OESP, Vida, p. A16
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
21 de Abr de 2005
Reserva em campo de caca
Depois que o presidente Lula pediu perdão aos africanos e o ministro Márcio Thomaz Bastos pediu perdão aos índios, para fechar com chave de ouro a semana do Descobrimento só falta aos brasileiros de todas as origens pedir perdão a esta terra por esses 505 anos de maus tratos coletivos. Aí, sim, daria para zerar a História do Brasil.
Mas isso, pelo visto, ainda está longe. Do ponto de vista ambiental, o decreto que homologou na segunda-feira a reserva de Raposa Serra do Sol é um passo atrás na reconciliação do país com a sua paisagem original, porque encaixou na terra indígena uma unidade de conservação do governo federal que, pela lei, pertence a todos os brasileiros. Lá dentro, o Parque Nacional do Monte Roraima fica "submetido a regime de dupla afetação", servindo simultaneamente à "preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios". Ou seja: a proteger a fauna e a flora de um lugar onde o índice de endemismo chega a 50% das espécies e, ao mesmo tempo, garantir o direito à caça e à coleta de seus novos gestores. Eu mesmo ouvi em Roraima há mais de dez anos, quando a campanha da demarcação ainda engatinhava, um chefe macuxi citar a caça entre as prioridades culturais de seu povo, que a reserva deveria prover.
Ele estava coberto pela Constituição, que define no artigo 231 seu direito a um espaço capaz de assegurar a integridade de "seus usos, costumes e tradições". Mas deu a entrevista sentado no estribo do trator que sua aldeia usava no cultivo dos campos naturais que dão ao Estado uma paisagem inigualável de savanas. Ao fundo, pastava o gado da tribo, parte de um rebanho de sete mil cabeças que a Diocese de Boa Vista havia comprado naquela época com doações italianas para distribuir entre as comunidades indígenas.
Na prática, "dupla afetação" significa que a Funai, o Ibama e a Comunidade Indígena Ingarikó - nessa ordem - terão no Parque Nacional do Monte Roraima um triunvirato. Nele, a causa dos índios já sai ganhando do time ambientalista por 2 x 1. Equilibrar o jogo com essa veneranda receita de crises políticas pode parecer simples num governo cuja peça de resistência em política de meio ambiente se chama "reserva extrativista", um nome que, feito com duas palavras contraditórias, começa por "ser um oxímoro", como ensina o historiador Kenneth Maxwell. Mas a fórmula de Roraima é outra coisa. Traz uma novidade a bordo de um retrocesso.
Novidade, por não estar prevista na lei 9.985, que regula - mal, mas regula - o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Se a moda da Raposa Serra do Sol pega, na certa se espalhará por outros parques, onde índios se aboletaram de uns anos para cá como donos ancestrais do território brasileiro. Entre eles, o parque do Monte Pascoal, na Bahia, que os pataxós invadiram e desmataram. E não era isso que estava na cabeça dos militantes que fizeram a cabeça constituintes em 1988. Eles imaginaram as reservas indígenas e extrativistas como um complementos dos parques nacionais. Não pensavam que fossem conquistá-los.
E um retrocesso porque parque nacional, uma invenção radical do século XIX que até hoje não se aclimatou muito bem ao Brasil, surgiu para acabar com os campos de caça, que até então preservavam, pela privatização da natureza, os usos, os costumes e as tradições da aristocracia européia. Os parques também são um produto da era das revoluções que, pelo visto, vai passando.
Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)
OESP, 21/04/2005, Vida, p. A16
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