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'Quentura', a poesia arrasadora

OESP, Caderno 2, p. C6
Autor: Ignácio de Loyola Brandão
14 de Set de 2018

Os bem-pensantes, bons de cabeça e de intenções, que olham honestamente para o Brasil, se assustaram - para não dizer se apavoraram - com a manchete deste jornal no final da semana, revelando que uma rodovia pretende cortar o Amazonas ao meio. Segundo Britaldo Soares, especialista em modelagem ambiental de mudanças no uso da terra, engenheiro metalúrgico pela UFMG, e que tem como lema de vida "olhar para a sustentabilidade como razão de ser", essa estrada quando pavimentada vai cortar a Amazônia em dois grandes blocos de floresta, com enormes possibilidades de estimular o desmatamento desenfreado - equivalente a uma Alemanha, me pareceu -, trazendo gente de regiões que já não têm mais o que derrubar, e de transformar tudo em pastagens. Seria um caminho utilizado apenas pelos que muito precisam ou pelos inteiramente doidos, comentam os conhecedores. "Pode causar um efeito em cadeia e atingir até Roraima. É uma bomba, um grande risco."

Dois dias depois, eu estava em uma poltrona do Cinesesc quando recebi outra pancada na cabeça, melhor, na mente. O excelente documentário média-metragem Quentura, de Mari Corrêa, me fez reviver toda a angústia que sofri e transmiti nos anos em que passei escrevendo Não Verás País Nenhum, de meus romances mais bem-sucedidos do ponto de vista de crítica e de leitura. O filme de Mari Corrêa é um impacto só. Tudo aquilo que exagerei e exacerbei no meu livro, tudo o que vem sendo mostrado e discutido pelos cientistas, de repente, estava ali na nossa frente, colocado na maneira como o tempo vem mudando e pode alterar o modo de vida e a sobrevivência do norte do Amazonas. Pior, a existência da floresta está em jogo. Nenhuma frase ou cena sensacionalista. A câmera mostra imagens do cotidiano indígena afetado pelas mudanças do clima.

Quentura é poético e violento, sem dar um único tiro, único grito, sem slogan, demagogia, fake news. Pura realidade, ele nos comove e nos indigna, ao mostrar como a nossa inconsciência e a paralisia de vários governos, presidentes, ministros, esta canalha que há anos estamos elegendo e que destrói uma floresta e várias comunidades e ameaça a sobrevivência indígena. Ou a nossa. O que parece ser a intenção do agronegócio e dos gananciosos que se expandem. O filme de Mari, em apenas 36 minutos, é daqueles que nos incomodam com sensibilidade, ao mostrar grupos de mulheres tenazes trabalhando na lavoura amazônica, revelando a força de um povo que, com seus hábitos, costumes, suas crenças e sua maneira de viver secular nos diz: estamos conservando a floresta para que todos sobrevivam. Um filme tocante, nada panfletário, acusador, nada dessas manifestações de Avenida Paulista, pagas e conduzidas. A arte serve também para isso, para documentar, mostrando como a destruição avança e nos ameaça.

Filme comovente e estridente de uma mulher lúcida, mostrando a força das mulheres. Delas depende a subsistência das comunidades. Plantam mandioca, abacaxi, pimentas, palmeiras, coqueiros, fazem farinha, goma, tapioca. Calçadas com havaianas caminham por dentro da floresta, que parece se render a elas. "Nascemos, crescemos, vivemos, aqui vamos morrer", dizem. O filme é falado nas linguagens regionais que são diferentes quanto mais próximas do Peru ou da Venezuela, e assim por diante. Língua hermética para nós, mas suave e consistente para elas. Conseguimos perceber alguns termos "nossos"( nossos? por que nossos?) como verão, mandioca, abacaxi.

Mas o que vem explícito é a questão do clima, cada vez mais quente, mudando o calendário de séculos, na regência dos plantios e na organização de uma agricultura em que tudo se sabia pela lua, pelo vento, pelo sol, ou nuvens, da chegada da chuva, do inverno, do verão, enfim a máquina imutável que regia tudo, e agora não existe mais. Mudança de clima, desmatamento, queimadas, fumaça durante meses, trazendo doenças, problemas de respiração, gafanhotos, larvas, pragas. Essas mulheres, em depoimentos simples e arrasadores, testemunham: "Estamos aqui para defender a floresta, porque sem ela não sobreviveremos, nem os humanos viverão". Um filme sobre heroísmo, determinação, afeto, ternura, humor, canções. Encantou-me ver em uma cena duas mulheres comendo com gosto uma fruta com imensa felicidade e notando que ela tinha o sabor de antigos tempos. Tudo aquilo que distopias imaginaram, Mari Corrêa traz como realidade em Quentura.

OESP, 14/09/2018, Caderno 2, p. C6

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