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Rota costeira para a América ganha força

FSP, Ciência, p. A8
02 de Jan de 2004

Rota costeira para a América ganha força
Reunião de geólogos nos EUA debate qual teria sido a porta de entrada dos primeiros homens no continente

Ricardo Bonalume Neto

Como e quando os primeiros habitantes das Américas chegaram ao Novo Mundo é um dos maiores mistérios da arqueologia. Foi por uma rota costeira ou por um corredor livre de geleiras, no interior do continente? Uma série de trabalhos apresentados na última reunião da Sociedade Geológica Americana lançou mais luz sobre o tema, além de indicar áreas para pesquisas futuras.
"Embora nós não tenhamos resolvido nesse encontro a questão de quando e como as Américas foram colonizadas primeiro, eu fiquei espantado ao perceber que a maior parte das pessoas parecia defender uma migração costeira. É a primeira vez que eu vejo isso", disse à Folha um participante, o antropólogo Jon M. Erlandson, da Universidade do Oregon, em Eugene (Costa Oeste dos EUA).
"A maior parte dos participantes nesse simpósio acredita na rota costeira, mas há muitos por aí que acreditam no corredor. Há hipóteses interessantes sobre a rota costeira, a maioria achando que os meios de transporte tenham sido barcos", afirma outra participante, a antropóloga Charlotte Beck, do Hamilton College, de Clinton, Estado de Nova York.
Uma ponte de terra ligando Ásia e América do Norte (veja mapa acima, à direita) surgiu durante um período de glaciação entre 70 mil e 50 mil anos atrás, "secando" o estreito de Bering. Com mais água na forma de gelo, o nível do mar desceu, criando uma rota terrestre, a Beríngia, para a colonização das Américas.
Com o aquecimento posterior, a área de terra foi diminuindo, mas até cerca de 23 mil anos atrás a ponte ainda podia ser usada por levas migratórias. Em momentos posteriores também houve "janelas de oportunidade", com a rota transitável em períodos de duração variada.
A presença de geleiras, porém, complicaria a passagem pelo interior do continente. Uma rota ao longo da costa do Alasca (EUA), do Canadá e de outros Estados americanos poderia ter sido uma opção mais atraente para os migrantes. A tecnologia para isso já existia 50 mil anos atrás, quando humanos chegaram à Austrália cruzando o mar aberto -certamente com a ajuda de barcos.
"Pessoalmente, suspeito que ambas as rotas, costeira e interior, foram usadas, e que o povoamento das Américas foi um processo complexo marcado por migrações múltiplas", diz Erlandson.

Rodovia das algas
Um dos argumentos em prol de uma rota seguindo a costa ao longo do Pacífico Norte é a existência de florestas de algas desde o Japão até a Baixa Califórnia, no México, e em muitos pontos da costa andina sul-americana.
"Essas florestas de algas são ambientes marinhos altamente produtivos, que podem ter proporcionado conjuntos semelhantes de recursos, assim como águas protegidas para os barcos e para os povos marítimos que podem ter migrado para as Américas no final do Pleistoceno."
"Essa teoria da "rodovia das algas" é ainda bem hipotética, embora algumas das evidências mais antigas de uso de recursos costeiros venham da Califórnia e do Peru", diz o antropólogo.
A busca de pistas sobre as rotas mobiliza antropólogos, geólogos e arqueólogos.
"Não há muito consenso sobre quando os seres humanos viajaram pela costa. Nosso trabalho sugere que pode ter havido uma janela de oportunidade entre 18 mil e 16 mil anos atrás, quando uma rota livre de gelo existiu na costa noroeste da América do Norte", diz o geólogo Majid Al-Suwaidi, que pesquisa no momento na Universidade Simon Fraser, no Canadá.
"O ambiente era favorável nessa época. A descoberta de um osso de cabra montanhesa sugere que grandes animais estavam presentes, além das espécies de peixe e ave, e poderiam suprir comida aos migrantes. Depois desse período, condições glaciais completas teriam tornado difícil que as pessoas sobrevivessem", afirma Al-Suwaidi.
As datas de passagem pelo extremo norte do continente são importantes para tentar entender como seres humanos foram parar no extremo sul.
Até a década de 1990, a maioria dos arqueólogos defendia que o sítio mais antigo do continente era o de Clovis, nos EUA, datado de 11,5 mil anos atrás. A cultura típica do sítio, observável em vários outros pontos, ainda é chamada de Clovis. Mas hoje não se duvida mais que havia seres humanos habitando o sul do Chile há 12,5 mil anos, no sítio arqueológico de Monte Verde. Para estarem ali, seus ancestrais teriam de ter passado a ponte da Beríngia muito antes da era Clovis.
"Há um artigo interessante na [revista especializada] "Quaternary Science Reviews" que faz uma simulação da migração costeira, e eles concluem que as pessoas não poderiam ter chegado a Monte Verde no tempo previsto. O problema é a falta de evidências, que estão muito provavelmente debaixo d'água", diz a antropóloga Charlotte Beck. "Por outro lado, isso é apenas uma simulação", declara ela.

Pelo norte e pelo sul
A rota noroeste-sul é a mais discutida, mas há também quem defenda a migração vinda da Europa -com base na semelhança de algumas ferramentas de pedra-, ou pelo Pacífico Sul. Essa última hipótese facilitaria explicar a presença antiga em Monte Verde.
"Eu acredito que o povoamento das Américas pode ter sido feito a partir de duas direções, sul e norte. Outros compartilham essa idéia", diz o arqueólogo Rolfe Mandel, do Kansas Geological Survey, da Universidade do Kansas em Lawrence.
Mandel edita uma revista científica, "Geoarchaeology: An International Journal", que recebeu recentemente um artigo sobre a possibilidade de seres humanos terem pulado de ilha em ilha pelo Pacífico Sul até atingir a costa oeste da América do Sul, também no momento em que os oceanos tinham seu nível mais baixo durante a Era do Gelo.
"Resumindo, o debate sobre o tempo da chegada e as rotas dos primeiros americanos provavelmente vai continuar por muitos anos", conclui Mandel.

Humanos chegaram ao Ártico há 27 mil anos, afirma estudo russo

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Ferramentas de pedra e osso e restos de grandes mamíferos sugerem que os seres humanos dominaram o Ártico, um dos ambientes mais inóspitos do planeta, há 27 mil anos -em plena Era do Gelo, e 13 mil anos antes do que os cientistas imaginavam.
O achado, feito por arqueólogos russos à margem de um rio no coração da Sibéria, inclui uma peça intrigante no quebra-cabeças do povoamento da América, cujos habitantes originais teriam vindo dessa região asiática.
É que os instrumentos fabricados pelos primeiros desbravadores do Ártico têm uma semelhança intrigante com os da cultura Clovis, considerada a mais antiga da América do Norte -e nada menos que 16 mil anos mais recente que os achados siberianos. Teoricamente, portanto, o salto para o outro lado do Pacífico, em direção à América, poderia ter acontecido bem antes da data mais aceita hoje.
Vladimir Pitulko e seus colegas do Instituto de História da Cultura Material da Academia Russa de Ciências, autores do estudo que sai hoje na revista "Science" (www.sciencemag.org), exploraram uma área ainda pouco conhecida em termos arqueológicos, cerca de 100 km antes da foz do rio Yana, um dos mais importantes da Sibéria, que deságua no gelado mar de Laptev.
Foi a descoberta de um estranho artefato feito de chifre de rinoceronte lanoso (Coelodonta antiquitatis, parente extinto dos rinocerontes de hoje) que chamou a atenção dos pesquisadores para a área. "Ele tem uma semelhança impressionante com as hastes de lança da cultura Clovis na América do Norte", escrevem os autores do estudo.
Tais hastes fazem parte de uma sofisticada lança multipeças. Os caçadores de então utilizavam um cabo de lança fixo, ao qual era adicionada uma haste (em geral de material orgânico) e uma ponta de pedra. Os dois últimos eram descartáveis, de forma que o caçador podia espetar o animal, quebrar a haste, trocá-la e voltar à carga -quase o equivalente paleolítico de um fuzil de repetição.
O achado inicial levou Pitulko e seus colegas a explorarem a região com mais cuidado, e logo outra haste de lança feita com o mesmo material veio à tona, assim como ferramentas de pedra e ossos de vários animais -um deles com um pedaço de pedra enfiado dentro dele, prova de que humanos haviam matado o bicho em questão (um cavalo). A idade dos fragmentos gira em torno de 27 mil anos -até então, o sítio arqueológico mais antigo do Ártico tinha só 14 mil anos.
Com base nesses restos, a equipe pôde reconstruir o ambiente habitado por esses antigos caçadores: uma mistura de campinas e tundra, onde rinocerontes lanosos conviviam com manadas de mamute, rena, cavalo, bisão europeu e boi-almiscarado, perseguidas por lobos e leões. A região, apesar de ainda mais fria do que é hoje, nunca teria sido coberta por grandes capas de gelo.
Apesar da semelhança tecnológica com Clovis (cujas hastes de lança em geral eram feitas com marfim de mamute, coisa que aparece também em Yana), ainda é difícil saber qual a relação entre os caçadores de cada lado do Pacífico, dizem os russos.
Para começar, ainda é preciso verificar se a ocupação do Ártico foi duradoura há 27 mil anos. Caso isso se confirme, escrevem os pesquisadores na "Science", "em teoria o povo de Yana poderia ter atravessado a ponte de terra [que existiu entre a Sibéria e América até 23 mil anos atrás]".

FSP, 02/01/2004, Ciência, p. A8

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