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Reflexões sobre o primeiro contato com a civilização ocidental

G1 - http://g1.globo.com/natureza/blog/
Autor: GONZALEZ, Amelia
08 de Dez de 2016

Reflexões sobre o primeiro contato com a civilização ocidental

Quinta-feira, 08/12/2016, às 20:53,
Amelia Gonzalez

As águas do Rio Amazonas, naquele trecho pouco caudaloso e cheio de seixos, separavam os dois grupos. De um lado da margem, um grupo de homens tentava estabelecer alguma forma de comunicação com três índios que estavam à beira, do outro lado. A cena era única. O grupo de índios nunca tinha feito contato com humanos ocidentais e demonstrava bastante aflição porque um deles, uma senhora, estava com dor no pulso. Mais tarde, soube-se que ela havia sido mordida por um tamanduá. O grupo de humanos ocidentais, entre os quais um médico, queria se aproximar mas tinha muito medo. Os seixos machucam de verdade quando jogados à distância. E eles não sabiam se os índios estavam ali, realmente, em paz. Ou se a tentativa de chamar atenção era apenas uma armadilha para saquear os pertences do grupo.
A câmera registrou a cena que foi editada para o documentário "The first contact", produzido e organizado por Angus Macqueen.A imagem não sai da retina. Homens de um lado, homens de outro, separados pela cultura, temendo reações agressivas. Em volta, uma natureza ainda pouco machucada pela ação da humanidade apenas dava contorno à insólita situação.
O documentário foi feito depois que a imagem de índios fazendo seu primeiro contato com o mundo ocidental viralizou pela internet em junho de 2014. Na imagem, com um cacho de bananas como oferenda, antropólogos e outros pesquisadores conseguiram conquistar uma relativa confiança daqueles índios, que nunca tinham se relacionado com humanos que se vestem. Uma equipe de cinegrafistas acompanhou o antropólogo Carlos Meirelles em uma peregrinação rio abaixo e rio acima e registrou a cena que descrevo no início.
Busquei o filme na internet por sugestão de Dannyel Sá, técnico do Instituto Socioambiental (ISA), a quem entrevistei na semana passada. Diante das câmeras, alguns indígenas ajudaram a desconstruir o discurso em que se costuma cair facilmente à medida em que a preocupação com os impactos na natureza provocados pela ação do homem se agiganta. Os índios não impactam o meio ambiente, mas alguns confortos que se obteve com a destruição do entorno parecem exercer especial atração sobre eles. Conviver com esse paradoxo, eis um desafio.
Meses depois do primeiro contato, a tribo indígena que em 2014 se tornou atração no mundo ocidental via tecnologia foi encontrada pelos cinegrafistas de "The first contact" já com alguns novos hábitos. Roupa é do que eles mais gostam, talvez porque, diferentemente dos animais, não têm pelos que os defendam do frio e da chuva. Uma indígena declarou às câmeras sua simpatia pelas sandálias de borracha que estava calçando.
Não há como negar a atração que os símbolos de nossa ocidentalidade exercem sobre alguns indígenas. Mas, por favor, sem julgamentos. Sem atribuir aos índios a pecha de "bon vivant" por quererem aproveitar o que, de fato, têm direito. Até porque, seu mundo já não é mais o mesmo. Suas condições de sobrevivência estão alteradas, eles não identificam mais os recursos que sempre lhe garantiram a sobrevivência. Os pássaros não são os mesmos, as estações do ano os deixam surpresos, a terra está mais seca, os rios dão menos peixe. E tudo isso, como já foi cientificamente provado, é consequência da industrialização em excesso que vem nos oferecendo o conforto ao qual eles lançam, quando podem, olhares cobiçosos.
A questão, como também já foi exaustivamente provado pelos estudiosos do nosso comportamento e do nosso sistema econômico, é este "excesso" produzido pelo sistema econômico do Ocidente. Há 20 anos, o economista David Korten foi um dos primeiros a questionar o poder que as corporações foram ganhando, o domínio que elas passaram a exercer sobre nós. Uma situação perpetuada, cronificada, que foi se tornando uma bola de neve, criando um fosso de desigualdade que só aumenta a cada tempo que passa.
Os índios, assim como outros povos tradicionais, não tiveram assento no desenvolvimento e estão sofrendo o revés. Mas há também aqueles que ficaram à margem da industrialização, embora fazendo parte dela. O resultado de tanto descontrole fica transparente quando são divulgados os números que mostram a concentração de riqueza: os 62 bilionários mais ricos do mundo agora possuem tanto quanto a metade mais pobre da humanidade - 3,5 bilhões de pessoas que lutam para sobreviver com rendimentos de US $ 2,5 ou menos por dia.
Ampliando o pensamento, fui à estante buscar as reflexões de Hannah Arendt, estudiosa alemã que sempre me ajuda nos momentos em que preciso desfiar o fio dos meus pensamentos, não para chegar a uma única conclusão, mas para analisar as múltiplas soluções. Em "A condição humana" (Ed. Forense), escrito em 1958, Arendt se debruça sobre as atividades humanas, como elas se diferenciam, e como os homens são capazes de se deixar escravizar por outros homens.
"Pelo fato de serem dominados pelas necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade dominando outros que eles, à força, sujeitavam à necessidade. A degradação do escravo era um golpe do destino e um destino pior que a morte, pois implicava a metamorfose do homem em algo semelhante a um animal doméstico", escreve a autora.
A liberdade é um mote. Pensei a respeito quando vi a cena dos indígenas nus, um deles portando flechas sem apontá-las. Eram livres, podiam andar à vontade, ir e vir. Mas tinham medo, muito medo. Além dos perigos da floresta aos quais já estão acostumados, temiam ataques de outra tribo. Não há liberdade com medo.
Além disso, têm desejos que não conseguem ver realizados, o que lhes causa um nível de frustração que deve ser novidade para eles. São reflexões possíveis que só me vieram por conta do documentário, um trabalho que deve ter sido difícil de realizar e que deveria ser mais visto, inclusive, nas escolas. É preciso um olhar diferente sobre os problemas de sempre para que não se fixe nas mesmas falsas soluções que já provaram sua ineficácia.

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