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Rodovia BR-158 desponta como vetor de expansão da soja

Repórter Brasil - http://www.reporterbrasil.org.br/
Autor: Thaís Brianezi
15 de Abr de 2009

Previsão de asfaltamento da rodovia no Mato Grosso viabilizaria escoamento da produção pelo Porto de Itaqui, no Maranhão. Chegada de investidores já valoriza terras e agrava conflitos fundiários no chamado Baixo Araguaia

Da região do Baixo Araguaia (MT) - O agronegócio está mudando a dinâmica territorial do Baixo Araguaia, no Mato Grosso. Ao longo da rodovia BR-158, as lavouras de soja começam a dominar a paisagem de uma região onde a principal atividade econômica é a pecuária. As transformações mais marcantes, porém, não vêm das sacas de grãos colhidas no local, mas da expectativa do asfalto que vai viabilizar o escoamento de toda produção sojicultora do nordeste mato-grossense pelo Porto de Itaqui, no Maranhão, rumo ao mercado consumidor europeu.

A BR-158 atravessa o Brasil de Norte a Sul. Ela começa em Altamira, no Pará, e termina em Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, já na fronteira com o Uruguai. Os seus 3.864 quilômetros de extensão também passam pelos estados do Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná e Santa Catarina. A implantação definitiva da rodovia aconteceu no fim da década de 70, mas sua abertura teve início em 1944, dentro do projeto de interiorização idealizado pelo então presidente Getúlio Vargas.

Dos pouco mais de 800 km da BR-158 no Mato Grosso, cerca de 400 km ainda são de estrada de terra esburacada, que se tornam quase intransitáveis no período de chuva. É justamente o trecho que corta o Baixo Araguaia, entre Ribeirão Cascalheira e Vila Rica. Como no Pará a rodovia já está pavimentada, o término do asfaltamento dela no estado vizinho possibilitará o transporte da soja até a ferrovia Carajás e, por ela, ao porto maranhense. Além de Carajás, a mineradora Vale controla outra ferrovia estratégica para o agronegócio na região: a Norte-Sul, que de janeiro a setembro do ano passado transportou 1,1 tonelada de soja e farelo de soja. Ela tem atualmente 200 Km, entre os municípios maranhenses de Açailândia e Porto Franco; mas, até o fim do ano, deve chegar à cidade de Guaraí, no Tocantins, completando 571 Km.

Trocando em miúdos: a pavimentação da BR-158 deixou de ser uma reivindicação apenas de moradores do Baixo Araguaia, como o borracheiro Edson Lopes, que trabalha há dois anos e meio na beira da rodovia e, em duas semanas, só havia consertado um pneu de moto. A pressão pela obra deve ser entendida dentro do modal formado também pelas duas ferrovias, no contexto do projeto do governo federal de melhorar a competitividade logística da produção de soja no país. Não por acaso, portanto, a pavimentação da BR-158/MT consta da lista de obras prioritárias do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Ligação com ferrovia Carajás torna BR-158 estratégica para o escoamento da soja.

O interesse em asfaltar a rodovia, porém, não é só do governo federal, que neste ano aprovou uma previsão orçamentária de R$ 64 milhões para a obra (insuficiente, visto que o custo de 200 Km ultrapassa R$ 158 milhões, de acordo com o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes - DNIT). Ele é principalmente do governo do Mato Grosso, cuja Secretaria de Infra-Estrutura firmou convênio com o DNIT para executar, com verbas estaduais, a pavimentação dos outros 200 Km. Até o fim do ano, o asfalto que hoje termina em Ribeirão Cascalheira deve chegar a Alô Brasil, povoado à beira da BR, no município de Bom Jesus do Araguaia. De lá parte um entroncamento da estrada até Querência, município onde o Grupo André Maggi, da família do governador mato-grossense, produz soja na fazenda Tanguro, que tem 82 mil hectares.

Antes do asfalto

É justamente em Alô Brasil que a Cargill adaptou dois antigos silos de arroz para armazenamento de soja, com capacidade para 100 mil sacas cada um. De acordo com o gerente desta unidade, João Luiz Seresuela, durante a colheita passam por lá 750 mil sacas de soja. "Em 2010, vamos construir um silo novo, ampliando nossa capacidade de armazenamento para 800 mil sacas", revelou o gerente. Segundo ele, a soja armazenada é hoje escoada pelo porto do Guarujá, em São Paulo.

O gaúcho Saddir Secco é um dos produtores que vendem soja para a Cargill - e também para a Bunge. Desde 1982 o Grupo Secco planta soja em Rio Verde, em Goiás, município no qual também possui lojas da rede FertVerde, revendedora de fertilizantes químicos e agrotóxicos. Há oito anos, os sete irmãos Secco ampliaram suas atividades para Ribeirão Cascalheira, onde são proprietários de 6 mil hectares de terra, dos quais 2.800 estão ocupados com lavouras mecanizadas do grão de ouro.

"Quando chegamos, em 2001, compramos o hectare por R$ 800 a R$ 900. Hoje, ele já vale em média R$ 2 mil", contou o empresário. Saddir torce para que o asfalto traga consigo a rede elétrica, já que a energia da fazenda vem de duas turbinas instaladas em um córrego. Mas ele é cauteloso quanto às previsões de crescimento da produção de soja na região: "A BR-158 é importante, mas a expansão da área plantada de soja no Baixo Araguaia vai depender principalmente da relação entre os custos de produção e o valor da commoditie. O investimento para se produzir em áreas degradadas é muito alto".

Os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre a produção agrícola nos municípios são de 2007, quando Ribeirão Cascalheira tinha 6.500 hectares de soja. Nos três anos anteriores, a área plantada foi maior: 5,5 mil, 15 mil e 9,5 mil, respectivamente. "Com a alta do preço, a soja foi vista como grande oportunidade pelos médios proprietários daqui. Mas a valorização do real frente ao dólar, a queda da produtividade em virtude da chuva e oscilação de preços no mercado internacional os desestimularam", argumentou o assessor de comunicação da prefeitura, Luís Cláudio da Silva. A lamentação do proprietário do Grupo Secco parece confirmar essa avaliação: "Nas safras de 2003/2004 e de 2004/2005, para cada saca de soja que produzimos, tivemos R$ 8 de prejuízo", contou Saddir.

O pessimismo dos produtores do Baixo Araguaia em relação à soja parece estar diminuindo. Um passeio entre Ribeirão Cascalheira e Alô Brasil, no trecho da BR-158 que deve ser asfaltado ainda neste ano, dá indícios de que o grão de fato vem ocupando o espaço do gado, pelo menos nas fazendas localizadas nas margens da rodovia. "A soja voltou a ser a aposta dos médios e grandes produtores. O problema é que ela não gera empregos no município: os operadores de máquinas e administradores de fazenda são trazidos de outros locais, onde a lavoura de soja já está consolidada", afirmou o assessor municipal. Novamente, o exemplo do Grupo Secco reforça a análise de Luís Cláudio: os quatro operadores de máquina que estão colhendo soja no Baixo Araguaia foram trazidos de Goiás e quem administra a fazenda é Diego Secco, um sobrinho de Saddir recém-formado em Agronomia.

Vale dos Esquecidos

O Baixo Araguaia é conhecido como "Vale dos Esquecidos". Dados obtidos em um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) ajudam a explicar o triste apelido: a unidade do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) mais próxima fica em Barra do Garças, a 800 km da região e, no início de 2008, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente fechou seus escritórios em Canarana, São Félix do Araguaia e Porto Alegre do Norte. Se, por um lado, o asfaltamento da BR-158 em uma região com ausência do Estado causa preocupação, por outro pode significar a vinda do poder público para a região. "Nós só passamos a ter juiz e delegados residentes quando o asfalto chegou até a sede do município, em 2006", relatou Luiz Eduardo de Moraes, assessor da Secretaria de Esportes de Ribeirão Cascalheira.

A história da região não é marcada apenas pelo descaso governamental, mas especialmente pelas lutas populares, organizadas em torno da Prelazia de São Felix do Araguaia. Prova disso é o nome que a BR-158 recebe ao passar na área urbana de Ribeirão Cascalheira: Avenida Padre João Bosco. Uma homenagem ao religioso morto a tiros por um policial em 1976, quando tentou interromper o espancamento de duas agricultoras que estavam presas na delegacia municipal. A polícia torturava as mulheres para descobrir o paradeiro do agricultor Jovino, irmão de uma delas e pai de outra. Ele havia assassinado um soldado pistoleiro (Félix), agindo em legítima defesa: o fazendeiro Abraão Barros contratara Félix para matar Jovino, porque o agricultor se recusava a lhe vender o lote onde morava. "Na missa de sétimo dia do Padre João Batista, os posseiros destruíram a cadeia e libertaram as duas presas", narrou Luiz Soares de Souza, o Luiz Cateto, que era criança quando viu o corpo do solado Félix caído na porta da casa de Jovino.

Recentemente, a sociedade civil do Baixo Araguaia passou a contar com o esforço coordenado de ONGs que já trabalhavam na região de forma desconexa. Há um ano e meio seis dessas organizações criaram a Articulação Xingu Araguaia (AXA): a Associação Nossa Senhora da Assunção (Ansa), o Fórum Matogrossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad), o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o Instituto Socioambiental (ISA), a Associação Terra Viva e a própria CPT. Juntas, elas desenvolveram uma campanha contra o uso irracional do fogo na atividade agropecuária.

Assim como a emblemática BR-163, a BR-158 também é chamada de "estrada da soja". A mesma empresa (Ecoplan Engenharia) fez o estudo e o relatório de impacto ambiental (EIA-RIMA) do asfaltamento das duas rodovias. Mas, enquanto que na Cuiabá-Santarém houve a criação de um grupo interministerial responsável pela gestão do território influenciado pela rodovia, na BR-163 não há sinais do mesmo zelo. Até a transparência, nesse caso, tem sido negligenciada: apesar dos inúmeros pedidos feitos à assessoria de comunicação do Ibama por dados detalhados e/ou entrevistas, a Diretoria de Licenciamento Ambiental do órgão limitou-se a informar que "há dois trechos com licença prévia e um em análise".

O trecho da BR-158 no Mato Grosso ainda sem licença prévia para asfaltamento é o que corta a terra indígena Maraiwatsede, invadida por posseiros e, principalmente, grandes fazendeiros. A situação é tão grave que os 630 indígenas Xavante que vivem lá estão confinados em uma só aldeia, impedidos de circular com segurança pelos 165 mil hectares de seu território demarcado e homologado (leia mais na página X). Uma nota do DNIT revelou que "o trecho [da BR-158] que passa pela aldeia indígena Marawatsede está em processo de elaboração de projeto para um contorno que passará em volta da reserva".

Conflitos fundiários

Cerca de mil e duzentas famílias que vivem no Projeto de Assentamento (PA) Bordolândia, em Bom Jesus do Araguaia (MT), no entorno da BR-158, correm o risco de serem despejadas. Há dois anos, elas foram cadastradas e assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Mas uma liminar fruto de um pedido do Ministério Público Federal ordena a retirada dos assentados do local, porque eles estariam desmatando a área sem autorização do Ibama.

A execução da liminar deveria acontecer no dia 27 de março, justamente quando a Repórter Brasil esteve no assentamento. Graças à intervenção de D. Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia do Xingu, e da Procuradoria do Incra, o prazo para a retirada dos assentados foi prorrogado por 30 dias.

A assessoria do procurador Mário Lúcio Avelar, autor do pedido, confirmou a denúncia de desmatamento, mas não forneceu detalhes da ação. Juçara Ramos, representante da Confederação Nacional das Associações de Servidores do Incra, afirmou que o desmatamento (que já atinge pelo menos metade dos 50 mil hectares do assentamento) é de responsabilidade dos antigos proprietários da fazenda Bordolândia. Essa é também a avaliação do advogado Israel Roxo Guimarães, que assessora os assentados. "O fazendeiro construiu duas estradas dentro da floreta. Quem quer preservar o cofre, não mostra o caminho até ele", argumentou.

O Incra criou o PA Bordolândia em 2007, ao conseguir junto ao Supremo Tribunal Federal uma liminar de imissão de posse na fazenda, então considerada improdutiva. Segundo a assessoria de comunicação do órgão, porém, como o processo jurídico sobre a produtividade da área não chegou ao fim, a desapropriação dela continua em aberto. "A indenização foi inicialmente calculada em R$ 25 milhões. Hoje a empresa açucareira Santa Rosa está pedindo R$ 150 milhões. É um absurdo: o valor do hectare passou de R$ 500 para R$ 3 mil", reclamou Roxo.

O conflito fundiário no PA Bordolândia se insere no contexto de especulação imobiliária potencializado pela expectativa de asfaltamento da BR-158. O lote de 10 alqueires em que a assentada Sirlene Rodrigues Lobo produz arroz, feijão e milho e cria galinhas fica a cerca de um quilômetro da beira da rodovia. Indiferente às disputas jurídicas, a agricultora torce para que a pavimentação do trecho próximo à sua lavoura aconteça de fato até o fim do ano, para facilitar a venda da produção na sede de Ribeirão Cascalheira. Foi a esperança de conquistar um pedaço de terra que levou Sirlene a Bom Jesus do Araguaia - mesmo anseio que a fez sair de Rolim de Moura, em Rondônia, em direção a acampamentos em Aripuanã e, depois, em Juína, ambos já no Mato Grosso.

Segundo o levantamento da CPT, no Baixo Araguaia 13 mil famílias vivem em 56 assentamentos, que somam cerca de um milhão de hectares. A organização estima que entre 20 a 40% dos lotes estejam passando por um processo de reconcentração fundiária, em que os assentados estariam vendendo sua terra. Os compradores seriam comerciantes e médios proprietários ligados ao poder local.

Clique aqui para ler o relatório sobre os impactos da soja da mamona, elaborado em 2008 pelo Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis (CMA)

http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1555

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