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Repúdio da Funai: Possuelo diz que João Pedro não está no cargo para punir os Matís

Amazônia Real- http://amazoniareal.com.br/
Autor: Kátia Brasil
14 de Mar de 2016

O sertanista Sydney Possuelo, considerado a maior autoridade com relação aos povos indígenas isolados do Brasil, disse em entrevista à agência Amazônia Real que o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), João Pedro Gonçalves, não está no cargo para punir os índios Matís. Na semana passada, a fundação divulgou uma nota de repúdio em que diz que um grupo da etnia agrediu um médico na Base de Proteção Etnoambiental da Funai, que fica na Terra Indígena Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas.

"Essa nota de repúdio ameaça os povos indígenas brasileiros. O presidente da Funai [João Pedro Gonçalves ] não está aí para ameaçar índio nenhum. Ele fala em abrir um inquérito para punir os Matís, isso é um absurdo. Ele tem que fazer uma ameaça para o invasor, o madeireiro, o garimpeiro, para os que roubam as terras dos índios, e não fazer uma ameaça para os povos indígenas. Eu fiquei chocado com aquilo [o repúdio]. Isso é a consequência da total ineficácia da Funai", disse o sertanista.

A nota de repúdio da Funai contra o grupo de Matís foi divulgada em seu site e nas redes sociais na quarta-feira (8). O médico agredido foi identificado pela Amazônia Real como sendo o paulista Lucas Infantozzi Albertoni, contratado pela Secretaria Especial Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, em 2014, para trabalhar no Distrito Especial Indígena (Dsei) Vale do Javari. A agressão aconteceu no dia 06 de março (domingo) dentro da Terra Indígena Vale do Javari.

Conforme a nota, "ao chegar à Base de Proteção Etnoambiental da Funai, na confluência dos rios Ituí e Itaquaí, um grupo de Matís desceu da embarcação em atitude de intimidação, ameaçou colaboradores indígenas e agrediu o médico da Sesai, que presta assistência aos Korubo, sendo esse um dos motivos da agressão". A Funai diz ainda que "está tomando as providências legais para apurar os acontecimentos, punir os responsáveis e coibir atitudes como essa".

As duas etnias Matís e Korubo estão em conflito interétnico desde 2014, resultando na morte de pelo menos 10 indígenas. Outros três índios ficaram feridos por arma de fogo.

Como publicou a Amazônia Real, o povo Matís negou a agressão ao médico Lucas Infantozzi Albertoni. Segundo a liderança Baritsita Matís, "o grupo de indígenas não tinha a intenção de ferir o médico". Mas, segundo ele, há uma animosidade da etnia contra o conhecido "Dr. Lucas", pois o mesmo se recusa a atender os Matís nas aldeias.

Para Sydney Possuelo, a situação envolvendo o médico com o grupo de Matis não é policial.

"Querem tratar como caso de polícia um problema absolutamente de antropologia. Essa nota de repúdio me faz lembrar da declaração que o Mércio Pereira Gomes deu há alguns anos dizendo que os indígenas possuíam muitas terras. Os dois [Mércio e João Pedro] se completam. Não fazem o menor esforço pelos povos indígenas. Que sucessão de infelicidades para os índios, que já estão vivendo um problema tão sério lá dentro e ainda estão nas mãos dessas pessoas que não têm a menor sensibilidade com a questão indígena", disse o sertanista.

A Amazônia Real procurou novamente o médico Lucas Infantozzi Albertoni para ele falar sobre o incidente, mas não conseguiu localizá-lo. A reportagem procurou à assessoria de imprensa da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) para ela comentar a agressão ao médico, mas o órgão respondeu que a equipe técnica não localizou o profissional. A Sesai também não respondeu sobre a reclamação de que o médico não atende os Matís, como disse a liderança Baritsita Matis.

Em entrevista à Amazônia Real, o chefe do Distrito Sanitário Indígena (Dsei) do Vale do Javari, subordinado a Sesai, Jean Heródoto, revelou que o ferimento no médico Lucas Albertoni não foi grave, mas não foi no rosto, como dito pelos Matís, anteriormente.

"Não teve ferimento grave não, o que o médico [Lucas] passou é que bateram com uma lança [flecha] nele e aranhou a testa dele, só isso", disse Jean Heródoto.

Em relação à possível abertura de investigação para apurar o caso, como diz a Funai na nota de repúdio contra os Matís, Jean Heródoto afirmou que o médico fez um Boletim de Ocorrência contra os índios Matís por agressão na Polícia Federal de Tabatinga (AM).

"Agressão foi, mas se é essa gravidade toda é a Funai que deve saber, pois ele estava na Base Etnoambiental. Quando a gente é ameaçada, é a polícia que manda a gente fazer exame de corpo de delito", afirmou. "O problema dos índios é com a Funai, não é com a Sesai", diz.

Para o sertanista Sydney Possuelo há uma falta de entendimento e uma visão deturpada dos administradores da Funai e o Dsei. "Anos e anos eu estive ali [no Vale do Javari] e nunca precisei levar polícia nenhuma. Mas, a Polícia Federal entrou ali e foi muito bem recebida pelos índios. O Exército entrou ali de passagem quando estava fazendo operações e sempre foi muito bem recebido pelos índios. Os índios não precisam dos policiais para vigiá-los e nem para puni-los porque não tem caso nenhuma para puni-los. O que existe é uma incompreensão da Fundação Nacional do Índio, e que possivelmente também dos órgãos da nossa sociedade", disse Possuelo.

O conflito entre Matís e Korubo

A Terra Indígena Vale do Javari, na fronteira do extremo oeste do Amazonas com o Peru, tem mais de 8,4 milhões de hectares onde vivem 4,5 mil índios de contato permanente, entre eles os Matís, Marubo, Mayuruna e Kanamary, e dois grupos de recente contato, os Korubo, além de 16 grupos isolados, sem contato com a sociedade nacional não indígena.

O primeiro contato dos índios Korubo foi estabelecido no ano de 1996 durante uma expedição ao Vale do Javari coordenada pelo sertanista Sydney Possuelo, que foi presidente da Funai entre os anos de 1991 e 1993. Na ocasião, o contato foi necessário por causa dos sucessivos conflitos com mortes de índios e não-indígenas na região, segundo a fundação. Os Matís participaram do encontro como intérpretes, pois falam a língua Pano, bastante semelhante à dos Korubo, que ainda não foi classificada.

Em 09 setembro de 2014, a Funai anunciou o segundo contato dos Korubo em 18 anos. Eles formalizaram um diálogo com indígenas da etnia Kanamari da aldeia Massapê, que fica na beira do rio Itaquaí, também na Terra Indígena Vale do Javari.

Em outro comunicado, a Fundação Nacional do Índio afirmou que um conflito interétnico na Terra Indígena Vale do Javari aconteceu no dia 5 de dezembro de 2014, quando índios isolados Korubo mataram as lideranças Matís Damë e Ivã Xukurutá, da aldeia Todowak.

Em entrevista à reportagem, Carlos Lisboa Travassos, titular da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC) da Funai, disse que o conflito teve origem na reocupação territorial do povo Matís que se aproximou da área de ocupação dos isolados Korubo do Coari. Este grupo seria o autor das mortes das duas lideranças. Um surto epidemiológico pode ter influenciado no conflito.

Somente em 2015, foi que a Funai revelou que os Matís revidaram o ataque e mataram com arma de fogo oito índios isolados Korubo, além de ferirem mais três deles. Este ano, a fundação contou detalhes do acirramento do conflito no ano passado: "os Matís capturaram crianças durante um contato forçado com os isolados Korubo. Depois invadiram o acampamento dos isolados, que passam por quarentena para impedir o contágio de doenças".

Uma das lideranças Matís, Marcelo Marke Turu Matís negou em entrevista à Amazônia Real que há uma disputa territorial. Ele diz que o motivo do conflito seria uma disputa por mulheres entre os próprios Korubo. "Esse grupo da Mayá foi na aldeia do Korubo do Coari e atacou os isolados. Os Korubo do Coari começaram a se espalhar próximos das aldeias dos Matís, a Todowak, que fica também no rio Coari, onde moravam os meus tios. Eles mataram os meus tios", disse.

O sertanista Sydney Possuelo, de 75 anos, trabalhou por 43 anos na Funai, sendo mais de 20 anos como coordenador-geral do Departamento de Índios Isolados. Ele disse que os índios Matís trabalharam na equipe fazendo a tradução dos diálogos, pois pertencem ao mesmo tronco linguístico, o Pano. E afirmou que nunca registrou conflitos com mortes entre as etnias Matís e Korubo no período em que trabalhou na Funai.

"O desequilíbrio populacional por problemas internos, externos, sempre houve, isso não é uma novidade. Acontece que nunca chegou a morrer de fato. Os Korubo já viveram muito bem com os Matís. Eles são do mesmo tronco linguístico, são muito próximos um do outro. Já houve na história casamentos de Korubo com Matís, eles me contaram. Então, é estranho essas mortes", disse o sertanista.

Sydney Possuelo contou como os Matís trabalharam como ele durante os anos em que foi coordenador. "Os Matís são um povo generoso, trabalhador. Passamos dificuldade juntos por proximidade de outra tribo que a gente nem conhece o nome ainda. Havia um empenho de toda a equipe de brancos que estavam junto comigo, companheiros meus, e havia um empenho muito grande dos Marubo e dos Matís, que mais participaram da Frente. O fato é que tudo isso foi harmônico", disse.

O sertanista afirmou também não registrou divergências dos Matís com funcionários da Funai ou com as equipes de saúde.

"Eu não me lembro que, por anos que eu estive ali em vários trabalhos, em situações difíceis e em momentos de dificuldades, botando os invasores para fora de todas as formas. Eu nunca vi desarmonia entre eles. É claro que, anteriormente talvez pudesse até ter acontecido alguma coisa, mas durante o período que eu estive lá, nunca houve. O que eu atribuo a tudo isso, é a ineficácia total da administração regional e a perda da Frente, porque a frente se perdeu, a frente desapareceu. Ficou tudo ao Deus dará", disse Sydney Possuelo.

A reportagem procurou a assessoria de imprensa da Funai para o presidente João Pedro Gonçalves comentar as declarações do sertanista Sydney Possuelo, mas o órgão disse que ele está em viagem ao Acre ao Amapá, voltando a Brasília no dia 18, próxima sexta-feira. No Acre, Gonçalves se reuniu com o fotógrafo Sebastião Salgado, que recebeu autorização da Funai para fotografar os índios isolados e recém contatados, denominados de povo do rio Xinane.

À Amazônia Real, o ex-presidente da Funai, Mércio Pereiro Gomes lamentou o sertanista Sydney Possuelo comparar a nota de repúdio da Funai contra os índios Matís a uma declaração sua à agência de notícias Reuters, em 2006, que, segundo ele, foi "descontextualizada".

"Lamento que o Sidney não tenha refletido melhor sobre o que disse de mim naquela ocasião. É tão evidente que a entrevista [da Reuters] foi truncada, é tão evidente que eu jamais disse isso que ele falou. De todo modo, ele que continue com sua consciência pesada e seu rancor por ter sido demitido", afirmou Mércio Gomes.

A frase do ex-presidente da Funai em questão foi publicada pela agência Reuters. A agência atribuiu à Mércio Gomes a declaração de que os povos indígenas do Brasil têm "terra demais: até agora, não há limites para suas reivindicações fundiárias, mas estamos chegando a um ponto em que o Supremo Tribunal Federal terá de definir um limite".

À época, o sertanista Sydney Possuelo criticou Mércio Pereira Gomes, o comparando a madeireiros e garimpeiros da Amazônia. Em represália, Gomes demitiu o sertanista da coordenação-geral do Departamento de Índios Isolados da Funai, onde trabalhava desde 1987.

Procurado novamente nesta segunda-feira (14), o sertanista Sydney Possuelo disse que "simplesmente comparou os dois, Mércio Pereira Gomes e João Pedro Gonçalves". "Não se trata de aceitar ou não aceitar [a demissão]", disse.

A investigação do MPF e os direitos humanos

À reportagem, o procurador Ramon Amaral, do Ministério Público Federal de Tabatinga (AM), disse que em "relação à suposta agressão ao médico da Sesai", Lucas Infantozzi Albertoni, tomou conhecimento do caso pela nota da Funai e pela imprensa.

"Nas próximas semanas serão convocadas algumas pessoas para que possamos estabelecer, primeiro, se trata de atribuição do MPF investigar. Caso seja positivo, será instaurado o procedimento adequado (Procedimento Investigatório Criminal ou Inquérito Policial) a fim de apurar as circunstâncias do caso", disse.

Com relação ao conflito interétnico entre os índios Matís e Korubo, o procurador Ramon Amaral afirmou que ainda não foi possível concluir de forma segura o que de fato ocorreu entre as duas etnias.

"O caso está sendo apurado. Quanto à violação dos direitos humanos, refiro-me à situação geral do Vale do Javari, que, sabemos, é abandonado pelo Poder Público (dos três níveis - Federal, Estadual e Municipal) - em prejuízo ao direito à saúde, educação e à própria dignidade humana dos indígenas que lá habitam. Não sabemos ao certo, mas isso pode ter propiciado conflitos interétnicos com resultados gravíssimos", disse o procurador do MPF de Tabatinga.

O procurador Ramon Amaral disse que o MPF tem como uma de suas missões a busca constante da proteção dos direitos indígenas, proteção que passa primeiro pela elaboração de uma política adequada da Funai, e, segundo, pela execução condizente com esta política pelos gestores.

"Tenho a clara convicção de que a elaboração e execução de uma boa política exigem esforços enormes e tempo suficiente para amadurecimento. Sendo assim, neste momento de ânimos acirrados no Vale do Javari, o MPF conclama aos povos indígenas que continuem tendo a serenidade e a inteligência emocional necessárias para que alcancemos uma solução justa dos problemas atuais, sem que se comprometa o que já foi alcançado ao longo da última década. Por tal motivo a elevada importância dos Matis e lideranças das demais etnias para o futuro foi exaltada durante a última reunião do MPF com as lideranças políticas. A postura e as ações de hoje darão o rumo do que será o Vale do Javari amanhã", afirmou o procurador Ramon Amaral.

O Movimento Indígena do Amazonas afirma que ficou revoltado com a nota de repúdio da Funai conta o grupo de índios Matís. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a União dos Povos Indígena do Vale do Javari (Univaja) prometeram denunciar o caso à relatora especial das Organizações das Nações Unidas (ONU) sobre direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, que está no Brasil até o dia 17 de março.

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