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Responsabilidade social: para onde vamos?

OESP, Economia, p. B2
31 de Dez de 2003

Responsabilidade social: para onde vamos?
PARTICIPAÇÃO RESPONSÁVEL NÃO É A PRÁTICA DE ATOS FILANTRÓPICOS E ALTRUÍSTAS PONTUAIS

JOSEF BARAT

Para melhor compreender a evolução da chamada responsabilidade social das empresas e seu envolvimento com projetos sociais, é importante uma visão histórica. No final dos anos 70, com o arrefecimento do longo ciclo de crescimento do pós-guerra, intensificaram-se as reações contra o intervencionismo estatal presente desde os anos 30. Começaram a perder força as políticas de cunho keynesiano e redistributivo originadas, tanto no "new deal" norte-americano, quanto na social-democracia européia. Ganhou força um ideário que apontava a intervenção estatal e a regulação de mercados como ameaças à concorrência e ao crescimento. Com a crise do modelo econômico - associada a choques de preços do petróleo -, houve redução de taxas de crescimento e aumento da inflação. Nesse contexto, o intervencionismo estatal e o poder sindical acabaram por gerar incompatibilidade entre a crise fiscal e o peso dos gastos sociais dos governos.
Nos anos 80, a receita para a crise veio da Inglaterra e EUA, seguida em linhas gerais pelos demais países desenvolvidos: um Estado forte para o controle de gastos e rompimento do poder dos sindicatos, mas desonerando empresas e indivíduos. Reduziram-se o intervencionismo, a atuação direta do Estado na produção e o redistributivismo do "welfare state". Assim, firmaram-se objetivos de novas políticas econômicas: a) estabilidade monetária; b) rigorosa disciplina orçamentária com controles sobre gastos sociais; c) reforma fiscal; d) implementação de amplos programas de privatizações, especialmente nos setores de insumos básicos e serviços públicos; e) restauração de taxa "natural" de desemprego; e f) a geração de certo grau de desigualdade, que se acreditou necessário, para estimular a economia. Mas tudo isso ainda coexistindo com remanescentes de políticas compensatórias para debelar a crise, por meio de protecionismo, estímulo à demanda e continuidade do Estado do Bem-Estar.
O modelo de financiamento com recursos públicos e empréstimos garantidos pelos governos para investir em infra-estruturas e serviços públicos começou a dar sinais de esgotamento. Abriu-se caminho, assim, para desestatização de atividades e serviços, com financiamento privado, à medida que as empresas - após período de queda das taxas de lucro e redução de investimentos - se capitalizaram pelos estímulos de novas políticas. Em resumo, houve a redução de recursos públicos para ações e projetos sociais e maior disponibilidade de recursos privados, potencialmente aplicáveis em gastos antes de competência exclusiva dos governos. Coincidentemente, tanto as revisões nas concepções social-democratas, quanto as formulações do ideário antiestado, passaram a apontar o caminho das iniciativas empresariais no campo social como forma quer de estabelecer parcerias para o "welfare", quer de mostrar força do setor privado.
Foi neste contexto de mudanças que se consolidou a idéia de responsabilidade social nos anos 70, ainda sob a égide do Estado do Bem-Estar. Na França, várias experiências conduziram a avaliações mais sistemáticas do ambiente social por parte das empresas, inclusive com legislação que tornou obrigatórios balanços sociais. Na UE a preocupação empresarial com a questão social expandiu-se, como fruto da maior conscientização com desequilíbrios sociais e direitos do consumidor e em decorrência do recuo das ações governamentais. Na Inglaterra e EUA, a forte tradição de ações comunitárias envolveu muitas empresas em ações e projetos de interesse comum. No Brasil, foi nos anos 90 que algumas empresas passaram a levar a sério a questão social e elaborar balanços sociais, passando a divulgar suas ações nas relações com comunidade, meio ambiente e seu corpo de funcionários. Essas relações tornaram-se, por vezes, uma questão crucial nas estratégias de sobrevivência empresarial. Hoje, nos cenários que compõem o planejamento estratégico e visões de longo prazo, as relações que moldam a responsabilidade social representam fator importante de desenvolvimento e imagem. Trata-se de investir no bem-estar dos funcionários e na sociedade, atraindo consumidores pela repercussão de suas ações.
Há, por outro lado, aspectos éticos e humanos envolvidos na questão da responsabilidade social. Embora a maioria das empresas se proclame ética e socialmente responsável, na verdade poucas têm um comportamento que o justifique. Muitas fazem de seus projetos meras "vitrines" promocionais sem lhes dar consistência e conteúdo. Num amplo conceito de ética nos negócios, a parceria entre empresas, governo e sociedade é fundamental para reduzir a pobreza e a injustiça social, promovendo um maior desenvolvimento social e humano. Sabemos que nosso país é marcado por relações sociais hierarquizadas e privilégios sedimentados ao longo de séculos. Perpetuam-se desequilíbrios extremos entre opulência e pobreza, desigualdades crescentes, injustiça e exclusão social. Boa parte da população não tem acesso às mínimas condições de vida e encontra-se totalmente excluída da plena participação nas decisões que determinam os rumos de sua vida e da dinâmica social.
Estamos seguindo, de certa forma, a tendência mundial de maior responsabilidade social das empresas, mas nos deparamos com realidade social muito mais complexa que a dos países desenvolvidos. Neste ambiente, um projeto social não pode configurar-se como "oba-oba" promocional ou garantir a acolhida no paraíso de executivos pós-modernos que conciliam lucros elevados com filantropia. Devem, sim, contribuir para que o conceito de cidadania seja ampliado, incorporando aspirações que resultam da luta crescente pela igualdade, participação e representação. Ou seja, pela ampliação dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e humanos.
Ações de empresas não substituem a presença do Estado. Se os projetos sociais das empresas não se articulam consistentemente com políticas públicas, não se chega a lugar nenhum. Precisamos superar a idéia de a participação responsável consistir na prática de atos filantrópicos e altruístas pontuais. E isto vale tanto para as empresas, quanto para o próprio governo. Hoje se faz necessário algo mais: ações público/privadas coordenadas e ampla consciência social, envolvendo compromissos duradouros.

OESP, 31/12/2003, Economia, p. B2

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