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Quilombo: território de insurgência

Brasis.org - https://www.brasis.org/
Autor: ALMEIDA, Ludmilla
15 de Dez de 2020

Quilombo: território de insurgência
Pela profundidade dos brasis, os quilombos mostram que lutar pelo direito ao território é a grande pandemia.

por CONAQ | dez 15, 2020 | Quilombos na mídia

Ludmilla Almeida | Centro-Oeste

Antes de tudo, como herdeira do povo negro, peço licença ao povo quilombola, especialmente, às mais velhas e aos mais velhos.

A pandemia começa em 1500 e, atualmente, estamos "colhendo seus frutos" com intensidades diferentes. Se os números apontam a incidência fatal nesses tempos para a população negra periférica no Brasil, quando voltamos nossos olhares para às comunidades quilombolas a situação contém mais camadas de negligência. E isso não só pela morte física, mas, em especial, pelo ato de deixar morrer aos poucos, em que políticas públicas básicas são ignoradas pelo Estado.

"Nos despedimos do Brasil em 1500 quando ele foi invadido, o país de pessoas livres. E passamos a ser o país da especulação e da escravidão permanente. Os mesmos corpos dos navios negreiro são os mesmos corpos de 2020" afirma Givânia Silva, pesquisadora, quilombola da Comunidade Conceição da Criolla, Pernambuco, e cofundadora da Conaq, durante conversa com o Instituto Socioambiental.

Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), o Brasil conta com 6.330 comunidades quilombolas, são mais de 16 milhões de pessoas. Cada Quilombo é um universo de possibilidades, cada um se organiza de acordo com suas tradições e necessidades, são guardiões dos conhecimentos tradicionais que sustentam os brasis. "A palavra Quilombo é originária do idioma africano quimbunco, que significa: sociedade formada por jovens guerreiros que pertenciam a grupos étnicos desenraizados de suas comunidades", conceitua a Conaq.

O Quilombo dos Palmares, já em 1580, representava o grande enfrentamento à opressão escravagista. Destruíram o território, o queimaram, no entanto, o seu legado não morreu, permanece vivo e fundamenta cada palavra de liberdade. "Para mim ser quilombola é eu poder viver, vivenciar e desfrutar de tudo aquilo que os meus ancestrais puderam permitir e potencializar que eu vivesse. Porque um dia eu posso até sair do quilombo, mas o Quilombo jamais sairá de mim" ressalta Laura Ferreira, integrante da Conaq, Bacharel em Direito e quilombola na Comunidade Negra Rural do Quilombo Ribeirão da Mutuca, Mato Grosso, que expressa orgulho em cada afirmação.

A trajetória dos quilombos denuncia que ainda estamos sendo invadidos e a colonialidade segue em curso. O Brasil rejeita sua história e inventa outra. Aliás quem são os donos das narrativas oficiais? Quem se beneficia quando Quilombo é significado como "lugar de escravos" ou "remanescentes de escravos"? "O Brasil é quilombola", destaca a Conaq.

Injustiça Histórica

"Os nossos inimigos, até mesmo em períodos como esses, de Covid19, não dormem e continuam retirando nossos direitos" evidencia Biko Rodrigues, coordenador executivo da Conaq e quilombola da Comunidade de Ivaporunduva, São Paulo.

Apesar de se ter previsto em lei, tanto pela Constituição Federal de 1988, quanto no Estatuto da Igualdade Racial de 2010 e, durante a pandemia, com a lei no 14.021, de 7 de julho de 2020, os direitos básicos emergenciais ao povo quilombola não foram implementados. Em relação a isso, a Conaq junto a outras organizações exigiram respostas ao Supremo Tribunal Federal e à ONU a respeito da execução do Plano Nacional de Combate aos Efeitos da Pandemia nas Comunidades Quilombolas por parte do Governo Federal.

O plano apesar de sancionado recebeu vários vetos, inclusive a de água potável para as comunidades. Entre outras medidas, o plano elencava a distribuição imediata de equipamentos de proteção individual, medidas de segurança alimentar, testes de covid-19 aos territórios, notificação no sistema do SUS e ações de combate ao racismo no atendimento médico aos quilombolas.

Vercilene Francisco, advogada, assessora jurídica na Terra de Direitos e na Conaq, e quilombola da Comunidade Kalunga, foi uma das pessoas que estiveram à frente dessas reivindicações pelas vidas quilombolas. Segundo ela, desde o início foram realizadas várias tentativas de diálogo com o governo, mas até o momento nenhuma resposta efetiva foi recebida. Além disso, a subnotificação por parte do Ministério da Saúde sobre quantos quilombolas estão infectados e quantos vieram a óbito gera ainda mais tensão e revolta.

Em todo o país, existem casos de violação ao direito do isolamento social. São invasões de terras quilombolas por fazendeiros, o aumento do desmatamento e turistas que não respeitam o acesso às comunidades, exemplifica Vercilene. A advogada continua nos mostrando um panorama e aponta as ameaças de despejo contra mais de 800 famílias em Alcântara, em função da construção da base militar estadunidense. Também se tem o empreendimento de duplicação da BR 135 pela DNIT, no Maranhão, violando o direito de consulta às comunidades. Isso além do escasso acesso à água por comunidades atingidas por obras de mineração e oleodutos, como em Minas Gerais e no Pará.

O acesso ao auxílio emergencial, que necessita de internet, foi inviável para várias comunidades, muitas vezes isoladas e com apenas um número de telefone. Isso somado a falta de bancos nos municípios, como em Cavalcante, para se receber o benefício. É uma burocracia para acessar o auxílio "muitos nem tem energia, luz, imagina torre de celular", afirma Biko Rodrigues sobre o silêncio que a Conaq recebeu do governo mediante denúncias a respeito disso.

É preciso compreender que o modo de vida quilombola é outro e isso precisa ser respeitado. "A pandemia só veio demonstrar aquilo que a gente sempre denunciou, que é a invisibilidade e a desigualdade existente no país" diz Biko. Para o coordenador executivo da Conaq, "o presidente da república não tem nenhum compromisso com a vida humana e o Estado brasileiro "lavou as mãos" para que a pandemia se alastrasse e isso se evidencia pela falta de um plano de combate a Covid-19 e pelas tentativas de acabar com o SUS", pontua.

"Quem mais gastou energia nesses meses de pandemia, senão nós o povo negro e os povos indígenas para dizer pro Estado brasileiro o que a constituição já mandou fazer?" diz Givânia Silva. A produção deste cansaço é um projeto que omite a responsabilidade das instituições diante das reivindicações já expostas em lei.

Para conter os impactos da contaminação, foi preciso que os próprios Quilombos articulassem formas de sobrevivência e as ações precisavam ser imediatas. O Quilombo Kalunga é o maior território quilombola do país, com quase duas vezes a área do Distrito Federal. Além disso, é um Sítio Histórico e Patrimônio Cultural com cerca de 300 anos, onde vivem mais de 8 mil pessoas, em uma área de ecoturismo que fechou suas portas logo ao início da pandemia.

A associação do Quilombo fez um documento interno para esse isolamento, uma medida de saúde pública tomada antes mesmo dos decretos de isolamento social do governo. A rapidez se deve também a presença de muitos idosos na comunidade e ao grande fluxo de turistas de outros países na região, como conta Lucilene Santos, quilombola Kalunga e especialista em história da cultura das africanidades brasileiras.

A Conaq e o Instituto Socioambiental (ISA), realizam, diante da inoperância do Ministério da Saúde em notificar os dados, o Observatório da covid-19 nos Quilombos. Uma iniciativa que opera junto às associações e mostra um esforço coletivo para se saber como os territórios estão se protegendo e onde estão as maiores propagações. Até novembro de 2020 foram registrados 169 óbitos e 4.695 casos confirmados com covid-19.

"A gente precisa estar como sempre esteve. Sempre enfrentando pandemias, uma atrás da outra, e desta vez pandemia e pandemônio", diz Givânia. Ela afirma em seguida que é preciso perder a ingenuidade e encarar que a democracia racial não existe. "A violência contra os povos quilombolas se manifesta de formas diferentes a cada momento histórico. Só entre 2016 e 2017, o número de assassinatos de quilombolas cresceu 350%". Um número que preocupa, pois além de se proteger do vírus, tem que proteger sua vida por ocupar uma terra que é sua.

De acordo com Hilton Silva, membro do Grupo Temático Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), os quilombolas têm quatro vezes mais chances de morrer por covid-19 do que uma pessoa da comunidade branca e urbana. A taxa de letalidade entre quilombolas é de 11,09%, mais que o dobro da média nacional, que está em 4,9%.

A pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) aponta que cerca de 75% da população quilombola vive em situação de extrema pobreza, dispondo de precário acesso às redes de serviços públicos. Isso se agrava pela inoperância dos programas de apoio à agricultura familiar e pelo grande investimento nas mega indústrias de alimentos no Brasil. A economia, nesses tempos, também sofreu abalos, já que a maioria da renda provinha da venda de produtos nas festas, nas feiras das cidades e do ecoturismo, muito comum nesses locais.

Se tratando de uma vida digna, como estabelece a Constituição Federal, é perceptível o efeito cascata ao longo dos anos, o que aprofunda o desrespeito a essas cidadãs e cidadãos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), durante visita ao país em 2018, também analisou o desmonte das políticas aos quilombolas e a situação de precariedade que são impostas às comunidades.

De acordo ainda com a pesquisa do MDS sobre as comunidades quilombolas, somente 15% dos domicílios têm acesso à rede pública de água e 5% à coleta regular de lixo, e em 89% dos domicílios o lixo doméstico é queimado. Só 0,2% estão conectados à rede de esgoto e de águas pluviais. A Conaq, a partir da base sociodemográfica de 2010 do IBGE, estimou o grau de precariedade econômica dos municípios com localidades quilombolas. O estudo mostrou que 23,59% dos domicílios estão com inadequabilidade no saneamento, enquanto, em municípios sem localidades quilombolas, a inadequabilidade está presente em 18% dos domicílios.

Ao sobrepor dados do IBGE, as localidades quilombolas e os dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (DataSUS), a Conaq também verificou que dentre os 1.672 municípios com localidades quilombolas, 46 não possuem nenhum médico do SUS, 67 possuíam apenas um médico e 619 localidades entre 2 e 10 médicos do SUS. Em 745 municípios (44%), há um médico do SUS para mais de 1.000 habitantes, 1.485 (89%) localidades não possuem leitos de UTI e 948 municípios não possuem respiradores no SUS.

De acordo com a Pesquisa de Avaliação da Situação de Segurança Alimentar e Nutricional em Comunidades Quilombolas Tituladas, se constata que a situação de pobreza extrema, ocasionada pela falta de renda adequada e ao grande número de trabalhadores informais, é vivenciada por 45,8% dos indivíduos quilombolas. A ação emergencial das Cestas de Alimentos chega a 31,4% dos domicílios; o Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (Pronaf) chega a apenas 5,8% dos domicílios, a Assistência Técnica e Extensão Rural a 1,3% e o Programa de Aquisição de Alimentos a 0,6%.

O descaso é um enfrentamento constante. Tanto que a população quilombola nem mesmo consta como destinatária de políticas públicas específicas no Plano Plurianual (PPA) 2020-2023 do governo Federal. E só em 2021, pela primeira vez, a população quilombola estará no Censo do IBGE. Esse silenciamento no acesso aos direitos refletem na importância da terra-território como fundamental para a manutenção da comunidade e bem viver social. Mesmo previsto em lei, em 32 anos desde que o direito ao território tradicional quilombola foi reconhecido na Constituição Federal de 1988, apenas 44 comunidades foram tituladas pelo Incra - desse total, 23 estão tituladas apenas parcialmente.

O Coração do Brasil é terra quilombola

A luta pela terra nos provoca a revirar o arcabouço da história que nos contaram e buscar as histórias não contadas. O Quilombo Mesquita, na Cidade ocidental em Goiás, é um indicativo de como a invenção romântica da ideia de nação e progresso é capaz de nos sufocar. Existindo a mais de 233 anos e atualmente com quase 800 famílias, o território ocupava toda a área onde hoje está Brasília. Porém, a invasão para a construção da capital do país roubou grande parte das terras já ocupadas e lançou para fora das fronteiras do Distrito Federal os povos que ali estavam. Uma expulsão que também está no apagamento, inclusive, da existência de quilombolas na construção de tal fortaleza.

Walisson Braga, estudante de Artes Visuais na Unb e quilombola da Comunidade Mesquita, relata o desgaste e injustiça que o território vem passando ao longo dos anos devido a história que se diz oficial. "Nos misturam no meio dos candangos, sendo que já estávamos aqui bem antes" reitera.

"Juscelino veio para cá construiu o sonho dele, o sonho de 50 anos em 5, e isso se tornou o nosso pesadelo. Passou a linha do Distrito Federal em cima de nossas terras, não teve nem a decência de colocar o Quilombo Mesquita pra dentro do Distrito Federal e deixou a gente aqui no entorno sul, sofrendo com várias questões como a falta de saúde e de educação, de transporte de qualidade inclusive para gente se locomover até Brasília".

A divisa do Distrito Federal fica a menos de 20 quilômetros da comunidade. E mesmo com tamanho sequestro de seus direitos, o caos ainda atua pelas ameaças do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em querer retirar mais de 80% do território. Soma-se a isso, a luta contra grileiros, os empreendimentos do prefeito da cidade e sua falta de respeito para com a identidade do povo. O estudante pontua que o ato de ter um papel para que seja reconhecido que você é quilombola ou não, já é um enfrentamento que muitas comunidades passam cotidianamente até se chegar a reivindicação fundiária da terra, que é a grande questão.

"Aqui onde é a esplanada, ali onde é o STF, é onde meu avô pastava o gado dele", diz Sandra Braga, liderança do Quilombo do Mesquita e coordenadora executiva da Conaq, durante relato ao Instituto Socioambiental. "Hoje quando chego ali no Supremo me dá uma dor muito grande, uma dor realmente na alma. Porque é um espaço que a gente diz de justiça, de defesa desses direitos, e hoje ainda estamos à mercê de um julgamento para provar o que é um direito nosso" finaliza.

Walisson ainda lembra de como foi quando seu primo contraiu a Covid-19 e necessitou de hospitais em Brasília, e teve o atendimento negado. Depois ficou em um hospital de campanha, mas logo esse foi desativado e o paciente precisou procurar atendimento em uma cidade depois de Goiânia, a mais de 500 quilômetros. "E quando se consegue chegar até Brasília, lá a gente tem nossos direitos violados. Porque quando se chega em um hospital a gente não pode ser atendido porque não é do Distrito Federal. A gente não consegue acesso à escola porque não é do Distrito Federal" completa o estudante.

A comunidade teve dois óbitos por causa da Covid-19. A proximidade com a cidade e a necessidade de circulação devido ao trabalho coloca tais pessoas em alerta, e todo mundo se protege como pode. A narrativa desse Quilombo converge, mais uma vez, em direção aos cacos e as destruições ocasionadas por quem pode imperar sua fala e seu fazer.

E isso traz três questões recorrentes: quem tem direito a ter direitos? Quem pode ter a sua história contada em primeira pessoa? Quando falamos de direitos humanos, de quais humanos estamos falando?

Garantir o território é garantir saúde

Segundo Gonçalina Eva, professora, quilombola e vice-presidente da Associação da Comunidade Mata Cavalo, em Mato Grosso, a regularização fundiária da terra está parada e se antes já não queriam regularizar, a pandemia se tornou mais um grande motivo para que os responsáveis parem tudo. Só nessa comunidade são 418 famílias que vivem a incerteza da garantia da terra. Isso apesar da posse do local estar documentada há 137 anos em testamento pela antiga proprietária aos ex-escravizados. "Nunca houve uma posse passiva desses quilombolas dentro da terra" afirma.

E na época, como a elite da região não reconhecia o território como apossado, vários conflitos foram frequentes, com muitos pistoleiros ameaçando as vidas quilombolas. Além de fazendeiros, que foram tomando parte das terras ao longo dos anos. Gonçalina lembra que havia até um fazendeiro que era dono do cartório, e que distribuía títulos ilegais de terra para outras pessoas. A professora ainda pontua que em 1850, quem podia ter terra era apenas quem sabia ler e escrever, uma oportunidade distante aqueles ex-escravizados. E mesmo com Lei de Terras e a Constituição de 1988, que dá a posse às comunidades quilombolas, estes direitos não foram garantidos.

"As dificuldades ainda são maiores do que os pequenos avanços" diz a quilombola, que traz a evidência do racismo estrutural como um dos grandes fatores para dificultar a regularização da terra. "Por estar em um território rico em ouro, na rota do Pantanal e em espaços com fazendeiros influentes na criação de gados. Tanto que o acesso a água pela comunidade está comprometido, o garimpo assoreou os rios e os postos próximos não suprem a necessidade".

Por isso, segundo Gonçalina, o reconhecimento da Fundação Cultural Palmares não é suficiente, o acesso às políticas públicas, prevista em lei, encontra barreiras na falta de regulação da terra. "Minha militância, ela começa no ventre da minha mãe, em defesa da luta pelo território quilombola" reitera Laura Ferreira, representante da Associação da Comunidade Negra Rural do Quilombo Ribeirão da Mutuca, Mato Grosso, sobre o processo doloroso ao longo dos anos que é tentar validar algo que já seu por direito.

"O Quilombo surge do fato histórico que é a fuga. É o ato primeiro de um homem que reconhece que não é propriedade de outro. Daí, a importância da migração, a importância da busca do território" conta a intelectual Beatriz Nascimento, no filme Ôrí, de 1989. A terra quilombola é de uso coletivo, o que difere de outras posses de terras. Tudo o que é plantado ali é para toda a comunidade. No entanto, mesmo com a posse as comunidades ainda ficam sob a tutela do Estado quanto a liberdade do que se pode fazer com a sua terra. "Tudo que diz que é direito nosso, não funciona" pontua o Mestre Nêgo Bispo, quilombola na comunidade de Saco-Curtume, Piauí.

Diferente do que muitos afirmam, as e os quilombolas não estão sendo impactados pela ausência do Estado, mas sim pela presença dele. Quando se pensa em formação de Estado dentro de um modelo neoliberal que prega a democracia, mas não direciona recursos a ela, o resultado não poderia ser diferente: morte e desprezo a quem não está no topo da cadeia. Ou "melhor", como fazem com uma violenta delicadeza previsível, onde deixam morrer e fingem que não viram.

"Nós queremos simplesmente uma coisa: respeito. Respeito a nossa história, respeito com a nossa luta, respeito com a nossa identidade e respeito com a nossa origem, isso é o suficiente: respeito" destaca Laura Ferreira. Ainda de acordo com a quilombola, não é possível ter saúde sem território. "O bem viver é necessário para se ter paz. A reivindicação do respeito é simplesmente pelo cumprimento efetivo da lei", pontua.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define "saúde" como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade". O que implica, para as e os quilombolas, condições mínimas de estabilidade social, a utilização da terra e o uso do território como lugar de vivência. "A nossa maior luta é a garantia do território, porque é o território que vai garantir melhorias e acesso às políticas públicas que melhorem a vida das populações quilombolas", destaca Vercilene Francisco.

"Saúde pra mim é ir deitar e levantar tendo garantido de que eu vou dar continuidade. Porque hoje a gente não tem essa garantia. A gente é que é teimoso mesmo, por isso que está aqui" completa Gonçalina ao citar o quanto a incidência de diabetes, pressão alta, doenças emocionais no Quilombo são ocasionadas nessa luta pela terra.

"É um período em que não podemos enterrar os nossos mortos, isso é muito doído" frisa Biko Rodrigues. Segundo o coordenador executivo da Conaq, estamos vivendo um período muito difícil onde filhos não podem enterrar os pais, nem os pais podem ir ao velório do filho, são histórias que estão se perdendo, são pais, mães, filhos, histórias vivas. "Não estamos chorando os nossos mortos" conclui, se referindo ao sentimento de desamparo que a pandemia solidifica no país e nos territórios.

A Portaria no 992 de maio de 2009, que instituiu a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, estabelece como um de seus objetivos específicos a garantia e a ampliação do "acesso da população negra do campo e da floresta, em particular as populações quilombolas, às ações e aos serviços de saúde". E, como estratégias e responsabilidades das esferas de gestão o "estabelecimento de metas específicas para a melhoria dos indicadores de saúde da população negra, com especial atenção para as populações quilombolas". Além disso, a própria Constituição Federal de 1988 já inclui a proteção à saúde, nos termos dos artigos. 6o e 196, bem como à vida digna, nos termos do art. 1o, III e V também da Constituição.

Apesar de se ter mais de 32 anos de reconhecimento na Constituição, "o sistema de saúde parece não saber da existência das comunidades quilombolas e onde elas estão", assinala Vercilene Francisco, sobre o quanto as secretarias de saúde nem ao menos localizam as comunidades para planejar ações. Em Cavalcante, Goiás, um dos municípios da região da comunidade Kalunga, o atendimento primário é precário, sendo necessário, para realizar um exame ou um atendimento de média e alta complexidade, se deslocar às grandes cidades. Como Brasília, cerca de 300 quilômetros, ou Goiânia, quase 500 quilômetros de distância. Ainda segundo Vercilene, antes da pandemia já era recorrente a falta de postos de saúde e hospitais dentro ou próximo às comunidades quilombolas.

O desmonte da saúde, a falta de valorização dos médicos em municípios menores, a retirada dos médicos cubanos, que iam até as casas mais isoladas e o não cumprimento das leis sobre saúde pública surtem efeitos ainda maiores nestes territórios. O problema também impede o isolamento social, a única forma de prevenção eficaz dessa população, pois ir até um atendimento médico se deslocando para tão longe, acaba sendo um risco ainda maior.

"Se a população negra periférica de São Paulo, Goiânia e Brasília é esquecida, ela não tem atendimento. Imagina uma população quilombola que há pouco tempo teve energia? Ainda mais essas comunidades que são comunidades rurais. Com isso, a chegada de políticas públicas demora ainda mais" retoma Hellen Oliveira, biomédica, estudante de medicina e quilombola Kalunga.

"Não tem hospital na comunidade, tem um posto de saúde e é bem precário. Mas o médico vai de 15 em 15 dias na comunidade fazer atendimento básico", nos diz Vera Lúcia, funcionária pública, estudante de educação do campo e vice-presidente da associação do Quilombo Furnas do Dionísio, Mato Grosso do Sul, onde vivem cerca de 106 famílias. "Caso seja preciso um atendimento de maior complexidade é preciso ir até Jaraguari ou a capital Campo Grande, cerca de 45 quilômetros.", completa. A medida de saúde imediata que encontram foi também fechar a comunidade, que trabalha com ecoturismo, e permitir apenas a entrada de parentes próximos.

A luta pelo território também é uma constante em Furnas do Dionísio. Mesmo tendo a posse da terra desde 1890, pelo mineiro alforriado Dionísio Antônio Vieira, a comunidade ainda aguarda a posse definitiva junto ao Incra. "Território envolve toda a coletividade, ancestralidade, modo de vida, a força espiritual. Regular a terra é ter paz interior, bem estar, estar em segurança, não correr o risco de ser retirado de um lugar em que seus avós, bisavós, tataravós viveram. Um território que você conhece toda a história de como as pessoas chegaram ali, e de repente você tem que sair" assinala Vercilene.

"A terra nos garante saúde, é onde produzo meu alimento saudável", diz Biko. O coordenador ainda destaca o quanto as comunidades que produzem, como o Quilombo Ivaporunduva, São Paulo, estão se mobilizando nessa época para levar alimentos a quem não tem. Essa comunidade é uma terra já titulada, o que mostra a importância da regularização fundiária que permite a produção agroecológica e gera sustento não só para as famílias próximas, mas também para as de outras localidades.

"A solidariedade é grande. Mas para a dimensão do que são mais de 16 milhões de quilombolas, mais de 6 mil comunidades quilombolas no país, é insuficiente", pontua Vercilene sobre a falta de compreensão do governo sobre o que é uma família quilombola, em que, geralmente, se tem muitos integrantes. "E a gente até faz um trocadilho, o governo federal disse que distribuiu mais de 40 mil cestas para as comunidades quilombolas, a gente conseguiu mais de 40 mil cestas com os nossos parceiros para distribuir nas comunidades" diz a advogada, ressaltando umas das formas que encontraram para impedir que algumas famílias percam ainda mais diante desse cenário.

Biko também pontua que muitas vezes as e os quilombolas só são lembrados no dia 20 de novembro e muitos ajudam mais nessa época. Um disfarce que visa tirar o peso da consciência dos gestores que diante da existência de uma política racista não efetivam ações de combate eficazes. "Nós reafirmamos, não temos fome somente nesses períodos, temos fome durante o ano inteiro. A gente trabalha para construir esse Brasil durante o ano inteiro. Então, a gente tem que acabar com esse racismo institucional que existe dentro das estruturas governamentais", completa o coordenador executivo da Conaq.

Ancestralidade é futuro

"O contrário de casa grande não é senzala. É quilombo!", como afirma o pesquisador Clóvis Moura. Quilombo é centro. É o povo com engenhosidades de vivências que rompem com o projeto de morte capitalista. Aqui a referência de centralidade permeia o renascimento de África em território diaspórico, em que o centro do ocidente é apenas uma outra possibilidade de mundo. "O que nos mantém vivos até hoje, é a gente entender que existe um mundo além desse. Eu não posso estar na África, mas a África vive dentro de mim" diz Biko, sobre a importância de sabermos nossas origens, nossas ancestralidades.

As histórias que constroem esse texto, apesar de serem emitidas recentemente, na verdade vem de muito longe. São histórias de resistências e re-existências. Muito antes de liberdade estar atrelada a chamada "lei áurea", o povo negro já sabia o que era liberdade dentro dos Quilombos. Isso porque o que sustenta tanta força e rebeldia, é a descendência. Que vem de realezas, sábias, sábios, das práticas de ebós, das matripotências que gestaram a nós e a essa terra, os brasis, para que tantas vozes pudessem ecoar e se encontrar aqui e agora. Mesmo o inimigo oferecendo a fome, o Quilombo próspera e frutifica, porque a terra não deixa ninguém na mão.

"Nossos passos vêm de longe", premissa que nos rege a não esquecer quem fomos, quem somos e quem queremos ser. "A ancestralidade está em tudo o que é vivo" e mais, "o futuro é ancestral", como afirma a quilombola e pesquisadora Katiúscia Ribeiro. É a força que move o nosso "ser sendo", sustenta o nosso presente e faz construir o nosso futuro. Rejeitar isso é estar em desequilíbrio. "O passado vive dentro de mim para eu projetar o futuro. Ninguém chega aonde está sem ter uma história por trás. E nossas histórias são nossos anciãos nos territórios quilombolas" reitera Biko.

Na disputa para que os direitos sejam respeitados, o cansaço, a desesperança e a propagação de histórias forjadas são perversidades implantadas pelos poderosos que insistem em tomar o que já é desses povos. "É preciso ter os povos quilombolas como parte do processo histórico, como sujeitos da história e não como coadjuvantes" diz Laura Ferreira, integrante da Conaq, Bacharel em Direito e quilombola na Comunidade Negra Rural do Quilombo Ribeirão da Mutuca, Mato Grosso.

"Esse ato estabelece um sentido de nação estritamente africano e Bantu. A nação aculturada. Essa textura do Bantu, essa rede de relações que o Bantu estabelece na África entre as várias etnias, está fundamentada na própria raiz da língua Bantu, que é a raiz do "ntu". O sentido de "ntu" é a relação de pessoa pra pessoa" afirma Beatriz Nascimento. É desse gesto e modo de se organizar que o fundamento a partir do "eu sou, porque nós somos" é exercido.

"Tudo nosso é na circularidade" afirma o Mestre Nêgo Bispo, que defende o saber orgânico como uma condição de vida, um saber resolutivo, em que se "pensa pelo sentir". "O saber orgânico, como sendo os saberes que envolvem o ser e des-envolvem o ter" e que não apenas evidencia os problemas, mas propõe como compreende e como resolve as questões do mundo.

"Quilombo não é lugar de negro escravizado não, Quilombo é lugar de uma civilidade humana diferente. Nos Quilombos não tem mendigo. Nos Quilombos não tem gente morando na rua. Nos Quilombos não precisa creche e nos Quilombos não precisa de asilo" continua o Mestre, "os Quilombos são as organizações contra-colonizadoras mais antigas que se construiu". Por isso, "o nosso conceito de mundo é outro, o nosso conceito de nossa riqueza é outro", destaca.

Além disso, o Mestre ainda frisa que "no Quilombo não tem democracia, tem compartilhamento", isso porque o território é cosmológico, a terra e seus seres, inclusive nós, precisam estar em constante confluência, em diálogo. E ainda diz, "democracia rima com polícia. Não tem democracia sem polícia. Nas comunidades não tem polícia e vai ver aonde é que tá mais violência, se é onde tem polícia ou onde não tem polícia?", conta.

Diferente do discurso de ódio propagado pelo ocidente patriarcal, os povos quilombolas nos ensinam, a partir da cosmologia em diáspora, que é preciso pedir benção a quem viu o sol antes de nós, a quem lutou para que esse futuro estivesse aqui. "O nosso medo é a perda da memória, porque são os mais velhos que carregam toda a história do quilombo" diz Vercilene. "A memória são conteúdos de um continente, da sua vida, da sua história, do seu passado. Como se o corpo fosse o documento", diz Beatriz Nascimento.

"Eles [os mais velhos] são os nossos espelhos. A nossa história só deu continuidade graças a esses anciãos, sem eles não tinha história. A nossa identidade começa com os mais velhos, esquecer eles é esquecer a nossa trajetória" reforça Laura. "Lá em Furnas a gente dá muito mesmo valor para seus idosos, para as pessoas mais velhas. A família que tem seus idosos, um da casa toma conta, um filho toma conta. Não tem nenhum idoso lá que está em asilo, não tem nenhum idoso que precisa ir para casa de repouso. Se precisa ir ao médico a família está junto, se fica doente a família está junto. E quando perde-se um idoso é uma perda doída, porque é uma parte da comunidade que se foi, é uma sabedoria, é uma vivência que se foi", diz Vera Lúcia, funcionária pública, estudante de educação do campo e vice-presidente da associação do Quilombo Furnas do Dionísio, Mato Grosso do Sul, ao recordar sua criação e os ensinamentos de respeito para com os mais velhos, mesmo que estes não sejam parentes, sempre é preciso pedir a benção.

"Por mais que um sistema social domine, é possível que se crie aí dentro um sistema diferenciado, e é isso que o Quilombo é. Só que não no estado de poder no sentido que a gente entende, poder político, poder de dominação, porque ele não tem essa perspectiva. Cada indivíduo é o poder, cada indivíduo é o Quilombo" afirma Beatriz Nascimento.

Para quem ainda não sabe, a humanidade surge no continente africano. Sim, esse é o nosso berço matricial e o mesmo que somos ensinados a anular de nossas vidas. Essa primeira experiência foi regida pela estreita inerência entre a natureza e seus seres, nós. "A terra é sagrada. É moradia, mas também é lugar de cultivo, vivemos do cultivo do arroz, da cana, do feijão, do respeito ao tempo da terra para que ela descanse depois dos cultivos. A terra é parte da gente, ela que nos dá sustento", assinala Hellen Oliveira.

Ainda nessa retomada de princípios africanos em diáspora, também o ser mulher, as matriarcas, gestão os saberes que forjam os levantes da comunidade. "Dentro dos territórios são as mulheres que tem a força de organizar e mobilizar a comunidade, pois a luta está para além do território, é criação de redes" expressa Vercilene. "Ser mulher quilombola é tomar seu próprio rumo, é resistir". Por isso, "quando uma mulher quilombola tomba, o Quilombo se levanta" como afirma o grupo de mulheres quilombolas da Conaq.

"Elas são guerreiras, lutadoras e são grandes mulheres que deram ênfase a nossa luta quilombola" destaca Laura a respeito da força das mulheres quilombolas na retomada de seus territórios. "Elas sempre estiveram à frente, porque a mulher, no enfrentamento, ela consegue dialogar, prosear e dar paulada, então é pau e prosa", diz a líder, demonstrando a força da descendência em cada palavra.

Perto de onde Laura vive existia entre 1730 a 1770 o Quilombo de Quariterê, liderado pela rainha Teresa de Benguela. A comunidade abrigava mais de 100 pessoas entre negros e indigenas, se organizava militarmente, transformava os metais das armas em panelas, e tomavam as decisões de forma coletiva. No entanto, a resistência mais uma vez foi interrompida pelo exército brasileiro que destruiu o Quilombo e matou a rainha. Mas, essa mulher quilombola renasceu, não é a toa que seu espírito se encontra na continuidade das comunidades.

Se reinventar significa não morrer. O povo quilombola, além de lutar, atualmente, contra um vírus "invisível", de efeitos devastadores, ainda precisa estar em atenção constante com a manutenção da saúde plena. O direito ao festejo, as rodas de conversa, as visitas fim de tarde, as idas à benzedeira ou ao benzedeiro, foram reduzidas. A manutenção da espiritualidade também sentiu o momento. A andança pelo Quilombo foi posta em quarentena, mas a vitalidade do compartilhar e cuidar continuou pulsando nos saberes com a terra.

Por isso, nossa imunidade vem da terra e ela nos ensina a circularidade da vida, aqui não existe o fim. As doenças que esse mundo nos causou são profundas e não podem ser curadas apenas com remédios e drogas químicas. O passo atrás é necessário. A pele preta é um presente dado a nós antes mesmo de nascermos e com ela o direito à memória, e às táticas de como sobreviver em tempos de caos. A resistência está nisso também, em poder eternizar a grandiosidade dos ensinamentos quilombolas que permeiam nossa vida, mesmo diante das tragédias que nos são acometidas. A estratégia quilombola aponta que jamais estivemos sós.

Os saberes tradicionais que nutrem as histórias dos brasis não partem apenas do plano material. Ele está para além do DNA, permeia o espírito, nas feridas que abriram em nós e na criatividade em reorganizar nossas vidas. O que foi roubado do povo negro precisa ser retomado. Nossas narrativas precisam ser reivindicadas no incômodo aos da casa grande, que são o grande vetor das pandemias que amaldiçoam as pluralidades da vida.

Ansiamos tanto por uma vacina que vai nos salvar do desastre da covid-19, mas será que tudo será solucionado pela promessa de cura promovida pela indústria farmacêutica? É impressionante o quanto somos direcionadas e direcionados a olhar de forma míope para o mundo. "O que importa é o que eu vejo como importante".

E com isso, somos movidas e movidos a esquecer que a real cura precisa ser coletiva. O fundamento violento do Brasil homogêneo e irracional acha que rompendo com os antepassados ainda existirá o milagre do futuro. Esse projeto egoísta nunca deu certo e mais do que nunca sua ineficácia está provada.

Não há futuro sem ancestralidade, não se pode avançar sem recuar, a flecha só vai mais longe quando afastamos um pouco para trás e para alcançar o céu é preciso ter raízes profundas. Os povos da floresta, da terra e das águas já nos ensinam isso a muito tempo. São eles que dizem o tempo todo que curar a terra é nos curar, são eles que previram a queda do céu e clamam pelo adiar do fim do mundo, para que outros mundos ainda sejam possíveis.

Tecnologias de sobre(vivência)

À procura de uma perspectiva quilombola do mundo, a ideia de cura, como possível apenas pela medicina convencional, não é suficiente. É preciso aqui expandir a ideia de saúde como algo que vai além da cura do corpo físico e ocorre também pela dimensão espiritual, ancestral e do território. Durante a pandemia, o autocuidado e a reciprocidade foram importantes para realizar o que o poder público não se importa em fazer. O Quilombo ao se efetivar na dinâmica coletiva, nas trocas, precisou se rearticular para proteger as mais velhas e os mais velhos, a memória da comunidade, e evitar que o vírus provocasse catástrofes ainda maiores.

A prevenção ao lavar as mãos quando se chega de fora, o cuidado com a roupa ao se chegar em casa, a responsabilidade com os de mais idade, limpar os pés antes de entrar, o respeito às matas que nos fornecem elementos para aliviar uma dor e, principalmente, antecipar que uma doença possa chegar aos nossos corpos, se atentando ao que se come e ao descanso, são práticas comuns aos povos tradicionais.

Joaquim Wilson vive na comunidade quilombola Povoado do Moinho, em Goiás, trabalha a 47 anos com plantas medicinais e solidifica em cada palavra o orgulho de ser filho de Dona Flor, raizeira, benzedeira e parteira de mais de 300 crianças, muito conhecida na Chapada dos Veadeiros em Goiás. Ele e sua irmã, Deija Morais, cuidam da Casa de Plantas da Dona Flor e lá já receberam pessoas de todos os cantos do Brasil.

O corpo é sagrado, por isso, o cuidado com ele é elemento vital na dinâmica da comunidade. "Sempre falo isso com as pessoas de nunca deixar acumular doença para procurar o médico, tem que estar sempre atento" conta Joaquim Wilson, que afirma atuar "na missão de zelador, de cuidador e de conhecedor de plantas medicinais".

Ele também diz que esse cuidado é feito alinhando as fases da lua e as especificidades de cada pessoa. Mas ressalta que é preciso estudo, conhecer bem as plantas e orientar mediante o diagnóstico médico, e os sinais e sintomas que surgem. O raizeiro ainda conta que paciência é importante e os benefícios são certos, mas o tempo de cura pelas plantas é outro, demora um pouco mais do que os remédios artificiais, que tem fortes chances de causar ainda mais problemas.

"Quando acontece alguma coisa, picada de cobra, se machucar na cachoeira, o local que eles vêm procurar socorro é aqui em casa né. A gente faz o que pode, a gente limpa, coloca um álcool com arnica. Aí a gente faz esse serviço de primeiros socorros" afirma Deija diante da ausência de posto de saúde na região. "O nosso apoio é o nosso cuidado aqui. É nós tá usando máscara, o álcool em gel, lavando a mão o tempo todo com água, sabão", destaca sobre a prevenção da covid-19.

"Manter vivo os ensinamentos que já fazem parte do nosso cotidiano, é uma forma de impedir que esse vírus atravesse as comunidades e cause ainda mais dor nas pessoas" retoma Laura integrante da Conaq, Bacharel em Direito e quilombola na Comunidade Negra Rural do Quilombo Ribeirão da Mutuca, Mato Grosso.

"Os saberes tradicionais nos ajudam a passar por momentos difíceis" afirma Biko. Por isso, tais saberes sempre estiveram na base da organização da comunidade. "Todo mundo da comunidade usa plantas, então todo mundo, moram lá são 78 famílias, todo mundo sabe se cuidar, saber colher, plantar, como preparar um remédio" afirma Lucely Pio, mestra, geoterapeuta e fisioterapeuta, integrante da Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado e vive na Comunidade Quilombola do Cedro, que já tem 190 anos de existência.

Segundo a mestra, na comunidade se tem conhecimento de cerca de 80 formas de remédios e vem pessoas até fora do Brasil em busca deles. "Eu sou a quinta geração da comunidade e a gente continua passando para os mais novos. A gente trabalha com 470 espécie nativas e mais de 350 plantas exóticas dentro do Centro de Plantas". Lucely também tem uma clínica na cidade e disse que com a pandemia o atendimento praticamente dobrou, casos de ansiedade e depressão foram recorrentes.

São mais de 12 terapias naturais que ela oferece em um trabalho realizado juntamente com psicólogas da região. Uma das técnicas utilizadas é o "Reiki", que ocorre através da imposição de mãos. Isso aumenta a frequência da energia, promove relaxamento do corpo, aumenta a concentração e realinham os Chakras, centros de energia vital da pessoa. São técnicas que visam trabalhar o emocional para se ter o corpo bem e fechar portas para doenças.

Além disso, a geoterapeuta, afirma em relação as raízes curativas, que não basta apenas tomar a planta da terra, é preciso pedir licença, manter uma sintonia com a natureza, escutar a terra e o dono do mato. "Isso requer também cuidado ao retirar a planta para não se perder a "muda" e manter a sustentabilidade, não é só pegar, tem todo uma técnica e um cuidado", afirma.

"Depois que começou a pandemia, começou um trabalho muito mais forte de reforçar essa importância dos chás, das garrafadas. Eu mesmo recebi uma garrafada e estou tomando" diz Lucilene Santos que mesmo vivendo agora em Goiânia, mantém em exercício os saberes de seu povo. "Essa prática não é por causa da covid-19, é um costume, para eles não é medicamento, porque faz parte do cotidiano", pontua.

"Foi pedido muito a quina do cerrado, muito gengibre, açafrão, caule da flor do sabugueiro, a raiz do capim de cheiro, agrião da água, hortelã, alho, assa peixe, folha de laranja, amburana, semente da amburana. São plantas relacionadas a autoimunidade" descreve Joaquin Wilson a respeito de quais tipos de plantas foram mais utilizadas no combate a Covid-19.

"É o único recurso que a gente tem, né? Porque nem os cientistas têm uma cura, nem uma vacina. Mesmo não estando escrito por um acadêmico renomado, isso funciona na comunidade", destaca Hellen, biomédica, estudante de medicina e quilombola Kalunga, ao lembrar de sua infância e de que todos os dias, pela manhã, se tinha chá a mesa. A estudante ainda diz que a distância de acesso a um posto de saúde faz com que em zonas rurais, a saída seja o tratamento fitoterápico. Mas ressalta a importância de que é preciso saber o que cada planta faz e quais efeitos podem causar. "Aqui nunca falta mel, açafrão, gengibre e alho", retoma Hellen. Que se encontra atualmente na cidade, mas mantém viva as práticas de manutenção de sua saúde através de produtos naturais.

Hellen também reforça sobre os encontros de saberes entre os povos indígenas e os povos africanos. Os povos indígenas tinham maior conhecimento sobre o território e as plantas que aqui já estavam, e os povos africanos trouxeram outros conhecimentos sobre outras plantas e práticas de cura. Como eram povos que reverenciavam a natureza, compartilharam entre si tais conhecimentos sobre as plantas e isso os uniu diante das opressões.

O Mestre Nêgo Bispo chama esse encontro entre os povos africanos e povos indígenas de "confluências de civilizações, confluências de cosmologias". Isso porque mesmo falando línguas diferentes eles logo se entenderam, confluíram pelas plantas, pelas águas, pelas estrelas. São povos que se encontram e se fortalecem

Na comunidade de Furnas do Dionísio, segundo Vera, os mais velhos e as mais velhas são os que chamam atenção para o poder das plantas nessa época. "Agora nessa pandemia, tem o fedegoso na comunidade, que foi usado muito. Os mais velhos dizem: gente toma fedegoso, não é que mata o vírus, ele fortalece, ele cria imunidade, ele deixa o organismo mais forte" conta.

"Tanto o chá para tomar banho, quanto para beber, as raízes, as rezas. Mas isso só funciona pela fé, no acreditar que as pestes se vão" diz Laura, que ressalta, "nosso povo sempre acreditou. É ter fé acima de tudo, primeiramente, em Deus, depois acreditar nas ervas, assim como nos conhecimentos e nas orações em que a gente entrega, principalmente, para São Sebastião, para que ele nos livre dessa peste".

"A gente faz o chá de folha de negramina, folha de tamarindo, folha de açoita-cavalo. Então, são esses chás que nos mantém firmes e resistentes. A quina, nós tomamos a casca do alho com cebola, mel, que são de própria confecção da comunidade, temos criação de abelha. Tudo isso que nos ajudou e fora as outras ervas que a gente tem aqui, que nem tudo a gente deve falar a fonte né" completa Laura Ferreira.

"Esses conhecimentos não nascem na academia" afirma Biko ao denunciar a ganância do capitalismo e de como muitos pesquisadores fora da comunidade roubam os conhecimentos tradicionais, e em nenhum momento fazem referência de onde veio tal saber. O coordenador ainda lembra do que aconteceu no Território Kalunga com a Baunilha do Cerrado que foi patenteada por uma associação que lucra às custas de algo que é da comunidade. "Em média dura 30 anos para um remédio natural ser produzido, entre estudo e teste" diz, sobre o quanto o roubo dos saberes, também é um roubo do tempo e das riquezas do lugar.

Falar em tecnologias de vivência e sobrevivência, é também perceber como o povo organiza suas vidas para manter a coletividade ativa, pelo autocuidado coletivo. Nesse caminho, encontramos o ato de festejar não apenas como um momento de diversão, mas também um momento de reconexão com a comunidade, de exercício da felicidade para com as tradições e para a beleza, de cores, luzes, comidas, que enfeitam os espaços. Aqui o corpo dança, canta, toca, dá gargalhada, "arriba a poeira" e degusta dos sabores temperados e ornamentados pelas mãos de cada artista.

Vercilene ainda reitera que esses encontros fortalecem a espiritualidade e a comunidade. Isso porque é comum a busca pela liderança espiritual quando se deparam com algum problema de saúde. O respeito às curandeiras, aos curandeiros, às raizeiras e raizeiros, e às rezadeiras e rezadeiros é algo comum. Mas tais práticas são intensificadas nos festejos, pois é onde se juntam para maiores rezas, com mais pessoas. De acordo com a advogada, a comunidade sentiu a falta desses encontros esse ano, já que a pandemia os obrigou a se isolar, e isso mexe com o psicológico das pessoas, que de repente precisaram mudar seu ritmo tradicional.

Festejar é praticar vida. São onde vários casamentos e batismos são realizados. É quando a comunidade se reúne e recebe muitas pessoas de outros cantos do mundo. No território Kalunga os festejos se desdobram ao longo do ano. Existem festas como as Romarias e o Império, e danças como a Sussa, que requer equilíbrio ao mesmo tempo em que se roda o corpo.

"Isso é algo que se aprende com os mais velhos", diz Hellen Oliveira ao lembrar da força desses encontros na comunidade e da vivacidade passada de geração em geração. Em Furnas do Dionísio, os Festivais da rapadura, a Catira, o Engenho Novo e a dança da cobrinha integram as tradições. As festas agrícolas, que celebram os produtos rurais da comunidade, como a Festa do Marmelo e do Quiabo N'golo, são destaques do Quilombo Mesquita.

Como legado dos saberes já praticados em África, os Quilombos e terreiros nos dizem que as enfermidades não podem ser explicadas apenas por percepções biológicas, físicas do corpo, mas sim espirituais. A prática de cura, tida como arte, realizada por pessoas preparadas para isso, muitas vezes é, aqui na diáspora, demonizada e criminalizada. Curar simbolizava e simboliza a restauração do equilíbrio do corpo para com a natureza, e é na própria natureza que estão as várias respostas.

"Nós somos poli. E como nós somos poli, nós podemos ter vários deuses, inclusive Jesus, tá? Essa é a nossa vantagem. Porque como nós temos as nossas divindades e a deles, a gente ganha pelo feitiço e pelo milagre" diz Nêgo Bispo a respeito do crescimento de evangélicos e católicos nas comunidades. O mestre diz que isso, dentro da cosmologia politeista que fundamenta o ser quilombola, se torna um ganho para se encontrar saídas para as questões da vida que também seguem o caminho da pluralidade. Em vez de se ter limites, se tem fronteiras, espaços de diálogo que se mostram, por exemplo, na devoção aos santos católicos e na manutenção dos benzimentos, na fé nas plantas.

Os Quilombos reorganizam sua vivência e sobrevivência de acordo com o que se tem. Tocam a terra e transformam raízes, folhas, sementes em potência de expansão da vida, mas também em temperos, porque o bem viver está em dar gosto à caminhada. Assim como a luta pelo território precisa do comprometimento de todas as pessoas da comunidade, a cura também é coletiva e vem de tecnologias herdadas ao longo dos anos, muito antes do marco colonialista do século XIV e XV.

Mas quando falamos em cura, nos remetemos, inclusive, a dor. E ao pensarmos em covid-19, a busca pelo remédio é algo que gera angústia em toda a sociedade que investe tudo para deter um vírus, mas ignora e cultiva o câncer de 500 anos que representa a estrutura racista-colonialista. No entanto, remédio nem sempre é cura, e nunca seremos realmente curados enquanto rejeitarmos essa dor histórica que impacta os corpos-territórios. Para se ter futuro é preciso encontrarmos a cura e essa cura é ancestral.

O futuro é quilombola!

Quilombo é uma proposta civilizatória

"Nossos territórios são o que impede que o agronegócio, a mineração, de se consolidar no campo brasileiro" conta Biko ao lembrar que a luta pela terra quilombola, também é uma luta pela preservação dos biomas. "As comunidades quilombolas e os povos indígenas, são as fronteiras que estão na metade do caminho. Isso impede que o campo brasileiro seja detonado totalmente" completa.

O território, ao ser inerente a garantia da saúde, faz com que as e os quilombolas se tornem a última barreira contra a morte do Cerrado e do Pantanal. Isso é um enfrentamento direto ao crescimento da propriedade privada, é estar no olho do furacão da máquina capitalista do agronegócio e do envenenamento do mundo pelos agrotóxicos. Não é a toa que o Brasil é o maior consumidor desses produtos. Uso que impacta não só as monoculturas locais, mas se espalha pelo solo, pelos lençóis freáticos, impedindo que a diversidade de plantações se fertilizem em tal local. Isso sem falar das mineradoras que alteram o solo, o degradam, assoreiam rios e as hidrelétricas que barram a vitalidade, o alimento fluido, e levam, mais uma vez, o capital recebido para fora da região.

Desenvolvimento, que des-envolve, não combina com a sustentabilidade promovida pelos povos tradicionais que envolve e promove a longevidade da terra. São as guardiãs e os guardiões que impedem o desastre e nos possibilita acesso ao mínimo de qualidade de vida em termos de ar, água e alimento. Isso porque são nos territórios quilombolas que nascem e são mantidos os grandes aquíferos e a diversidade de fauna e flora que representa o Brasil. O grande ancestral Cerrado é um desses espaços em que o Quilombo Kalunga, no coração do Brasil, tenta preservar o pulsar da distribuição de água doce para o restante do país.

"Os rios não nascem na avenida paulista, não nascem em Copacabana, não nascem nos centros, não nascem no Leblon. Os rios nascem nos territórios. As cabeceiras dos rios estão nos nossos territórios. E só existem os rios porque a forma do nosso povo trabalhar e de lidar com a terra é que fez com que essa biodiversidade, com que essa riqueza, continuasse de pé", ressalta Biko.

"O desafio vai ser pós-pandemia também. As mãos gananciosas na recuperação da economia, vem para cima dos recursos naturais, então a gente teme muito o que vem pela frente", diz Biko preocupado com a possibilidade de maior incidência de violência para com as comunidades e as lideranças.

O saber orgânico que valoriza o ser, como afirma o mestre Nêgo Bispo, acontece junto a terra e seus seres, em que a morte de um impacta o equilíbrio cosmológico. No entanto, é importante refletir sobre outra forma de lidar com a ideia de riqueza para além da noção de acúmulo que valoriza o egoísmo do ter. "O Cerrado é rico, o Cerrado é milionário. Se você for nesses campos aí, nesses cerrados, nessas lagoas, nessas flor agora, é riquíssimo" conta Dona Flor, quilombola do Povoado do Moinho, Goiás, ao início do documentário Sertão Velho Cerrado (2018).

"Acreditamos que o nosso povo tem que enriquecer e o nosso povo enriquecendo, enriquece a comunidade" diz o mestre em contraposição a lógica de economia eurocolonizadora que acredita que o país tem que enriquecer primeiro para depois enriquecer o povo. A riqueza é o bem viver, é poder "ser sem medo de ser", é viver com dignidade e em reciprocidade com os seres. É poder tomar cachaça com os amigos, bater papo no fim de tarde, plantar sua roça e estar em paz. "Não preciso do muito, mas do suficiente" conta Joaquin Wilson, raizeiro do Quilombo povoado do Moinho, Goiás.

O Mestre também reitera o seu agir no mundo e diz "nos enquanto quilombola, vocês enquanto favela, os indígenas enquanto aldeia, nós não somos povos de periferia coisa nenhuma, nós somos povos contra-colonialistas, somos civilizações contra-colonialistas, nós somos diferentes, e nós não queremos misturar, nós não queremos confluir, porque não dá pra confluir se nós somos outra coisa. Contra-colonialista não dá pra confluir com quem tem ódio". E ressalta, "somos uma civilização, sem periferia, porque somos uma civilização confluente, que compartilha" diferente da civilização colonialista que impõe sua influência, é mono, única, se movimenta a partir da onipotência, onipresença e onisciência.

"Esse lugar chamado Brasil, não pode cosmologicamente, nem cientificamente, nem culturalmente, nem socialmente ser um lugar de um único povo. Aqui é um lugar de vários povos. E assim tem que ser e assim será sempre, porque cosmologicamente não funciona de outro jeito" completa o mestre Nêgo Bispo, quilombola da comunidade de Saco-Curtume, Piauí. "Ser quilombola é ser livre, de pensamento, das cercas que separam os nossos futuros. É estar pronto para recomeçar e construir tudo. Sempre olhando o passado, mas projetando o futuro" finaliza Biko.

Nota da autora: Agradeço imensamente a cada possibilidade de escuta durante o processo da matéria. Deixo também minha gratidão a quem não está citado no texto, mas que foi importante para sua construção como foi Jeronilson Quirino, Quilombo Kalunga, e Nailde Rodrigues, Quilombo de Pombal, ambos de Goiás.

Leia a matéria completa em: https://www.brasis.org/centro-oeste

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