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Reforma agraria em marcha lenta

JB, Pais, p.A3
08 de Abr de 2004

Reforma agrária em marcha lenta
Auditoria do Tribunal de Contas da União revela isolamento, escassez de recursos e condições precárias nos assentamentos

Hugo Marques
BRASÍLIA - Falta de assistência técnica, isolamento, escassez de servidores e descontinuidade administrativa. Um panorama desolador da reforma agrária no país foi traçado ontem pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em auditoria feita no segundo semestre do ano passado. O estudo englobou 34 assentamentos, em seis Estados e no Distrito Federal. Alguns, no Mato Grosso do Sul, não recebiam visitas dos técnicos do Incra há mais de cinco anos, diz um dos trechos da auditoria. Os chamados empreendedores sociais pararam de visitar todos os assentamentos no início do ano passado.
A auditoria é um retrato da baixa prioridade para o programa de reforma maciça e com qualidade, exaltado nos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
A auditoria verificou que o Incra tem ''uma atuação esporádica nos assentamentos'', geralmente com o objetivo restrito de fiscalizar as parcelas, checar a permanência dos beneficiários, levantar problemas ambientais e desvios financeiros, sem contemplar a orientação técnica e gerencial na área de produção agrícola. Os serviços de assistência técnica são prestados ''em caráter pontual e descontínuo''. Os auditores encontraram muita ''desesperança'' entre as famílias assentadas, isoladas pela falta de estradas para escoamento da produção.
No Mato Grosso, o projeto de assentamento Wilson Medeiros, além de não receber visita de técnicos, ''não tem estradas nem pontes e fica ilhado'' na maior parte do ano. Em São Paulo, o Incra não chega ao projeto Antônio Conselheiro II e os assentados ''convivem com a ocupação indevida de espaço que deveria ser destinado a centro comunitário''. No assentamento Contestado, no Paraná, não há energia elétrica, o que impede o resfriamento e a venda do leite produzido no local.
As dificuldades dos auditores do TCU começaram nas visitas. O assentamento José Maria Agostinho, no Paraná, por exemplo, não recebeu os técnicos por causa da dificuldade de acesso em período de chuvas.
Muitas associações de famílias de assentados, diz a auditoria, são criadas por solicitação do Incra ''apenas para a representação legal do assentamento e recebimento do crédito-instalação''. No Mato Grosso, há casos de três associações em apenas um assentamento, atuando na mesma função legal.
A baixa associatividade se reflete na falta de infra-estrutura básica dos assentamentos, aponta o relatório. No Maranhão, os projetos visitados têm ''péssimas condições físicas na maioria das escolas'', e difícil acesso à água potável. Nenhum deles tem fossa e as estradas estão em ''péssimo'' estado.
O atraso na realização de serviços topográficos dos novos assentamentos provoca a ocupação e o parcelamento das áreas antes de sua elaboração. As famílias se antecipam no trabalho de divisão dos lotes e, posteriormente, quando o Incra faz a nova divisão, surge o conflitos entre os assentados.
A auditoria aponta a descontinuidade administrativa no Incra, que teve 15 presidentes desde 1995, início do governo FH. O órgão apresenta ''quadro de baixa capacidade operacional para fazer cumprir sua missão'', diz a auditoria, e não se consegue instituir comunicação entre as superintendências regionais e nacionais. O próprio Incra informou ao TCU que, nos últimos 20 anos, os serviços do órgão cresceram 200% e a redução de pessoal ficou acima de 50%. No atual exercício, 42% dos servidores estão aptos para a aposentadoria. Há superintendências que só têm um agrônomo para cada grupo de 2.857 famílias.
Em seu voto, o ministro do TCU Ubiratan Aguiar mostra que houve decréscimo dos recursos para assistência técnica em 2003. Os valores alocados representaram apenas 35% do dinheiro de 2000. Aguiar, contudo, faz referência ao anúncio do governo Lula sobre a alocação de mais R$ 1,7 bilhão extra para a reforma agrária. ''É cristalino'', escreve o ministro, ''que a população assentada necessita resgatar sua dignidade e o perfil de agricultor''. O TCU pediu que o Incra remeta ao tribunal, em 90 dias, o conjunto de metas da reforma agrária.
OAB cobra do governo ação mais efetiva

Luiz Orlando Carneiro
BRASÍLIA - O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, cobrou uma ''ação mais efetiva'' do governo em face das invasões de terras promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a fim de que ''não se reproduza, em seu momento social mais crítico, um cenário igual ao que antecedeu o golpe militar de 1964''.
- É preocupante ouvir as declarações do ministro da Reforma Agrária, Miguel Rosseto, de que ''o campo está em paz'', ao mesmo tempo em que a mídia apresenta imagens de integrantes do MST empunhando bandeiras e foices, em clara manifestação de conflito - afirmou o presidente da OAB.
No entender de Busato, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva diz que a reforma agrária ''não se fará no grito'', o que se espera é ''um conjunto de medidas concretas no campo, a curto prazo''.
- Mas não é o que estamos vendo. O radicalismo se dá pela ação de um lado e pela omissão de outro. O MST deve ter serenidade para perceber que não é por meio do radicalismo que conseguirá resolver essa situação, infelizmente uma herança da época das capitanias hereditárias - avalia.
Governo pede tolerância

Hugo Marques
BRASÍLIA - O aumento do número de invasões de fazendas no país - 46 só em março -, a falta de uma reforma agrária maciça e a greve da Polícia Federal levaram o governo a pedir aos grandes produtores rurais ''tolerância'' com os sem-terra. Quem está fazendo a negociação com os fazendeiros é a Ouvidoria Agrária Nacional, do Incra, que tem a função de evitar conflitos no campo.
- Pedimos aos grandes ruralistas que tenham tolerância. O diálogo é feito com os latifundiários, os governos estaduais e os sem-terra - explica a ouvidora agrária substituta, Maria Oliveira.
Esta semana, a ouvidora conversou com proprietários em Sergipe e Pernambuco, onde é mais tensa a relação entre produtores, sem-terra e governo. Ontem, no Recife, Maria Oliveira reuniu-se com representantes da Associação de Produtores e Fornecedores de Cana de Pernambuco. Grande parte das invasões no Estado ocorre nos engenhos.
É a primeira vez que a Ouvidoria realiza negociações com grupos de fazendeiros para pedir tolerância. Nas últimas semanas, o órgão já tinha feito contatos isolados com proprietários de terras em áreas de conflito.
Os movimentos sociais intensificaram as ações para protestar contra o massacre de 19 sem-terra em 17 de abril de 1996, em Eldorado do Carajás (PA). Maria diz que a Ouvidoria recebe informações do Ministério da Justiça, repassadas pela PF. Com a greve dos policiais, foi reduzido o número de agentes encarregados de monitorar áreas de conflito. A ouvidora diz querer evitar a violência no campo, mas afirma encarar com naturalidade a luta dos movimentos sociais.
- Sem a ajuda dos movimentos sociais, o Brasil não vai mexer na estrutura fundiária. Os movimentos sociais não são geradores de violência. O latifúndio é gerador de violência - diz.
Segundo o governo, são 220 mil famílias acampadas e recebendo cestas-básicas mensais, mas só a metade tem aptidão para assentamento na reforma agrária. A meta do governo é assentar 115 mil famílias este ano, mas a reforma ainda não deslanchou. Nos três primeiros meses deste ano, ocorreram 56 invasões de terras, um aumento de 19,1% em relação ao mesmo período do ano passado, quando foram registradas 47 invasões. Comparado com março do ano passado, quando ocorreram 30 invasões, o mesmo mês este ano teve aumento de 33,3% no número de ocupações: 40.
Pernambuco é o Estado recordista, com 18 invasões em março, quase metade do número registrado no país. O MST participou de 28 invasões. Três foram feitas pela Organização das Ligas Camponesas. As ocupações começam a ocorrer em Estados até então sem muita tradição em conflitos agrários. No Rio, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura realizou duas invasões em março. Foram registradas duas mortes no campo este ano.
Jornal inglês identifica tom político
O jornal inglês Financial Times publicou na edição de ontem uma reportagem sobre a série de invasões de propriedades rurais promovida pelo MST nos últimos 15 dias. 0 diário relaciona as invasões com a repercussão do caso Waldomiro Diniz e as eleições municipais deste ano.
-A recente onda do MST surge justamente quando Lula esperava que a repercussão de um escândalo envolvendo um assessor presidencial começasse a diminuir. 0 caso, que provocou críticas acirradas depois de uma prolongada lua-de-mel no ano passado, precede as eleições municipais de outubro - diz o jornal.
Segundo a reportagem, assinada pelo correspondente do jornal em São Paulo, "os movimentos de sem-terra em todo o Brasil lançaram uma série de protestos e invasões ilegais de propriedades para pressionar o governo de esquerda de Lula a acelerar a reforma agrária".
0 texto relata que o MST invadiu mais de 40 propriedades rurais, incluindo a plantação de árvores da multinacional Veracel, no sul da Bahia, cuja propriedade tem grande participação da companhia de papel sueco-finlandesa Stora-Enso.
- Milhares de manifestantes transformaram 25 hectares de árvores jovens em plantações de legumes - narra o texto.
O Financial Times registra ainda que os sem-terra bloquearam estradas e ocuparam prédios de órgãos governamentais em todo o país. A reportagem recorda a polêmica gerada pela frase do coordenador do MST João Pedro Stédile, que pretendia "infernizar" o Planalto caso suas demandas não fossem cumpridas. Mais tarde, Stédile corrigiu a frase e disse que, na verdade, deveria ter usado o verbo "azucrinar" quando se referiu às invasões.
O texto classifica o MST como um movimento que, durante quase duas décadas, luta contra uma distribuição de terras altamente desigual e cujos seguidores são moradores urbanos desempregados ou camponeses pobres que desejam ter um lote de terra para plantar.
- A liderança do MST é altamente politizada e sabe-se que instrui seus novos recrutas com literatura revolucionária - conta o repórter.
Agência Folha

JB, 08/04/2004, p. A3

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