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Relações variam conforme interesse

Diário de Cuiabá - Cuiabá - MT
Autor: Carla Pimentel
25 de Fev de 2001

Passagem dos Kaiabis por Tabaporã, no norte do Estado, mostra como pode ser a convivência

Guerra em campo. De um lado, índios dispostos a atacar. De outro, brancos decididos a não perder a disputa. Quem imagina que esta é uma descrição do bloqueio da via de acesso ao Rio dos Peixes, no município de Tabaporã (a 700 quilômetros de Cuiabá), que criou um impasse entre fazendeiros e Kaiabis há dez dias, engana-se: trata-se de uma partida de futebol, disputada entre o time visitante e moradores locais, às vésperas da reunião com a Funai, que dissolveria o impasse.

As relações entre brancos e índios é variável. Tabaporã foi uma vitrine disso, por ter sido palco de três comportamentos distintos. O primeiro – e mais evidente - foi estabelecido pelos fazendeiros e madeireiros, que deixaram claro o olhar sobre o índio como persona non grata na região. A opinião foi materializada pelos caminhões, toras e homens que mantiveram o bloqueio.

Outras manifestações são mais sutis. Nas rodas de conversa que multiplicaram-se durante os quatro dias de permanência dos Kaiabis na cidade, parte da população não chegava a combater os índios, mas também não via dividendos na possível retomada de terras pela população nativa. Índios não trabalham, não geram riquezas, não pagam impostos; esses eram alguns dos comentários que circulavam de boca em boca.

Mas outras reações, menos discretas, movimentaram a cidade. Longe das disputas por terras que mantiveram o clima de tensão durante a permanência dos Kaiabis, uma fatia da população não arredou pé do galpão da igreja, onde o grupo esteve hospedado. Transformado em ponto turístico, o local foi sede de interação entre índios e brancos, que não esconderam a curiosidade em relação à cultura indígena. Eram trabalhadores rurais assentados, funcionários de fazendas e serrarias, donas de casa, crianças, que fizeram um novo cerco aos índios – movidos não pela luta pela terra, mas pela curiosidade.

Isso revela que não existe uma realidade monolítica, opina a doutora em Antropologia e especialista em relações étnicas, Edir Pina de Barros, da Universidade Federal de Mato Grosso. As relações são diversas porque não nascem do vazio – elas estão sempre relacionadas a um jogo de interesses, completa.

O espaço que as pessoas ocupam em sociedade, para a antropóloga, é definidora dessas relações. A existência – ou não – de competição entre os grupos é a base sobre a qual se passa a enxergar o outro. A seu ver, a inesperada chegada dos Kaiabis colocou em cheque o sistema de apropriação de terras, tirando o sono dos fazendeiros locais. Formou-se um impasse em torno da propriedade territorial, quebrando um jogo que, até então, se sustentava. Ela acrescenta que a tendência, nesses casos, é de formação de aliança entre os fazendeiros, contra a ameaça que, para o grupo, os índios significam.

Mas outra parte da população não perde nada com isso, lembra Edir Pina, referindo-se principalmente a comerciantes e outras fatias da sociedade que, por não ter terras, não são diretamente afetadas por uma possível vizinhança com os Kaiabis. Nesse caso, segundo ela, o preconceito histórico – que é próprio da população brasileira – toma a frente no estabelecimento das relações.

São pessoas que não competem por espaço com os Kaiabis, mas reproduzem estigmas colados historicamente à categoria genérica de índio, afirma a antropóloga. Esses estigmas são repetidos e absorvidos pela população: o índio preguiçoso ou vagabundo são imagens que, para a professora, refletem esse preconceito. São 500 anos de discurso anti-indígena, completa.

É comum se falar que os índios não serviam nem para ser escravizados. Mas, entre os séculos XV e XVIII, a mão-de-obra indígena foi utilizada em várias partes do país. Eram os chamados negros da terra´, exemplifica Edir Pina.

Já a simpatia às questões indígenas geralmente espalha-se entre os jovens. Mas também há posseiros e outras camadas da população – também deserdadas - que acabam identificando-se com a causa, chegando a aliar-se aos índios em algumas situações de crise. Um exemplo disso foi a formação de quilombos, que abrigavam negros e índios, diz a antropóloga.

Outro olhar sobre os índios é aquele capaz de enxergá-los como uma população ingênua, pacífica, sem conflitos – o que revela, às avessas, outro tipo de preconceito. Edir Pina exemplifica que, no Rio de Janeiro, essa imagem é muito comum, por ser uma região distante dos problemas reais que envolvem a questão indígena. Longe da realidade, prevalece o glamour.

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