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Quilombolas no Recôncavo Baiano e Assessoria da Comissão de Justiça e Paz

Observatório Quilombola (Ong KOINONIA)
Autor: Andrea Iridan dos Santos e Gilsely Barbara Barreto Santana
01 de Out de 2005

Bahia • set-out/2005
Quilombolas no Recôncavo Baiano e Assessoria da Comissão de Justiça e Paz
Por: Por Andrea Iridan dos Santos e Gilsely Barbara Barreto Santana

O processo de (re)organização e disputa na esfera pública brasileira, iniciado na década de 70, culminou, através da Constituinte de 1987, com a ampliação dos direitos e garantias sociais dispostos na Constituição Federal de 1988. Nesse processo, a problemática racial brasileira passa da invisibilidade normativa para a afirmação de uma legalidade anti-racista [1]. Nesse contexto, o Recôncavo Baiano e a Região Metropolitana de Salvador vêm sendo palco de distintas formas de organização dos trabalhadores no campo e, por isso, a Comissão de Justiça e Paz (CJP) [2], ao longo da sua existência, assessorou vários grupos sociais, entre eles, os atingidos por barragens, os canavieiros, os sindicatos e associações rurais e o movimento semterra.

Com a recente regulamentação do art.68, mediante o Decreto 4.887/2003, a regularização das terras de quilombos tornou-se mais palpável, pois o critério de identificação da comunidade de quilombo passou a ser a auto-atribuição, e não mais uma identificação profissional, mediante laudo antropológico, havendo também um ordenamento melhor das competências do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da Fundação Cultural Palmares na questão.

Contudo, o decreto e os instrumentos legais reflexos, como a Instrução Normativa INCRA 16/2004, apresentam limitações jurídicas. Por exemplo, a utilização do decreto como instrumento regulamentador, ao invés de lei, vem possibilitando o questionamento constitucional do mesmo, tornando-o vulnerável à interpretação presidencial. Além disso, não foi criado um instrumento normativo específico, isto é, uma espécie de desapropriação para fins de terras de quilombos que pudesse assegurar sistematicamente a arrecadação do território quilombola em terras particulares.

O contexto político também aponta limitações, pois embora o Governo Lula enuncie o programa governamental de atuação em comunidades de quilombos, o Brasil Quilombola, o mesmo não contou com aumento orçamentário para os órgãos federais envolvidos na questão, especialmente o Incra, a Fundação Cultural Palmares e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Tais órgãos não dispõem de dinheiro e pessoal para enfrentar a demanda de regularização dos territórios e as demais políticas públicas destinadas às comunidades quilombolas previstas dentro dos programas já existentes, que também estão sem revisão dos critérios e sem previsão de aumentos orçamentários.

Nessa conjuntura, a CJP atua no Recôncavo Baiano assessorando o processo organizativo das comunidades quilombolas e potencializando a luta política como momento formador. Para isso, a entidade trabalha junto às comunidades nas negociações com os poderes públicos, no desenvolvimento de ações planejadas – inclusive ações de massa – e na realização de capacitações, por meio de oficinas, cursos e seminários.

Os grupos assessorados são o Conselho Quilombola do Vale e Bacia do Iguape, no município de Cachoeira, que reúne 11 comunidades quilombolas da região, além das comunidades de Dandá, em Simões Filho, e Praia Grande, na Ilha de Maré, Salvador.

Os grupos assessorados pela CJP

Conselho Quilombola do Vale e Bacia do Iguape

O Conselho Quilombola do Vale e Bacia do Iguape reúne as comunidades de Caônge, Calembá, Dendê, Engenho da Ponte, Engenho da Praia, Calolé, Embiara, Tombo, Engenho da Vitória, Caimbongo Velho e São Francisco do Paraguaçu, comunidades desprovidas de intervenção estatal satisfatória, isto é, água encanada, energia elétrica, saneamento básico, estrada etc.

São comunidades agro-pesqueiras, mas que também utilizam o extrativismo do dendê e da piaçava como fonte de trabalho e renda. Ressalte-se que essas comunidades encontram-se, em sua maioria, espremidas na chamada maré devido à pressão dos fazendeiros locais.

As informações históricas levantadas [3] apontam que o surgimento no século XVI da outrora Vila Nossa Senhora do Rosário, ou Porto de Cachoeira, às margens do Rio Paraguaçu, esteve relacionado ao processo de ocupação do território brasileiro e à expansão das fronteiras agrícolas, sendo posteriormente, no século XVII, constituída como região produtora de cana-de-açúcar, existindo na localidade, especialmente no Iguape, muitos engenhos de cana e escravos e, conseqüentemente, fugas e rebeliões.

No contexto de desagregação do regime escravista, as comunidades negras rurais do Vale do Iguape se formaram nas proximidades dos outros engenhos, estabelecendo uma organização social que resistiu ao longo do tempo, mantendo elementos da afrodescendência, tais como, religião, músicas, hábitos alimentares, terminologias, entre outros.

Tais comunidades passaram por processos organizativos distintos, como a luta nas associações e sindicatos rurais. Partindo do elemento motivador, que foram as atividades culturais, mobilizaram e constituíram uma articulação, que possibilitou a busca da certificação enquanto comunidades remanescentes de quilombo em 2004.

Enfim, foi afirmado o Conselho enquanto núcleo que lida com o poder público para a regularização fundiária dos territórios, bem como atua no acesso a outras políticas públicas, ressaltando que a identidade racial é um forte elemento aglutinador desse processo organizativo.

Quilombolas da Ilha de Maré e Dandá

A realidade das comunidades negras rurais de Dandá e Ilha de Maré é marcada pela presença do conflito fundiário. Portanto, tal questão influenciou as formas de organização e determinou as vias para resistir às pressões dos fazendeiros e conquistar o direito de permanência e regularização da terra.

Além disso, o conflito fundiário nesses locais foi e tem sido um foco de mobilização e identificação dessas comunidades, bem como de atuação da CJP. Nessa trajetória, compartilhamos o enfrentamento de ameaças de fazendeiros, ordens de despejos, prisões, organização da luta, resistência, obrigando o Estado a assumir responsabilidades, reconhecer e efetivar direitos.

No entanto, certas especificidades diferenciam Dandá e a comunidade de Praia Grandedas das comunidades da Região da Bacia e Vale do Iguape Cachoeira. Apesar do exercício da atividade rural, Dandá, localizada nas margens da BA 093, em Simões Filho, e Praia Grande, em Ilha de Maré, sofreram um forte processo de aculturamento pela influência da metrópole Salvador, absorvendo muitos costumes urbanos.

As estratégias de enfrentamento também são distintas. A comunidade de Dandá vive um conflito com a proprietária da Fazenda Coqueiros, que foi desmembrada entre os herdeiros, restando apenas a área que corresponde ao território da comunidade, mantida por meio da resistência com o plantio das roças, da extração de piaçava e das pequenas criações. Os moradores da comunidade acabaram tendo que viver numa condição de agregado devido aos trabalhos prestados pelos seus bisavós, avós e pais ao proprietário original e seus herdeiros.

Com a morte do membro mais antigo da comunidade em 1980, o Sr. Samuel, que representava para os herdeiros da fazenda o vínculo que justificava a permanência das famílias na terra, começou a perseguição às famílias, com a destruição de roças, o impedimento do acesso às áreas de trabalho e ameaças de derrubar as casas, tudo numa tentativa de expulsar as famílias que ali nasceram e que trabalhavam a terra há varias gerações.

O movimento CETA Regional Recôncavo

Já a comunidade de Praia Grande viveu durante 24 anos um conflito com os ditos proprietários da Fazenda Cruz, antigo Engenho da Cruz, que só foi amenizado em 2004, quando a União reconheceu o domínio da área e a Justiça Federal assumiu o julgamento do caso, que se arrastava na Justiça Estadual, o que teve conseqüências negativas para a comunidade, como prisões, mandados de reintegração de posse etc.

O conflito iniciou quando o dito proprietário faleceu e seus herdeiros resolveram lotear a terra, expulsando as famílias que eram posseiras de força velha de glebas em toda a fazenda. É importante ressaltar que nessa comunidade, além do núcleo originário, houve a chegada em 1945 de um núcleo familiar quilombola da região de Cachoeira, que se deslocara devido às pressões fundiárias sofrida na região de origem.

Na tentativa de comprovar a posse das terras, ambas as comunidades iniciaram a organização para enfrentar o conflito via Sindicatos e Associações de Trabalhadores Rurais. No entanto, devido à lentidão dos procedimentos judiciários e à mudança na conjuntura de atuação dos sindicatos, que se tornaram quase uma extensão dos postos de INSS, as comunidades foram forçadas a adotar outros meios que tivessem maior impacto político para resolver as questões.

Nessa perspectiva, a forma organizativa que esses grupos encontraram para propagar e efetivar seus direitos.foi a articulação ao Movimento de Trabalhadores(as) Assentados(as) e Acampados CETA Regional Recôncavo, que luta pela terra via processo de reforma agrária.

Porém, não é tarefa fácil conciliar a dinâmica de comunidades de ocupações tradicionais com a dinâmica dos movimentos que lutam por reforma agrária, que trazem seus princípios, seus métodos, uma forma organizativa própria da condição de ocupações e acampamentos temporários, com estratégias de resistência baseadas na grande mobilização, apresentando um processo contínuo de fluxo e refluxo de pessoas, que se converte num processo de seleção daqueles que conquistarão a terra.

Dandá e Praia Grande muito se esforçaram para acompanhar o ritmo do movimento CETA e implementar seu modelo de atuação, mas, por já existir uma organização, laços familiares e traços étnicos próprios que implicam no ritmo e na forma organizativa da comunidade, não foi possível consolidar uma identidade com o movimento e com o processo em curso.

Hoje, no entanto, com a visibilidade da questão de remanescente de quilombo promovida pelo Decreto 4887/2003, essas comunidades se identificaram e vêm se encontrando no processo, tendo consciência das especificidades que apresentam e buscando os espaços próprios para a discussão e articulação no enfrentamento das problemáticas que existem para a titulação dos territórios e conquistas de políticas sociais.

Os desafios continuam...

Propagar, ampliar, organizar e articular são as palavras de ordem que estão norteando a luta quilombola no Recôncavo Baiano.

Nesse ponto, está havendo uma conversão de interesses das várias comunidades quilombolas para consolidar uma organização em nível regional e estadual que articule um processo de propagação da luta no Estado da Bahia como um todo. Pretende-se também incluir muitas comunidades quilombolas que ainda não têm conhecimento do Decreto 4887/2003.

O Recôncavo baiano é um local de forte resistência do povo negro, visivelmente percebida tanto pela afirmação cultural e religiosa quanto pelos fortes traços físicos da afrodescendência. A eclosão da luta quilombola aqui faz parte de um futuro bem próximo, que desencadeará grandes mobilizações, para criar, mudar, adequar e efetivar políticas sociais, que venham de fato transformar a realidade de um povo, que até então reconhece as propostas existentes como políticas apenas compensatórias.

Andrea Iridan dos Santos - Engenheira Agrônoma e assessora da equipe rural da CJP.

Gilsely Barbara Barreto Santana - Advogada e assessora da equipe rural da CJP

Notas

[1] Em A jurisdicização da questão racial no Brasil: 1888-1998 (Monografia, Feira de Santana, UEFS, 2004), Gilsely Santana faz um estudo de como a questão racial aparece na esfera normativa brasileira apontando as seguintes fases: a legalidade da escravidão, período anterior à abolição da escravatura, a invisibilidade legal do negro 1888-1988 e a legalidade anti-racista a partir de 1988.

[2] Comissão de Justiça e Paz (CJP) é uma organização não-governamental, sem fins lucrativos, apoiada por doações e recursos de agências mantenedoras. Fundada em maio de 1982, atua através da educação popular na assessoria a grupos populares do campo e da cidade na Região Metropolitana de Salvador e no Recôncavo Baiano.

[3] INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Superintendência Regional da Bahia. Divisão de Recursos Fundiário. Relatório Técnico de identificação, Reconhecimento e Delimitação de Território pertencentes às Comunidades de Quilombos Dendê, Caonge, Calembá, Engenho da Praia e Engenho da Ponte. Município de Cachoeira, 2005.

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