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A relação entre o indivíduo e os seres da floresta na medicina do Bahserikowi´i

Amazonia real http://amazoniareal.com.br/
Autor: Elvira Eliza França
21 de Jun de 2018

Durante uma das atividades do 13o Congresso Internacional da Rede Unida, ocorrido nas dependências da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), entre os dias 30 de maio e 2 de junho, em Manaus, o filósofo e antropólogo João Paulo Barreto, indígena do povo Tukano, também doutorando em antropologia pela UFAM, foi convidado para falar sobre "Espiritualidade e saúde". Assim que assumiu a palavra, o indígena também conhecido como João Paulo Tukano disse: "Somos muito fascinados pelo que os outros países fazem e deixamos de dar valor ao que nossa população faz!" Ele se referia aos conhecimentos tradicionais dos indígenas a todos os recursos que estão disponíveis na natureza para promover a saúde e que estão sendo negligenciados pela sociedade.

João Paulo é originário da comunidade São Domingos, que fica às margens do rio Tiquié, na região da Cabeça do Cachorro, no Alto Rio Negro, no estado do Amazonas. Em Manaus, ele desenvolve um trabalho de valorização dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, que teve início após um fato traumático que ocorreu com uma sobrinha, no ano de 2009. Ela foi picada por uma cobra jararaca (Bothrops jararaca) e transferida para um hospital de Manaus para se tratar. Após o diagnóstico médico, os profissionais chegaram à conclusão de que a menina deveria ter a perna amputada. Mas os parentes Tukano discordaram do procedimento, pois na família eles tinham um Kumu, um especialista em cura indígena (que em outros povos é chamado de pajé). Ele poderia ajudar no tratamento de saúde da menina.

Houve resistência dos médicos em aceitar que o Kumu (no plural é Kumuã) fizesse os procedimentos, alegando que eles tinham mais tempo de estudos na faculdade para resolver a situação da menina. Isso gerou uma polêmica, e os indígenas recorreram ao Ministério Público Federal do Amazonas - MPF, para impedir a amputação da perna da criança e obter a licença para que o Kumu participasse do tratamento. Com o apoio do MPF, a menina foi transferida para outro hospital, onde foi permitido o tratamento tradicional que a curou. Hoje ela é uma jovem e pode caminhar e correr tranquilamente.

Foi depois desse fato, que João Paulo empreendeu esforços para criar o Bahserikowi´i - Centro de Medicina Indígena da Amazônia, localizado na Rua Bernardo Ramos, 97, no Centro Histórico do Centro de Manaus, em 06 de junho de 2017. Nesse local, já atendeu ao público, com diferentes problemas de saúde, o Kumu Duhpó Manoel Lima, de 85 anos, do povo Tuyuka. Agora quem está atendendo é o pai do antropólogo João Paulo Tukano: o Kumu Ovídio Barreto. Manoel voltou para São Gabriel da Cachoeira este ano, e continua realizando seu trabalho na comunidade de onde tinha vindo.

Segundo João Paulo, desde a criação do Centro, foram atendidas mais de 1.200 pessoas: 80% são de mulheres, entre 30 a 50 anos. Eles buscam tratamentos variados para: náuseas, dor de cabeça, dor muscular, doença de pele, feridas e doença do útero, câncer, etc. O Kumu também benze as pessoas e invoca princípios curativos para ajudá-las a ficarem bem de saúde, harmonizando-se com os recursos da natureza e na relação com os seres que nela habitam. Esse benzimento é chamado pelos conhecedores Tukano de Bahsese, que significa fazer o bem na linguagem dessa etnia.

Durante o evento em que participou durante o congresso, João Paulo contou que, segundos Tukano, todos os espaços do mundo são habitados por seres chamados de Waimahsã. Para seu povo, "Precisamos viver em harmonia com esses seres, que preferem viver nos ambientes naturais e na floresta. Por isso, para usufruir da natureza, é preciso respeitá-los, utilizando dela somente o que é necessário. Destruir a floresta significa destruir a casa desses seres".

Por isso, os indígenas de seu grupo étnico procuram ser comedidos no uso dos alimentos como carne de animal, por exemplo, especialmente se for assada ou frita. Além disso, os indígenas também procuram viver em paz uns com os outros, evitando conflitos interpessoais, para que não sejam envolvidos com atos de quem deseja o mal para o outro, o que é denominado pelo seu povo de Doahse (palavra que significa desejar ou desferir o mal a alguém).

O acesso mais direto aos seres que vivem na floresta é obtido quando o indígena faz uso de determinadas substâncias que alteram os estados de consciência, como o rapé e outras. A fumaça do tabaco também é um elemento mediador entre o Kumu e os seres da natureza. Por isso, o Kumu precisa de um tempo para se preparar e obter os conhecimentos para saber fazer uso do tabaco e outras substâncias de modo adequado, sem prejudicar a própria saúde. O período de preparação de um Kumu, segundo João Paulo, é de, no mínimo, dois anos. Mas é durante toda a sua vida, no trabalho com a comunidade, que esse especialista de cura adquire os conhecimentos para promover a vida com saúde e paz em seu grupo social. Por isso, a saúde dos indígenas está sempre vinculada aos recursos da floresta e também à relação deles com os seres da natureza, contando com o apoio do Kumu. Nesse contexto, o nome que uma pessoa recebe ao nascer é um dos aspectos mais importantes para que ela possa sempre retornar à casa verdadeira, onde se reencontra com a força vital.

De acordo com a tradição Tukano, há sete condições para alguém ser humano: 1) a água; 2) a luz; 3) o fogo; 4) o animal; 5) o vegetal; 6) o grupo; 7) o próprio nome. Ainda que compartilhe com outros animais a maior parte dessas condições, será pelo nome que o indígena irá se tornar realmente humano. Por isso, o nome só pode ser dado depois do nascimento, quando a criança é apresentada ao grupo. É pelo nome que a pessoa se torna gente, e é pelo nome que irá se relacionar com os antepassados, com os seres da natureza e com os demais membros de seu grupo.

Assim, quando alguém fica doente, o Kumu sempre identifica quando a doença começou e qual o contexto em que a pessoa estava vivendo. Além disso, ele procura estabelecer a relação entre o indivíduo e os seres da floresta que o atacaram quando sentiram seu espaço violado: é um ataque que, muitas vezes é sutil e se processa de diferentes formas. Por isso, João Paulo Tukano atribui certos problemas que as pessoas estão vivenciando atualmente - como aumento das doenças, falta de efeito dos medicamentos, hospitais lotados, conflitos entre pessoas e países e outros - como resultado da violação dos espaços dos seres da natureza, que estão sendo desrespeitados. Para que tudo volte ao normal, é preciso então dialogar com eles, e aprender a pedir licença para utilizar o espaço onde eles habitam.

João Paulo disse que a ciência está desconectada da lógica cósmica, da família, da terra que sustenta a todos, assim como também do nome que dá a referência a cada ser humano que existe no mundo. No caso da saúde, os profissionais utilizam vários procedimentos para curar, mas se esquecem de dialogar com esses seres que estão presentes no mundo. Nos hospitais, por exemplo, os profissionais sequer apresentam os doentes ao ambiente e às pessoas que são visíveis e que irão cuidar delas. Assim, a falta de respeito com os seres que são invisíveis e atuantes na vida das pessoas, piora, ainda mais, a sua condição de saúde quando não é estabelecida a conexão.

No dia 9 de junho de 2018, durante a comemoração do primeiro aniversário do Bahserikowi´i - Centro de Medicina Indígena da Amazônia, criado para oferecer esse tratamento complementar de saúde, com os conhecimentos tradicionais dos indígenas, foi promovida uma roda de conversa sobre Medicina Tradicional Indígena: concepções, práticas e contextos. Quem coordenou a roda foi o Dr. Gilton Mendes dos Santos, do Núcleo de Estudos Antropológicos Indígenas - NEAI/ do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas - PPGAS/UFAM. Estiveram presentes como expositores: Domingos Sávio Barreto, indígena Tukano e coordenador regional da Funai no Alto Rio Negro; Ricardo Rella, pesquisador em antropologia médica, Dr. Fernando Merlotto Soave, procurador do Ministério Público Federal no Amazonas, e o indígena doutorando em antropologia João Paulo Barreto.

O Kumu, o Pajé e o Bayá

Domingos Sávio Barreto mora em São Gabriel da Cachoeira, na região do Alto Rio Negro. No início de sua fala, ele fez questão de enfatizar que cada povo tem sua maneira de expor os conhecimentos sobre a etnia à qual pertence e por isso justificou que iria direcionar sua fala sobre a experiência do clã ao qual pertence, que tem 3.000 indígenas Tukano. Já na região do Alto Negro, segundo ele, existem 23 povos com sistemas diferentes de fazer a preparação para a vida. Ele explicou que na cultura de sua etnia, a saúde possui três aspectos culturais que estão relacionados e interligados: a medicina, a preparação para a vida e a prevenção. Por isso, antes mesmo de nascer, a criança já é preparada para viver no grupo e dispõe de três especialistas que a irão acompanhá-la na vida: antes, depois do nascimento e até à morte. Domingos expôs diferenças entre os especialistas:

"O Kumu atua com benzimentos; o Pajé realiza os tratamentos de cura, e o Bayá promove diferentes tipos de rituais". Esses três especialistas, disse a liderança, formam uma composição hierárquica, um trio da cultura Tukano, que cuida da vida, da saúde e da paz das pessoas do grupo.

Para que os presentes ao evento pudessem entender como atua cada um desses especialistas da tradição Tukano, Domingos fez uma comparação com os especialistas da sociedade do branco, dizendo que o Kumu faz a prática do benzimento da criança antes dela nascer e no decorrer da vida. Contudo, essa não é uma regra geral em todos os clãs, porque nem sempre todos os grupos têm Kumuã (plural de Kumu), ou outro especialista da cura. Somente no rio Tiquié, segundo ele, há 34 clãs e há clãs em que os benzimentos são feitos pelo Bayá ou pelo Pajé. O Pajé, seria como um clínico geral, que faz uma abordagem ampla. Contudo, se ele constatar que há algo específico que precisa ser tratado, então ele encaminha o indivíduo para o Bayá, um indígena que possui conhecimentos mais especializados e que realiza tratamentos específicos por meio de rituais.

Assim, uma etnia pode encaminhar a pessoa para um Bayá de outra etnia, para complementar o tratamento de saúde, quando ele possui outros conhecimentos que não estão disponíveis em seu clã. "Bayá é outro especialista, que vai entrar num outro mundo que os outros dois estão ligados: o Kumu e o Pajé". De todo o conhecimento que tem, o Bayá está envolvido com os rituais que podem ser de dança ou outros, por meio dos quais ele expressa o que é necessário para que a comunidade viva em paz na saúde e também na alegria. Por isso, o Kumu, o Pajé e o Baya têm ligações e se complementam para promover a saúde e o bem viver dos povos Tukano.

É assim que, em cada fase da vida, a criança será acompanhada por esses três especialistas enquanto cresce. É um cuidado que dura até o final de sua vida. "A prevenção é uma parte desse conhecimento e já acontece antes mesmo do nascimento e segue a pessoa por onde ela estiver. A criança já nasce preparada para enfrentar as doenças do mundo, pelos benzimentos que recebe do Kumu, e que previne doenças, para a criança não morrer cedo. Mas essa criança é preparada para ser um cidadão comum, para ser um ser social, ou então para ser um pajé. Ela é preparada para enfrentar os males da vida na terra de modo certo, e ele segue sua especialidade para ser um índio da etnia dele".

A cura, segundo Domingos, é uma questão que está presente no sistema da medicina indígena, sob a responsabilidade do Kumu, do Pajé e do Bayá. A origem das doenças e a cura estão nos conhecimentos tradicionais do povo Tukano, e a medicina indígena faz a preparação para a vida até quando a pessoa morre. "Não é qualquer um que faz esse preparo! Se tiver vocação, o cidadão vai virar pajé, e se não tiver, vai ser um cidadão comum. Ser curado é viver bem de saúde, bem alimentado com comida, e isso faz as pessoas das comunidades viverem em paz".

Para os indígenas Tukano, as doenças aparecem quando as pessoas desorganizam a natureza, mexendo com o território dos outros, indo para uma área além do permitido e fazendo outras coisas que agridem a natureza e os seres que nela habitam. "A natureza, quando bem tratada, traz saúde; quando maltratada, ela traz doenças." É nessa relação entre a saúde e a natureza que os indígenas se ressentem da falta de conhecimento da população da sociedade envolvente sobre as tradições dos povos que habitam a floresta, alegando que, se houvesse diálogo e troca de conhecimentos entre essas duas culturas, mais saúde poderia ser garantida para toda a população.

Para Domingos, todos têm à disposição os conhecimentos da medicina indígena e também da medicina ocidental: nenhuma é superior ou inferior à outra. O que falta, no entanto, são os espaços para que ambas as medicinas dialoguem. Segundo o que constata, o sistema da medicina ocidental é visto como sendo um sistema superior, o que não deveria ser assim, segundo ele. O que acontece, é que há falta de compreensão sobre como funciona cada sistema e, consequentemente, isso impede a sintonia entre povos diferentes. Por isso, muitas vezes um desses sistemas pode ficar mais focado na teoria do que na prática.

"Para nós, povos Tukano, a cura da prevenção para a vida é muito importante! Muitas vezes, os indígenas ficam encantados com as coisas da cidade e se esquecem das tradições de seus povos. É muito bom que cada povo fale sobre sua cultura, porque isso une e jamais destrói a cultura da outra etnia. É isso que faz a vida saudável, com todos respeitando a natureza!" Domingos disse que o povo Tukano tem, nos três especialistas de cura, o complemento para assegurar a saúde e o bem viver das pessoas. O Kumu, o Pajé e o Bayá ajudam a cuidar do território, da vida, da saúde, da governança com o uso da inteligência para que todos tenham cuidado com a terra. "Esse trio faz usar o território de forma sustentável, para guardar bem o patrimônio genético, os conhecimentos tradicionais e fazer o intercâmbio com os outros povos. Em torno deles gira a vida".

Os saberes da cultura tradicional

O pesquisador em antropologia médica Ricardo Rella, que tem uma grande experiência com grupos da África, disse, durante a cerimônia do aniversário do Bahserikowi´i, que investigou como os conhecimentos tradicionais podem ser resgatados com a participação das mulheres. Ele disse que depois que a penicilina foi inventada, as pessoas começaram a se esquecer de levar em consideração os outros saberes sobre a saúde tradicional dos povos, porque o medicamento curava mais rapidamente as pessoas. "Isso fez com que os conhecimentos tradicionais fossem deixados de lado, porque as pessoas preferiam falar com o médico e pegar o medicamento que é entregue gratuitamente pelo governo. Contudo, o uso dos medicamentos gerou uma busca das marcas ocidentais de fármacos que podiam ser comprados com dinheiro, o que gerou uma disputa de marcas e valores, um problema que envolve a política de governo e a economia", disse o pesquisador.

Para Ricardo, o que acontece no Brasil não difere do que acontece na África: "a nova geração foi alienada dos conhecimentos tradicionais sobre saúde, o que torna muito difícil recuperar a medicina tradicional nos dias atuais, porque em muitos lugares ela é tratada como se fosse bruxaria. Na África, a medicina tradicional também é vista como sendo algo contra a religião islâmica, e por isso é proibida e usada de modo clandestino. Por isso, as pessoas se recusavam a falar sobre isso, ficando ainda mais afastadas do sistema biomédico. A religião islâmica também não permite o contato entre os sexos e a mulher não pode falar com os homens. Isso criou uma série de mal entendidos e prescrições inadequadas de medicamentos", explicou Ricardo.

Ele ressaltou a dificuldade que as mães e seus filhos têm para serem atendidas por médicos e como foi importante a presença das mulheres médicas no atendimento à saúde na África, num processo que também envolveu o resgate da medicina tradicional. "As médicas começaram a perceber que nem sempre era preciso aplicar antibióticos para certos problemas de saúde das crianças, e começaram a fazer uso da medicina tradicional. Essa valorização do conhecimento da população, no entanto, não acontecia quando o profissional era um homem, principalmente porque ele não valoriza os conhecimentos das mulheres e dão preferência para recomendar o uso de medicamentos", disse o pesquisador.

Na pesquisa antropológica que realizou, Ricardo constatou que as parteiras tiveram um papel importante nesse resgate da cultura tradicional relacionada à promoção da saúde. "Elas preferiam fazer o parto em casa e não no hospital, por causa da questão da higiene. Em Zanzibar, as mulheres estão promovendo a medicina tradicional e estão conseguindo salvar os conhecimentos de seus ancestrais antes que sejam mortos de vez. É uma experiência que está tentando manter viva uma medicina com as pluralidades culturais. Mas o medo é um dos miolos do patrimônio cultural, e essa é uma experiência única para fazer voltar a viver uma medicina que também é o patrimônio cultural de um povo", disse ele ao concluir sua fala.

O impacto entre as culturas e o papel do MPF

Kumu Ovídeo Barreto, de calça cinza, e demais membros do Centro de Medicina Indígena (Foto: Elaíze Farias/Amazônia Real)

Presente no evento do Centro de Medicina, também esteve o procurador do Ministério Público Federal - MPF o Dr. Fernando Merlotto Soave, que atua no 5o Ofício para as questões que envolvem os indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais. Ele disse que quando chegou de São Paulo para trabalhar no Amazonas, não tinha ideia de como era o padrão de vida das pessoas no Norte do país. Por isso, sofreu um grande impacto com a cultura, pois havia aprendido muito nos livros, mas tinha poucos conhecimentos práticos na vida. Para solucionar a carência dos dados sobre a cultura da região, Fernando disse que foi estudar antropologia: queria saber como poderia realmente ajudar as pessoas. Fez um comparativo dos conhecimentos tradicionais dos indígenas com o que está acontecendo com a acupuntura da medicina oriental, que mais recentemente passou a ser reconhecida nos atendimentos médicos, sendo construída uma ponte para ligar e agregar os conhecimentos do Ocidente com os do Oriente.

O procurador do MPF enfatizou a importância do diálogo, para que as pessoas conheçam os aspectos diferentes entre as culturas. Só assim, disse ele, as pessoas poderão aderir ou abandonar o que quiserem, mas com os devidos conhecimentos. Lembrou que os médicos cubanos que vieram para trabalhar no interior do Amazonas e de outros lugares do Brasil ajudaram muito as pessoas, por terem um olhar diferenciado, voltado para a prevenção. "Para o brasileiro, medicina é remédio, e isso é muito ruim. O remédio pode ser usado se for necessário, mas há coisas que podem ser resolvidas por outros meios, como os chás. Nossa medicina está começando a considerar isso agora, mas a medicina cubana é muito mais do que dar remédios, que é algo mais imediatista e tem suas consequências danosas também, e pode ser destruidora". Então, mencionou novas pesquisas que estão revertendo esse conceito de medicina ligada somente ao uso de medicamento, e esse avanço abre espaços para outros procedimentos tradicionais da medicina dos povos indígenas.

Fernando falou, ainda, sobre os diferentes tipos de denúncias que chegam ao Ministério Público Federal. Entre elas, estão os altos índices de suicídio, alcoolismo, uso de drogas etc. Disse que o MPF se dirige aos órgãos específicos para investigar o que está ocorrendo e está realizando um trabalho há dois anos nessa busca. Informou que já foi estabelecida uma conversa com o Centro de Atenção Psicossocial sobre Álcool e Drogas - CAPSad para a criação de uma política pública de atenção aos indígenas. Esse diálogo mobilizou pessoas de Brasília, médicos que atuam na calha do rio Solimões, e outras pessoas, disse o procurador. Assim, para ele, a criação do Centro de Medicina Indígena possibilitou um espaço maior para o diálogo com as diferentes etnias. Disse ele ainda: "Há conhecimentos que podem ser aproveitados da ciência, mas nem sempre se encaixam nos conhecimentos dos Kumuã (plural de Kumu), dos Pajés e dos Bayás. É preciso diálogo e abertura para as curas psicossomáticas. As pesquisas mostram os resultados do placebo que ocorrem nas curas. Num contexto mais amplo, que envolve a natureza, podemos entender o motivo das doenças por causa das agressões à natureza. Esse é um caminho para acontecer no diálogo."

O procurador Fernando Soave ainda destacou que há duas semanas foi assinada uma portaria que foi resultado de um intenso debate entre especialistas e das discussões que ocorreram num evento na Universidade Federal do Amazonas, no qual foi discutido o modo diferenciado de saúde para os indígenas. "Agora, já se pode colocar redes nos hospitais ao invés de dar camas para os indígenas deitarem". O costume de dormir na rede desde criança é fundamental para o resgate da saúde entre os indígenas e com a portaria do MPF eles terão direito a ficar na rede durante a internação hospitalar, disse o procurador.

Ele também mencionou o acompanhamento que o MPF fez do caso da sobrinha do antropólogo indígena João Paulo Barreto, que foi picada por uma jararaca e, segundo o diagnóstico médico, deveria ter a perna amputada. Mas os parentes dela não aceitaram a amputação e resistiram ao diagnóstico fechado dos médicos. Então, pediram apoio do MPF para que a criança não tivesse a perna amputada, e ela foi transferida para outro hospital, no qual também pôde ser tratada por um Pajé. Assim, ela ficou curada, fortalecendo o poder do conhecimento tradicional dos indígenas na família e no grupo social. Por isso, essa portaria do MPF prevê a discussão sobre o olhar diferenciado da medicina indígena, para que ela possa crescer na sociedade. "É uma forma de se abrir para outras realidades, para crescer em conhecimento".

Acolhendo a diferença
Gilton Mendes dos Santos, do Núcleo de Estudos Antropológicos Indígenas (NEAI) da UFAM, que coordenou a roda de conversa, disse que o "Centro de Medicina Indígena foi pensado em ser instaurado para que pudesse ter essa centralidade de simetria entre conhecimentos e práticas. É preciso realizar coisas para mostrar essa simetria. É preciso mostrar a diferença entre a medicina indígena, ancorada numa concepção de vida e de mundo diferentes, que são tão organizadas como a cosmologia ocidental, ainda que seja diferente e com outros valores". Para ele, há uma sobrevalorização de outras práticas e conhecimentos, e isso cria uma assimetria, na qual as concepções indígenas não podem ser consideradas, a não ser como efeito placebo.

Para Gilton a medicina ocidental não pode estabelecer relações com outras práticas, partindo do princípio de que tem o domínio da verdade. "É preciso entender as práticas de modo amplo e de como elas se englobam em sistemas diferentes. O sistema médico diz que é preciso capacitar os indígenas, mas nós dizemos o contrário: que os agentes da saúde devem, também, ser capacitados pelo modelo indígena. Assim, esse centro pode fermentar esse modelo de medicina indígena, tal como o modelo da medicina médica. Se isso não acontecer, vai sempre ocorrer a concepção de que o resultado é placebo. Há muitas práticas nos arredores da capital e as coisas estão acontecendo, mas sem a visibilidade deste centro de medicina indígena".

Na concepção de Gilton, o espaço do Bahserikowi´i - Centro de Medicina Indígena "deve ser o cadinho para juntar pessoas para debater e trazer suas propostas, para explicitar o modelo da prática de medicina indígena. Ali há várias atividades que estão sendo promovidas para integrar essa miríade de práticas que precisam ser mostradas, dentro de uma concepção global diferenciada".

Ele diz que é preciso que se estabeleça um diálogo sem as categorias a priori. "É preciso prestar a atenção e não fazer uma apropriação do que é conveniente e jogar o resto fora. A concepção indígena para vida e corpo é outra. Há importância no nome [da pessoa] e outras coisas que são fundamentais [os seres da natureza]. As práticas estão sendo amadurecidas e há muito conhecimento no silêncio das mulheres, e o centro está sabendo acolher tudo. Isso faz o centro ser um lugar para acolher a diferença e o verdadeiro diálogo pode dar uma margem sólida para essa ponte entre os conhecimentos".

Rios e cachoeira

Encerrando a fala na cerimônia do aniversário do Bahserikowi´i - Centro de Medicina Indígena, João Paulo Barreto disse que quando decidiu estudar antropologia, seu pai, o Kumu Ovídeo, lhe perguntou: "O que vai fazer com esses conhecimentos?" Essa fase de decisão coincidiu com o que havia ocorrido com sua sobrinha, que estava prestes a ter a perna amputada pelos médicos, sob os protestos da família. "Não adianta discutir sobre rios e cachoeiras, sem falar sobre o conhecimento que está sendo operado ali. Não podemos pensar em parto sem pensar na floresta! Não se pode simplesmente chegar e derrubar a mata! Está em jogo o diálogo de igual para igual: uma conversa que dá acesso ao público a esse conhecimento".

João Paulo disse que a maior parte das pessoas que procura pelo tratamento no Centro são pessoas brancas: a maioria é de mulheres, entre 30 a 60 anos, o que merece uma investigação posterior sobre essa clientela e suas necessidades. Ele disse que aquela Casa é também um espaço de circulação de conhecimentos e que já vieram pessoas de outras etnias atender no local. Contudo, faltam recursos financeiros. Os indígenas recusam a ideia de que o Centro seja considerado um ponto turístico na cidade. "Isso pode ser perigoso e banaliza o serviço de saúde que ali é prestado. Queremos que esse espaço contamine todo o Brasil, produzindo, fazendo pesquisa, para nos apropriar e mostrar para a ciência o que podemos fazer", disse o antropólogo. Então complementou: "Os indígenas poderão encantar outras pessoas sobre o que é a medicina tradicional dos indígenas, beneficiando-se dela também."

BAHSERIKOWI´I - Centro de Medicina Indígena da Amazônia

Funcionamento: De segunda a sexta, das 9h às 15h

Local: Rua Bernardo Ramos, no. 97, Centro de Manaus

Tel: (92) 99271 - 7500 / 98249-5991

Veja o vídeo de João Paulo apresentando o histórico da criação do Bahserikowi´i - Centro de Medicina Indígena da Amazônia.

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: "Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas" editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); "Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior" (1995), "Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior" (1993), "Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação" (1988) e "Filosofia da educação: posse da palavra" (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).

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