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Reservas legais preservam o poder da floresta de fazer chover

O Globo, Sociedade, p. 28
02 de Mai de 2019

Reservas legais preservam o poder da floresta de fazer chover
Projeto de lei que revoga unidades de conservação pode provocar impactos em setores como agricultura, geração de energia e turismo

Ana Lucia Azevedo
02/05/2019 - 04:30

RIO - Um dos ditados populares da Amazônia diz que "a floresta faz chover". E faz, não só na Região Norte, mas muito distante, no Sul do Brasil e até em partes da Argentina e do Uruguai, com impacto sobre a agricultura, a geração de energia e o turismo.
A discussão sobre as consequências do projeto de lei 2.362/2019, dos senadores Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e Márcio Bittar (MDB-AC), que revoga a obrigatoriedade de se manter a chamada reserva legal nas propriedades rurais, acabou por destacar a relevância da Floresta Amazônica para o clima do Brasil. É na Amazônia que nascem os rios voadores que distribuem chuvas no país.
A expressão rios voadores foi criada há quase duas décadas pelo meteorologista José Marengo, coordenador geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Ela se refere aos jatos de ar carregados de umidade que se originam sobre a floresta e atravessam o Brasil, a cerca de 3 mil metros de altitude.
Um de seus efeitos bem estabelecidos é permitir a existência das florestas do oeste do Paraná, como as das cataratas do Parque Nacional do Iguaçu e as que protegem a Usina de Itaipu.
O climatologista Carlos Nobre, um dos mais respeitados especialistas do mundo em mudanças climáticas, explica que está comprovado que, quando uma seca castiga a Amazônia, chove menos em toda a vasta região que vai do oeste do Paraná, onde estão as florestas de Iguaçu, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, e chega até o centro-leste da Argentina, Uruguai e Paraguai.

Impacto na agricultura
Só existe floresta no Paraná porque chove no inverno por lá, e chove porque os rios voadores levam a umidade da Amazônia.
- Se não fosse a umidade da Amazônia, toda essa região seria uma savana - afirma Nobre.
Chove menos em Foz do Iguaçu, por exemplo, do que em Brasília. Enquanto nesta caem de 1.600 a 1700 milímetros de chuva por ano, em Foz a média é de 1.300 mm. Porém, Brasília tem uma estiagem de meio ano e vegetação de Cerrado. Já em Foz e em toda a área coberta pelos rios voadores, a chuva é distribuída ao longo do ano, graças a eles.
Os rios voadores são canais de umidade que transportam vapor d'água e fazem com que chova durante todo o ano, inclusive no inverno, normalmente seco no Centro-sul. Sem chuva ao longo de todo o ano, não há condições para existir uma floresta, observa Nobre.
As reservas legais protegem 80% das florestas de uma propriedade rural e são essenciais para deter o desmatamento e, assim, preservar a Amazônia e os rios voadores que ela gera. Mas, para Nobre, a maior importância das reservas legais está na proteção da própria Amazônia.
As florestas prestam serviços, como redução da temperatura - são até 3 graus Celsius menos quentes que plantações e pastagens -, produção de água, prevenção de erosão e polinização de culturas comerciais.
- O maior impacto do desmatamento das reservas legais será para a agricultura da região, que já enfrenta um clima hostil e um solo pobre - salienta.
Professor titular do Instituto de Física da USP e reconhecido como o maior especialista do mundo em química da atmosfera da Amazônia, Paulo Artaxo vê ameaça concreta de perdas para os investidores nos setores agrícola e de energia, que dependem da disponibilidade de água e da regularidade climática.
- O desmatamento afeta o fluxo de umidade na atmosfera e traz desequilíbrio. A destruição de reservas legais trará incerteza para o Brasil. Para quem investe, é um fator de risco.

Como nascem rios no céu

Os rios voadores são fruto do encontro do Atlântico com a Amazônia, sob o calor do trópico. A mata, uma usina de chuva, não existiria sem a umidade do oceano. E são os ventos alísios que sopram para a região uma colossal quantidade de umidade do Atlântico.

A concentração de umidade e calor gera nuvens de chuva. Ao cair, ela é absorvida pelo solo. Porém, um metro quadrado de floresta devolve para a atmosfera pela transpiração das folhas até sete vezes mais umidade do que a mesma área de pastagem.

As árvores reciclam ainda mais água que o Rio Amazonas, que despeja no Atlântico por dia 17 trilhões de litros d'água, ou 18% de toda a água doce lançada nos oceanos. Todos os dias, ao transpirar pelas folhas, as árvores transferem 20 trilhões de litros d'água do solo para a atmosfera.

Parte da umidade gerada na Amazônia, entre 30% e 50%, fica por lá. Os ventos carregam para longe o restante. São ventos velozes (50 km/h), que viajam a cerca de 3 mil metros de altitude, originados dos alísios tropicais. Eles entram no Brasil na altura do Maranhão. Ao chegar à Amazônia, ficam mais úmidos devido ao vapor d'água liberado pela transpiração das árvores.

Mas, ao rumar para o leste, eles são bloqueados pelos Andes, que funcionam como barreira e acelerador. Os ventos ganham velocidade e se desviam para o sul. E se tornam jatos. Ou rios que voam, canais de umidade no céu. Eles passam por Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, São Paulo. E acabam por alimentar tempestades ao serem novamente bloqueados, desta vez por frentes frias vindas do Sul. O resultado é mais chuva em parte do Centro-Oeste e do Sul.

O Globo, 02/05/2019, Sociedade, p. 28

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