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Quilombos tambem tiveram origem mestica: pesquisa da UnB mostra que fundadores de grupos eram, na maioria, mulatos

OESP, Geral, p.A14
23 de Nov de 2003

Sociedade
Quilombos também tiveram origem mestiça

Pesquisa da UnB mostra que fundadores de grupos eram, na maioria, mulatos

RUTH HELENA BELLINGHINI

Esqueça os livros de história da escola e as cenas de novelas de época, que descrevem os quilombos como comunidades compostas exclusivamente por negros. Pesquisas genéticas com populações remanescentes de quilombos mostram que como praticamente toda a população brasileira, também a que deu origem a esses agrupamentos era mestiça. E não só. Boa parte das mulheres dessas comunidades era formada de índias, capturadas de tribos da região. E até brancos pobres se agregaram aos quilombos.
As conclusões são resultado do trabalho do Departamento de Genética e Morfologia da Universidade de Brasília (UnB), sob a coordenação de Silviene Oliveira, que analisou comunidades dos núcleos Rio das Rãs e Riacho do Sacutiba, na Bahia, Mocambo, em Sergipe, e Kalunga, em Goiás. Um dos critérios para a escolha dessas comunidades foi o fato de todas terem a posse da terra. "Não quisemos que nossa pesquisa interferisse no processo de reconhecimento de um quilombo que, de forma alguma, pode envolver critérios biológicos", explica Silviene.
Não é o único grupo que está analisando genes das comunidades quilombolas. Há pesquisas em andamento desde o Pará até o Vale do Ribeira, em São Paulo, envolvendo cerca de cem cientistas de várias universidades. O retrato que começa a surgir é o de grupos com dinâmicas diferentes: alguns fundados em torno de uma só família, outros a partir de várias, alguns em que o sobrenome passa de mãe para filha e de pai para filho e por aí em diante. Em comum, têm a demografia típica das populações rurais, com muitas crianças e jovens e poucos adultos. Mas são todas mestiças na origem, mesmo antes da criação dos quilombos.
"Meu interesse pelos quilombos surgiu porque eu queria pesquisar as populações negras trazidas para o Brasil e como essas comunidades remanescentes vivem em isolamento pareciam ser o ponto de partida ideal", conta Silviene. Isso porque, por ordem de Rui Barbosa, todos os documentos brasileiros relativos aos escravos negros foram destruídos após a abolição para que seus proprietários não tivessem base legal para exigir indenizações. "A gente imaginava que eles teriam pouca ou nenhuma mistura por causa do isolamento", diz a pesquisadora que analisou cerca de 500 indivíduos dessas comunidades.

Variações - Silviene trabalhou com marcadores do cromossomo Y, o cromossomo masculino que passa praticamente inalterado de pai para filho. Um desses marcadores é uma variante de um gene, surgida há cerca de 700 anos na Europa, que codifica uma proteína expressa na membrana celular e confere a seus portadores resistência ao vírus causador da aids, o HIV. "Das duas, uma. Ou houve enorme fluxo de migração de europeus para esses quilombos - e sabemos que isso não ocorreu - ou esse gene estava lá desde a fundação do quilombo, em alguém que teve muitos filhos, o que pode explicar sua alta freqüência", explica.
Silviene diz que a miscigenação ocorreu desde o início da colonização do País e são poucos os grupos - como alguns europeus do sul do País - em que ela não ocorreu. "A miscigenação na senzala foi muito maior do que fazem supor as nossas novelas."
E no quilombo também. Outra constatação do estudo é que os fundadores foram homens, em sua maioria, talvez porque fosse mais difícil para as mulheres escapar da senzala. "Essas populações contam histórias de como uma avó ou bisavó índia foi caçada por cães e levada para o quilombo", conta. Houve também casos de alianças entre ex-escravos e tribos perseguidas de áreas próximas ao quilombo. Prova disso, é que tanto a comunidade de Mocambo quanto a reserva dos índios xocós, perto dali, são compostas por cafusos com alto grau de parentesco.
O próximo passo do trabalho é vasculhar o DNA mitocondrial dessas populações. A mitocôndria é a organela celular responsável pela produção de energia e possui o próprio DNA. Quando o óvulo é fertilizado, suas mitocôndrias se dividem à medida que o embrião se desenvolve, sem a participação das mitocôndrias do espermatozóide - que trabalham feito loucas para fornecer a energia necessária que ele alcance o óvulo. Por isso, o material genético da mitocôndria passa inalterado da mãe para filhos e filhas. Através dele, portanto, é possível analisar toda a linhagem materna. Além disso, os cientistas vão refinar a pesquisa usando outros marcadores, Eles estão em busca de genes capazes de contar uma história que a fogueira de Rui Barbosa tentou apagar.

Genes podem contar 100 mil anos de história
E acrescentar detalhes ao quebra-cabeças de nosso passado

Nossa espécie entrou em cena e começou a se espalhar pelo planeta há cerca de 30 mil anos, mas só há 5 mil passou a deixar registros escritos de sua passagem. Nessa história cheia de lacunas, recheada de mitos e hipóteses, ' a genética tornou-se mais um instrumento na tentativa de compor uma imagem mais precisa de nosso passado. Os genes humanos podem tanto contar histórias 15 de até 100 mil anos atrás como validar teses sobre episódios recentes.
A genética confirma as teses de Gilberto Freire e Darci Ribeiro. O brasileiro é tão misturado que, aqui, quem vê cara não vê genoma, ou seja, só de olhar, ninguém adivinha suas origens. A maioria dos cromossomos Y (o masculino) dos brasileiros é européia. O DNA mitocondrial (a linhagem materna) de 30% dos brasileiros é ameríndio, de outros 30% africano, de outros 30%, europeu. Esse é o retrato de uma história de dominação. É o colonizador português que forçou as escravas negras, as índias e produziu herdeiros legítimos com a mulher branca.
Mas a miscigenação não é exclusividade dos brasileiros. "A marca registrada dá América Latina é essa mistura entre europeus e índios. O que varia de país para país é a participação do negro", diz Sérgio Pena, professor de bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em genética das populações. "A Venezuela e a Colômbia, por exemplo, apresentam a mesma combinação entre africanos, europeus e índio, que os brasileiros", conta. Geneticamente, os argentinos são os mais europeu dentre os latino-americano e os caribenhos tendem a ter uma presença africana mais forte que a indígena. Mas, no que se refere ao cromossomo Y, a América Latina é enfadonha: o europeu é maioria”, afima (R.H.B.)

Refúgio de escravos, brancos, judeus, ciganos e desertores

Todos abrigados sob as normas de uma sociedade tipicamente africana

MARCOS DE MOURA E SOUZA

Os quilombos foram centros de resistência que não reuniam apenas escravos. Indígenas, brancos pobres que viviam nas províncias, agricultores, soldados desertores, mercadores, judeus pressionados pela Coroa à conversão, todos ajudaram em maior ou menor escala a compor o quadro de miscigenação no interior dos redutos negros de escravos fugidos. Até mesmo Palmares, a República Negra, o maior e mais importante quilombo da história - visitado na quinta-feira, Dia Nacional da Consciência Negra, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva -, abrigou em suas terras no alto da Serra da Barriga moradores que tinham a mesma cor de pele dos senhores de engenho e dos membros da corte.
Alguns quilombolas, na verdade, já traziam a marca da miscigenação antes mesmo de serem reduzidos a escravos no Brasil. Os fulanis, por exemplo, que habitavam a porção subsaariana do continente, vinham se misturando com árabes e berberes da região há gerações. Essa mistura deu, aos poucos, à etnia uma cor de pele menos escura que a de outros povos africanos.
Mas foi no Brasil que a miscigenação se aprofundou - e rapiamente. 0 historiador e presidente da Fundação Palmares, Ubiratan Castro de Araújo, lembra que a massa de portugueses e africanos dos primeiros séculos era eminentemente constituída de homens.
"O estoque feminino era formado pelas índias", diz. Assim, muitos quilombolas invadiam fazendas em busca das poucas mulheres escravas ou capturavam as índias que habitavam as vizinhanças.
Escavações arqueológicas realizadas há cerca de dez anos em solo palmarino trouxeram à tona artefatos de cozinha indígena e quase nenhum objeto masculino de guerra e caça. A descoberta levou muitos estudiosos a intuir que a presença feminina indígena no quilombo pode ter sido muito mais significativa que a masculina.
Para os homens brancos, os quilombos eram encarados, muitas vezes, como uma espécie de refúgio. "Durante a Guerra do Paraguai (1864-70), muitos soldados desertores, que não queriam guerrear, fugiram para quilombos de Mato Grosso, do Rio Grande do Sul e do Maranhão", conta o historiador e escritor João José Reis, da Universidade Federal da Bahia. Algo semelhante aconteceu com lavradores sem posses e submetidos a duros regimes de trabalho, ciganos, judeus que resistiam à pressão da Igreja para que se convertessem a cristãos novos, entre outros.

Asilo - "Desde o início, Palmares se constituiu em um asilo aberto a todos os perseguidos e deserdados da sociedade colonial", escreve Décio Freitas em seu Palmares A Guerra dos Escravos (Graal, 1978), uma das obras de referência sobre o levante . Essa realidade se reproduziu intensamente. "Em todos os quilombos do País havia presença da população não-negra", diz Araújo. Ali, a relação, acrescenta ele, era exatamente inversa à vista na sociedade colonial. "Os não-negros buscavam abrigo numa sociedade tipicamente africana. Era um processo de aculturação sob matriz negra."
Essa co-habitação começou a perder força após o fim do regime colonial, em 1822, (quando a população branca pobre conquistou alguns direitos) e depois, com o fim da escravidão. "A partir desses momentos, não havia mais impulso para que o brancos fossem para os quilombos", afirma Araújo O resultado foi visível. No Brasil colonial, os quilombos tinham muito mais mulatos e cafuzos do que as áreas remanescentes de hoje. "No pós-colonial, a população quilombola empreteceu', com muitos casamentos endogâmicos. Mas a marca genética da mistura não se apaga."

OESP, 23/11/2004, p.A14

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