na composição da CTNBio, oito representantes de entidades civis, politizando as decisões do órgão técnico. Significa um tapa na cara da ciência nacional.
Para enfrentar o receio sobre os produtos transgênicos há somente um caminho: investir fortemente no conhecimento. Os pesquisadores querem liberdade para pesquisar, sem burocracia, visando a oferecer à sociedade produtos simultaneamente avançados e seguros. Como fizeram, há tempos, com o chester e a nectarina, que deliciam o apetite. Ou com a insulina, transgenia pura, que salva tantas vidas.
O controle social da ciência é virtude da modernidade. Tolher seu exercício é burrice das grossas. Uma condenação ao passado.

Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98) E-mail: xicograziano@terra.com.br

OESP, 09/12/2003, Espaço Aberto, p. A2

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