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Quilombola por acaso

OESP, Vida, p. A29
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
15 de Out de 2010

Quilombola por acaso

Marcos Sá Corrêa

As perneiras de couro, contra picadas de cobra, são inseparáveis do ritual de ingresso na Linha Martins. Mas vêm do estoque cheirando a mofo, apesar da discreta espanada que lhe deu o guia antes de entregá-la. E não adianta dizer que sabe andar no mato, não tem medo de cobra ou faz calor. É a norma, Miro responde.
Ele se chama Almiro Marcelino Pereira. Mas avisou de véspera que não adiantava procurá-lo por esse nome nos confins do parque nacional com o município de São Miguel do Iguaçu, onde uma estrada de terra magra como um aceiro costeia a floresta e a soja. "Aqui, todo mundo só conhece Miro."
A divisa do parque com o município é um corte reto, traçado a máquina. É tão estreito que a sombra das copas se projeta na margem das plantações. É seu único anteparo contra o sol, que cai sobre os campos como uma praga dos céus.
Aprender o apelido é indispensável, porque sem Miro não se pisa na Linha Martins. Não basta procurá-lo diretamente no portão de entrada, porque ali ele vai pouco. É um escritório caprichado, feito com toras de eucalipto. Tem pórtico na frente, varanda nos fundos, virada para floresta, e até enfermaria. Mas turista é a coisa que Miro menos vê na Linha Martins, desde que passou a operá-la, lá vão mais de cinco anos.
Onça, sim, é visita que não lhe falta. Cada avistamento de onça, pintada ou não, está metodicamente inscrito, com dia, hora e local, na planilha da administração. O resto da fauna não merece tamanha consideração. Miro perdeu a conta das varas de porcos-do-mato, dos bandos de macacos, das antas e das jaguatiricas com que topou em suas andanças, capinando regularmente uma trilha que, por falta de uso, está sob o risco permanente de invasão pelo mato.
A prática tirou-lhe o pavor que tinha das jararacas, cascavéis e outras serpentes que lhe atravessam habitualmente o caminho. Mas as perneiras continuam sagradas.
Do outro lado da cerca. Miro cresceu do lado de lá da cerca, sem nunca se meter no mato. Criou-se num fundo de fazenda loteado em pequenos sítios de 1 alqueire, a maioria comprada por negros, em geral vindos de fora. São 25 pessoas. O bastante para, em terra de louros, virar a Vila dos Pretos.
Como tal, uma comissão de Curitiba a reconheceu como Comunidade Quilombola da Sanga Funda. Com o título vieram promessas de mais terras, sementes gratuitas e outras prerrogativas oficiais de quilombo. Nem tudo saiu. Nem por isso Miro deprecia as vantagens de virar quilombola. "As pessoas, assim, nos tratam com mais consideração", ele afirma.
A picada corta o parque de um lado a outro, em menos de 4 quilômetros, a menor distância entre seus limites. Já se pensou em extirpar essa verruga florestal da unidade de conservação, encravada como está numa fronteira agrícola sempre em avanço. A demarcação definitiva a preservou. E a Linha Martins foi uma compensação, para calar as críticas de que o parque fica de costas para quem mora longe de seus portões.
Nisso, fracassou. Ela recebe raros visitantes. E da vizinhança, até hoje, não veio ninguém. Só o prefeito de São Miguel do Iguaçu passou por lá na inauguração, sem parar para ver o que havia além do pórtico. Miro, no entanto, mantém a picada pronta para o que der e vier. Aplica ao pé da letra o regulamento para grupos, mesmo se atende um visitante que lhe sugere, à falta de testemunhas, esquecer aquela história de calçar perneiras. É um mateiro cioso e tarimbado, que só conheceu o mato na Linha Martins. Mas vive num país que só consegue enxergá-lo como quilombola.

OESP, 15/10/2010, Vida, p. A29

http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101015/not_imp624981,0.php

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