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Regras de convivência entre militares e índios.

Foirn-São Gabriel da Cachoeira-AM
Autor: Orlando Oliveira José Maria de Lima Rosilene Fonseca
14 de Fev de 2003

Documento da FOIRN para a segunda sessão do "Diálogo de Manaus", no Comando Militar da Amazônia, em 19/fev/2003.

Desde 1996 a FOIRN vem se dirigindo por escrito às mais altas autoridades do governo federal, solicitando que fossem criadas regras de convivência entre nós e os militares do Exército que estão servindo nos pelotões - a maioria na Terra Indígena Alto Rio Negro - subordinados ao Vo BIS, com sede na cidade de S. Gabriel da Cachoeira (AM).

Na Terra Indígena Alto Rio Negro já estão instalados quatro pelotões: Pari-Cachoeira (alto Tiquié), Iauareté e Querari (alto Uaupés) e S. Joaquim (alto Içana). Um quinto pelotão está sendo construído em Tunuí (alto Içana). Fora de terra indígena demarcada, mas na área de abrangência da FOIRN, também estão situados o pelotão de Cucuí e o quartel sede do Vo BIS. Existe um pelotão em Maturacá, situado na Terra Yanomami. Não sabemos se está prevista a instalação de outros pelotões futuramente.

Durante esses últimos 15 anos, quando aumentou a presença do Exército na Cabeça do Cachorro, surgiram várias questões de convivência que precisam ter regras aceitas por ambas as partes e um sistema de controle capaz de verificar se essas regras estão sendo cumpridas. Os vários comandantes dos pelotões e do Vo BIS que passaram pela região foram procurados muitas vezes pelas lideranças das comunidades para tentar resolver esses problemas de convivência e os resultados foram variados. Mas nunca foi possível ter um conjunto de regras por escrito, que pudesse fazer parte do treinamento dos militares que servem na região e também ser divulgado nas comunidades e orientar as nossas lideranças.

Mas desde que foi aberto um canal de diálogo com a cúpula do Exército em Brasília no final de 2002, seguida de uma reunião no CMA em Manaus, a FOIRN mobilizou lideranças da região do alto e médio Rio Negro para tratar desse assunto e contribuir com sugestões para a elaboração de regras de convivência.

As sugestões da FOIRN são as seguintes:

1. Na fase anterior a instalação de pelotões e outras estruturas militares permanentes dentro de Terra Indígena, as comunidades e organizações indígenas diretamente interessadas deveria ser tratadas com respeito e receber informações sobre o que vai acontecer. Deve haver um diálogo com as lideranças das comunidades diretamente envolvidas e suas associações, com tempo e condições que garantam a nossa livre manifestação e o registro por escrito do que foi conversado. Essa fase é muito importante e precisa ter o acompanhamento do Ministério Público Federal. Nós queremos entender e poder opinar sobre o que vai acontecer e a nossa experiência é que muitas vezes as reuniões são convocadas de surpresa, sem assunto definido com antecedência, sem incluir o conjunto de lideranças e sem respeitar o fato de que a maior parte dos nossos parentes não compreendem bem o português, o que resulta no começo de mal entendidos e divergências no futuro. Sobre a localização e os impactos dos pelotões e outras instalações militares em terras indígenas, nós gostaríamos de ser ouvidos formalmente, depois de ter conhecimento dos projetos detalhados, com tempo de fazer perguntas e sugestões. Não gostaríamos, por exemplo, que essas instalações fossem feitas nos locais de nossas aldeias ou sobre locais considerados sagrados por nós, ou ainda nos caminhos para as roças e locais de pesca. As contrapartidas que as nossas comunidades e associações terão por apoiar as instalações militares, assim como as condições e procedimentos para o seu cumprimento, precisam ficar claramente registradas por escrito, com o acompanhamento do Ministério Público Federal e dos órgãos indigenista e ambiental. Nossa experiência tem sido que, na fase de aproximação, o Exército faz muitas promessas de contrapartidas, as quais depois não são cumpridas. Promete, por exemplo, melhoria nos serviços de saúde e educação, acesso a energia elétrica e vagas nos aviões, mas depois diz que não tem recursos suficientes, que as vagas nas aeronaves dependem de autorizações de instâncias superiores ou da Aeronáutica e assim por diante, frustrando as expectativas das nossas comunidades. Mesmo porque nossas comunidades têm colaborado diretamente com as obras de instalações militares, dedicando enormes esforços, muitas vezes gratuitos, na abertura de pistas de pouso e na construção de mini-hidrelétricas.
2. A construção das instalações militares, muitas vezes é repassada para empresas particulares de engenharia, que chegam sem qualquer preparação e entendimento sobre a nossa realidade. Quem é responsável pela situação dos trabalhadores dessas empresas? Quem autoriza a entrada dessas pessoas na Terra Indígena? Seria muito importante ter regras básicas para esse tipo de situação, garantindo que esses trabalhadores não vão trazer doenças, vão remunerar corretamente a mão-de-obra indígena, respeitar nossas comunidades, especialmente nossas mulheres e jovens e não vão depredar os recursos naturais.
3. No recrutamento e na composição dos efetivos militares que vão ocupar essas instalações, nós recomendamos que seja dada preferência a soldados indígenas voluntários da região e que sejam enviados oficiais casados, acompanhados de seus familiares. Nossa experiência é que isso diminui os conflitos, além do fato de que soldados indígenas recrutados nas comunidades conhecem o terreno e os nossos costumes. Nós entendemos que alguns dos nossos jovens, embora não sejam obrigados por lei, querem se alistar. Mas porque é dada a preferência a soldados de fora e porque os recrutas indígenas nunca têm chance de prosseguir na carreira militar?
4. Nas manobras e treinamentos militares, nós também gostaríamos de saber quais são as regras. Nossas lideranças deveriam ser informadas com alguma antecedência sobre o que vai acontecer, para prevenir as comunidades e garantir a sua segurança.
5. Na convivência quotidiana tem havido muitos problemas. Alguns serviços públicos (correio, escola, atendimento de saúde, comunicação), às vezes estão localizados dentro da área cercada pelas instalações militares, o que dificulta o acesso e causa constrangimentos aos usuários. Nos dias de folga, especialmente nos finais de semana, os militares convivem com o pessoal das comunidades, participam de eventos e festas e nem sempre respeitam nossos costumes e nossas autoridades. Tem havido muitos casos de paternidade irresponsável, sem que os militares envolvidos cumpram com suas obrigações legais; além do fato de que filhos com pais brancos não podem receber os nomes tradicionais e ficam marginalizados para sempre. Quando acontecem relações sexuais de militares com menores de 14 anos e nós queremos punições severas para esses casos, porque sabemos que a legislação brasileira os considera crime de estupro. Aqui na comarca de S. Gabriel da Cachoeira há muitos casos registrados de reconhecimento de paternidade, porém quase todos são de fatos ocorridos na cidade. Os fatos que acontecem nas comunidades próximas dos pelotões e longe da cidade quase nunca chegam ao conhecimento das autoridades e da Justiça. Nós sugerimos que os comandantes de cada unidade militar deveriam receber instruções superiores para garantir a observação de algumas normas de comportamento social fora do perímetro das instalações militares, de comum acordo com as autoridades indígenas locais. Essas normas deveriam incluir: relações de troca de bens e mercadorias, pagamento de serviços, acesso a festas, eventos sociais, roças, locais de pesca, caça e coleta; proibição de uso e facilitação de acesso a bebidas alcoólicas e drogas; todas as formas de constrangimento e discriminação. Sugerimos que na rotina dos comandantes locais deveria estar incluída a obrigatoriedade de reuniões periódicas com as autoridades locais, para avaliar o cumprimento dessas regras. Sugerimos ainda que a Justiça encontre meios de chegar até as comunidades próximas dos pelotões pelo menos uma vez por ano, para ouvir as comunidades e registrar suas queixas.

Finalmente, gostaríamos de salientar que essas regras de convivência, uma vez definidas e colocadas em prática, precisam ser divulgadas nas comunidades e entre as instituições militares diretamente relacionadas com o assunto. Além disso, o seu cumprimento e aprimoramento vão exigir um canal permanente de diálogo entre as partes. Sugerimos que os ministérios da Defesa e da Justiça formalizem a criação de um Grupo de Trabalho, em condições de implementar essas regras e garantir reuniões anuais de monitoramento entre as organizações indígenas regionais da Amazônia brasileira, com o CMA, com a participação de representantes do Ministério da Defesa, do Ministério Público Federal e dos órgãos indigenista e ambiental.

São Gabriel da Cachoeira, 14 de fevereiro de 2003

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