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Resolução dá um passo aquém das necessidades

Valor Econômico, Opinião, p. A10
Autor: BORGES, Caio; GARZÓN, Biviany Rojas
09 de Jun de 2014

Resolução dá um passo aquém das necessidades
Regra não menciona canais institucionais para a resolução de conflitos e tratamento de denúncias

Por Caio Borges e Biviany Garzón

Como em qualquer nicho regulatório com potenciais efeitos redistributivos, a responsabilidade das instituições financeiras por danos socioambientais decorrentes da venda de produtos e prestação de serviços é um assunto permeado por conflitos entre visões sobre a relação entre Estado, mercado e sociedade.
Tratada pelo próprio Banco Central (BC) como um marco na regulação do sistema financeiro, a resolução com diretrizes para a implantação de uma Política de Responsabilidade Socioambiental (PRSA) pelas instituições financeiras, divulgada em 25 de abril, certamente trouxe surpresas para quem participou do processo de consulta pública, que o antecedeu.
Embora o BC afirme que a nova regra é fruto de um amplo debate com a sociedade, a mera comparação entre a minuta submetida a audiência pública em 2012 e o texto definitivo deixa claro que as diferentes perspectivas não parecem ter sido levadas em conta de uma maneira equilibrada pela autoridade.
Como bem noticiado pelo Valor na sua edição de 28/4/2014, foram excluídos do texto final quase todos os critérios concretos para a construção de uma PRSA, e em seu lugar foi instituído um dever geral de que a política deve "estabelecer diretrizes sobre as ações estratégicas relacionadas à sua governança". Por outro lado, foram absorvidas várias das preocupações expostas pelo setor financeiro ao longo do processo, como a exclusão da avaliação do histórico de clientes e a inserção dos princípios da relevância e proporcionalidade.
O CMN optou por uma política de responsabilidade socioambiental genérica e formal, isenta de diretrizes de mérito sobre aspectos indispensáveis à própria natureza da matéria, além de não conter critérios objetivos e verificáveis para a mensuração de riscos socioambientais das operações financeiras. O grande prejuízo dessa estratégia regulatória é que o desenho e a efetividade das salvaguardas tornam-se opacos a avaliadores externos, como clientes, comunidades afetadas pelos projetos e investidores preocupados com padrões mais elevados de responsabilidade socioambiental.
Mas mais preocupante que o conteúdo da resolução publicada é tudo o que ela deliberadamente omitiu. Causa perplexidade que o CMN tenha desistido de publicar, de forma conjunta, uma regulação sobre a obrigatoriedade das instituições financeiras de elaborar e divulgar anualmente um Relatório de Responsabilidade Socioambiental. Ainda não há nenhuma explicação pública dos motivos que levaram à eliminação desta importante proposta para complementar a PRSA e aumentar a transparência ativa das instituições financeiras no país.
A opção do CMN em regular a questão socioambiental por meio de diretrizes genéricas torna-se ainda mais incompreensível se olhado o quadro normativo vigente e as melhores práticas de mercado, que já trazem critérios substantivos para orientar as decisões de financiamento e investimento das instituições aderentes.
Na contramão dos padrões mais avançados sobre direitos humanos e empresas, como os Princípios da ONU para Empresas e Direitos Humanos, a resolução não trata o respeito aos direitos humanos como padrão mínimo de conduta social esperada dos atores privados. A identificação de riscos de direitos humanos é uma exigência prevista em referenciais influentes no setor financeiro, como os Padrões de Desempenho da International Finance Corporation (IFC, braço do Banco Mundial para o setor privado).
Uma ausência particularmente preocupante da nova regra diz respeito aos canais institucionais para a resolução de conflitos e tratamento de denúncias, a exemplo do Painel de Inspeção do Banco Mundial. Tais mecanismos têm se mostrado fundamentais para a formação de um canal de diálogo entre as instituições financeiras e as comunidades afetadas pelos empreendimentos, servindo também como ferramenta para o conhecimento de riscos eventualmente subdimensionados nas fases de planejamento dos projetos. Essa exigência consta, por exemplo, dos Princípios do Equador.
Quanto à participação das partes interessadas na confecção da PRSA, a resolução abre um tímido espaço para o engajamento externo, e, com relação àquilo que foi proposto na minuta de 2012, retrocede ao restringir partes interessadas a clientes, usuários, comunidade interna, e aqueles que, "conforme avaliação da instituição sejam impactadas por suas atividades". Ignorou-se a complexidade da definição de impactados, e perdeu-se uma importante oportunidade de envolver atores como agentes públicos, comunidades locais e sociedade civil organizada no processo de construção e controle social de PRSA consistentes e eficientes.
O fato é que a resolução sobre PRSA deixa claro que o BC trata a questão socioambiental como algo a ser resolvido mediante controles internos e "boa" governança corporativa. Essa abordagem formalista segue uma lógica já bem conhecida dos mercados financeiros, cujo melhor exemplo são os padrões de controle de riscos instituídos pela segunda versão dos Acordos de Basileia, duramente criticados desde a crise financeira global por terem amplificado o risco sistêmico.
Parece crucial relembrar, neste momento, que a regulação da responsabilidade socioambiental das instituições financeiras apenas faz sentido se feita à luz de seus propósitos primordiais, que são, no mínimo, evitar que o sistema financeiro atue como uma alavanca material para o cometimento de abusos de direitos humanos por empresas e governos e, idealmente, tornar esse setor da economia um exemplo de que lucros, desenvolvimento sustentável e promoção dos direitos humanos não são valores mutuamente excludentes.
Despida de elementos substantivos, a resolução do CMN pouco acrescentou ao atual quadro normativo sobre financiamento, responsabilidade socioambiental e direitos humanos. A interpretação de sua aplicação deve ser ampla e sistêmica para obter a coerência necessária à sua efetividade. Embora a fiscalização do BC, usualmente tida por rigorosa, possa suprir algumas das lacunas, a esperança é que os próximos passos sejam mais corajosos e transformadores.

Caio de Souza Borges é advogado da Conectas Direitos Humanos, mestre em direito e desenvolvimento pela FGV-SP.

Biviany Rojas Garzón é cientista política e advogada do Instituto Socioambiental - Programa Xingu.

Valor Econômico, 09/06/2014, Opinião, p. A10

http://www.valor.com.br/opiniao/3578076/resolucao-da-um-passo-aquem-das…

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