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Repactuando o risco hidrológico

Valor Econômico, Opinião, p. A10
Autor: CASTRO, Nivalde J. de; BRANDÃO, Roberto
29 de Set de 2015

Repactuando o risco hidrológico

Nivalde de Castro e Roberto Brandão

Desde 2013 uma seca severa afeta o setor elétrico brasileiro provocando uma crise financeira com acúmulo de obrigações em volumes inéditos relacionadas ao custo de curto prazo de energia. Para preservar a solvência financeira do sistema o governo adotou uma série de inovações regulatórias.
Inicialmente as distribuidoras ficaram sem caixa para pagar os altíssimos preços no spot. As contas bilionárias na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) foram cobertas pelo Tesouro Nacional e, em fase posterior, com empréstimos de R$ 21 bilhões via CCEE, securitizando os aumentos futuros da conta luz. Para 2015 a Aneel promoveu mudança no preço spot (PLD), reduzindo o volume financeiro das transações na CCEE. Em janeiro de 2015 foram introduzidas as "bandeiras tarifárias", repassando a cada mês (e não mais uma vez ao ano) os custos efetivos da energia para os consumidores.
O novo capítulo da crise é o déficit de geração das usinas hidroelétricas. Com a seca o operador do sistema (ONS) restringiu a geração hídrica, levando as hidroelétricas a gerarem menos do que a energia vendida em contratos. Elas são com isso obrigadas a comprar energia no spot a preços elevados. Por meio da Medida Provisória 688 o governo propôs a repactuação do risco hidrológico, criando mecanismos para reduzir o risco dos geradores.
O fato determinante da MP é a paralisia das liquidações da CCEE. Geradores obtiveram liminares na Justiça suspendendo compromissos financeiros relacionados ao déficit de geração. A guerra de liminares determinou na liquidação de agosto uma inadimplência de R$ 1,4 bilhão, representando 47,2% do volume contabilizado na CCEE. Por prevenção, a Aneel adiou a liquidação de setembro (o mesmo podendo acontecer em outubro) e abriu Audiência Pública para regulamentar a proposta do governo.
A solução proposta pela MP 688 é complexa. Cada agente deve manifestar individualmente o interesse em repactuar o risco hidrológico. E o destravamento do mercado só será obtido se a grande maioria dos geradores aceitar a proposta do governo e retirar os questionamentos judiciais. Para aumentar a complicação, cada usina tem situação distinta, como veremos a seguir.
O primeiro caso é das usinas em operação com contratos com as distribuidoras. A solução proposta é muito vantajosa, pois o risco hidrológico é transferido para os consumidores, que passam a arcar com os déficits de geração e usufruir de eventuais superávits. A contrapartida dos geradores hídricos para a transferência de risco é a concessão de um desconto (a proposta da Aneel é de 10% do contrato para 2015 e R$ 6,90/MWh para os anos seguintes) no preço da energia já contratada.
Mas como a transferência do risco retroage a janeiro de 2015, o gerador hídrico, que nesse ano pagou o déficit de geração, estará inicialmente em posição credora em relação aos consumidores. Os descontos nos contratos com as distribuidoras serão de início debitados contra os créditos dos geradores de forma que a redução nas contas de luz só vai ocorrer após vários anos.
Além de transferir o risco hidrológico para o consumidor, a MP também tira do gerador as perdas derivadas de eventuais reduções da garantia física, que é o volume de energia que efetivamente pode ser vendido em contratos, definido pelo MME e revisto periodicamente.
Para usinas com contratos com as distribuidoras, mas que ainda não entraram em operação, como Belo Monte e Teles Pires, a situação não é tão favorável, pois não haverá crédito algum relativo a 2015 e o desconto no contrato implicará redução imediata de receita. Mas elas ficam sem risco futuro de déficits de geração e de revisões de garantia física, o que não deixa de ser vantajoso.
Já para os geradores hídricos que vendem no mercado livre, a opção para reduzir o risco hidrológico é assumir a responsabilidade pela energia de reserva. A energia de reserva são usinas (sobretudo eólicas) contratadas em leilões regulados como reforço para o sistema e que atualmente são custeadas pelos consumidores. Assumindo estas usinas, os geradores hídricos contarão com mais energia, que ajudará a compensar eventuais déficits de geração. A solução para o mercado livre também retroage a janeiro de 2015, mas o crédito será aqui convertido em uma extensão da outorga ao final da concessão.
Como a atual proposta da MP foi e tem sido debatida entre o governo e os geradores, acredita-se que a situação evoluirá de forma que haverá adesão e o mercado será destravado. Caso contrário, haverá um potencial de quebra da cadeia de pagamentos do setor elétrico, causando grave prejuízo à economia.
A inexistência prévia de mecanismos adequados para lidar com uma situação de seca prolongada causou instabilidade financeira no setor elétrico, que não estava preparado para lidar com os fluxos financeiros bilionários associados ao uso intenso das termoelétricas e à alta do preço spot.
As inovações regulatórias introduzidas para lidar com a crise foram bem-vindas, pois mantiveram o sistema solvente. Mas espera-se que findo mais este capítulo da crise, seja feita uma revisão cuidadosa no modelo de comercialização de energia no atacado a fim de recriar as condições de confiança e estabilidade para o setor.
Os pontos fundamentais a serem repensados são: (i) alteração da lógica de contratação de energia de forma a reduzir (e não apenas mitigar ou realocar) o risco financeiro em situações de seca; e (ii) reforço na supervisão de risco na comercialização de energia, garantindo que os agentes sejam capazes de lidar com fluxos financeiros típicos de situações de seca severa.

Nivalde de Castro é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel).
Roberto Brandão é pesquisador sênior do Gesel-IE-UFRJ

Valor Econômico, 29/09/2015, Opinião, p. A10

http://www.valor.com.br/opiniao/4246612/repactuando-o-risco-hidrologico

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