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A revolta dos índios

CB, Brasil, p. 8
24 de Fev de 2006

A revolta dos índios
Governo não cumpre acordo fechado com os povos durante manifestação em Brasília, em 2005. Líderes prometem endurecer críticas no protesto de abril. Apenas uma área foi regularizada de 14 prometidas

Os apitos vão soar mais alto este ano, durante a mobilização do Abril Indígena. Reunidos em Brasília para definir a pauta do encontro, líderes de vários grupos indígenas estão dispostos a endurecer o discurso contra o governo federal. Dez meses depois de levantarem o acampamento Terra Livre, em frente ao Congresso Nacional, com uma lista de promessas, os índios só conseguiram que uma das reivindicações fosse atendida: a declaração da área indígena Yvy Katu (MS), da etnia Guarani-Nhãndeva. As garantias que ouviram, como a criação do Conselho Indigenista, a regularização de outras 13 terras e a discussão do Estatuto do Índio, ficaram só no papel.
Na época do encontro, que reuniu mais de 700 indígenas em Brasília, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, garantiu agilidade no processo de regularização de 14 terras (veja o quadro). Os índios aguardam, impacientes, pelo cumprimento da promessa. "A pouca esperança que tínhamos nesse governo foi perdida. O Poder Judiciário valoriza mais um boi que uma criança indígena. A política de governo valoriza mais um pé de soja que um pé de ipê", critica o cacique Anastácio Peralta Guarani, líder caiouá do Mato Grosso do Sul. Assim como representantes de outras etnias, Anastácio acredita que o Estado brasileiro é conivente com a devastação dos recursos naturais em nome do agronegócio.
De acordo com a assessoria de imprensa da Fundação Nacional do Índio (Funai), a responsabilidade pela regularização das áreas é do Ministério da Justiça. Procurado pela reportagem, o ministério não deu retorno até o fechamento desta edição.
Segundo o líder indígena, o impacto da homologação da reserva Raposa Serra do Sol (RR), assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em abril de 2005, fez com que os índios acreditassem na aceleração da regularização fundiária de outras terras. "Até hoje estamos esperando", lamenta. No Mato Grosso do Sul, ele destaca a situação de 600 pessoas que foram despejadas da área Nhanderu Marangatu, que estava homologada, mas cuja regularização foi contestada no Supremo Tribunal Federal (STF).
O presidente do STF, ministro Nelson Jobin, negou o pedido do Ministério Público de suspender as liminares de reintegração de posse movidas por fazendeiros da região. "Hoje, os índios estão vivendo à beira de estradas, debaixo de lonas. O mais grave é que os fazendeiros contrataram pistoleiros para fazer a segurança da área e eles ameaçam as pessoas. O governo não faz nada", denuncia o líder Anastácio Guarani.
Cobrança
Líder do povo Guarani Mebyá, do Rio Grande do Sul, Maurício Gonçalves Guarani diz que a falta de providências do governo federal estimula os estados a adotar medidas inconstitucionais. Os índios têm 22 terras no Rio Grande do Sul. Quatro foram compradas pelo governo estadual para os índios. "Com isso, não podemos reivindicar postos da Funai e da Funasa, já que a terra não é da União. Isso fere a Constituição, que garante aos índios o direito à terra, que não pode ser comprada", reclama. Ele teme que a medida abra precedentes e os territórios indígenas virem moeda política.
Outro problema no sul do país é a terra Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. O relatório para demarcação aguardava uma assinatura do ministro da Justiça quando voltou para a Funai sob alegação de que o levantamento não era conclusivo. Um novo grupo de trabalho foi estabelecido para refazer o estudo antropológico da reserva.
Em dezembro de 2005, a ministra Ellen Gracie suspendeu uma liminar da Justiça Federal que obrigava o Ministério da Justiça a demarcar as áreas indígenas do estado. A decisão havia sido tomada pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, sob pena de pagamento de multa de R$ 50 mil no caso de descumprimento da medida. A ministra entendeu que "a determinação causa lesão à ordem pública e econômica, uma vez que a União é obrigada a pagar multa de alto valor sem previsão orçamentária".
Os líderes estão revoltados com o Judiciário. Em 2005, o STF julgou cinco processos relacionados a terras indígenas e, em todos, desfavoreceu os índios. "O Poder Judiciário tem sido conivente com os fazendeiros e tem se mostrado hoje como o grande inimigo dos índios. Nunca estivemos tão mal. Temos os três poderes articulados contra os indígenas", lamenta Uilton Tuxá, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo. Ele lembra que há pressão no Congresso Nacional para alterar o artigo 231 da Constituição, que assegura aos índios o direito à terra que ocupam tradicionalmente.

O Número
União
700 índios de várias etnias participaram em 2005 do Abril Indígena, na Esplanada dos Ministérios

Decepção dos líderes

Não há pajelança que salve o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de críticas. "O governo passa por um processo de fragilidade e tem que se abrir para os antiindigenistas que existem no Congresso para conseguir aprovar o que quer", teoriza o líder Francisco Batista Aporinã ao comentar os motivos que teriam levado o presidente a decepcionar os movimentos indígenas, cedendo aos interesses de parlamentares contrários à causa dos povos indígenas.
A tese de Aporinã é apoiada por outros representantes dos índios. "No Congresso, tem 50 parlamentares que defendem a gente. O resto é tudo contra", reclama o líder gavião Jonas Sanção Gavião. "Tem muitos que defendem o agronegócio, a pecuária e o desmatamento, mas ninguém luta pelos índios", lamenta. "Antes, a gente era dono do nosso país, agora a gente tem que lutar por apoio para a nossa causa. E o pior é que não consegue".
Representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) em Brasília, Genival Oliveira destaca que, nos dois últimos governos, a média de demarcações atingia a marca de 14 por ano, enquanto no governo Lula a média annual é de seis. "Do jeito que está indo este governo, as demarcações só vão ficar concluídas daqui a 45 anos", alerta. Ele se recusa a apoiar o presidente na campanha para a reeleição. "Os movimentos vão se reunir e decidir quem é o melhor candidato. Mas de qualquer maneira, quando começar a campanha, queremos protocolar junto a todos os partidos as nossas reivindicações", informa.
Na avaliação dos índios, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira Gomes, personifica a má-vontade do governo. "Ele só fala baboseira", acusa Genival Oliveira referindo-se à declaração de Mércio de que os índios já teriam terras demais. Segundo o dirigente do Coiab, o presidente da Funai não dialoga com os movimentos. "Isso é inaceitável", sustenta. Apesar disso, há quem demonstre alguma compreensão com a posição de Mércio. "O problema não é ele, mas a Funai, que é um órgão do governo e faz o que o governo determina", acrescenta Oliveira.
Os índios temem a possibilidade de que a homologação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, no ano passado, venha a ser usada politicamente durante a campanha eleitoral. "Essa não foi uma conquista do governo, foi nossa", ressalta Aporinã. (AC e PO)

CB, 24/02/2006, Brasil, p. 8

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