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Quem são vocês?

CB, Brasil, p. 8
12 de Jan de 2004

Quem são vocês?
Vai longe o tempo em que só trabalhador rural participava do MST Hoje, muita gente acuada pela falta de opção nas cidades monta barraco em busca de um lote. Existem, atualmente, 2.794 acampamentos em todo o país

Ullisses Campbell

A manicure Eliana Pereira Monteiro, 34 anos, cansou de e bater perna na cidade de Presidente Epitácio, oeste paulista, onde e morou até dezembro. Acordava todos os dias às oito da manhã e, de porta em porta, perguntava se alguém queria fazer as unhas. A jornada diária rendia pouco. Ao lado da casa alugada em que Eliana morava, há uma vizinha que mantém um barracão no acampamento Jair Ribeiro, o maior administrado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) no Pontal do Paranapanema. No final do ano passado, a tal vizinha convenceu a manicure a dar uma passada por lá. "Fui atrás de clientes e acabei montando um barracão. Agora, sou sem-terra e quero um lote também", avisa.
Foi-se o tempo em que sob a lona dos acampamentos do MST havia apenas trabalhadores rurais. Hoje, há motoristas, comerciantes, professores, manicures, como Eliana, e engraxate, uma infinidade de gente urbana. A maioria está desempregada e sempre morou na cidade. "O movimento cadastra todo mundo que quer terra para trabalhar no campo. Cabe ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) avaliar se a pessoa tem ou não o perfil agrário", ressalta o coordenador do MST no Pontal, Valmir Rodrigues Chaves, o Bill.
Na quinta-feira passada, Eliana chegou com o marido, Ademir de Oliveira, 31 anos, no acampamento Jair Ribeiro. No mesmo dia, ergueu um barracão de três compartimentos. Teve ajuda dos vizinhos, que foram dar as boas-vindas e acabaram metendo a mão na massa também. "Aqui um ajuda o outro", conta o vendedor Roberto da Costa, 29 anos, sem-terra, que ficou encarregado de martelar os pregos que sustentam as tábuas da parede.
No final da tarde, o barraco estava de pé. No dia seguinte, Eliana na e Ademir ficaram de levar os móveis. 0 plano dela é oferecer seus serviços de manicure aos sem-terra. Já Ademir, marceneiro, vai trabalhar voluntariamente para ajudar os sem-terra que quiserem serem substituir o barraco de lona por um de madeira. Para ganhar dinheiro, se dispôs a ir a uma roça próxima colher feijão. "Ouvi falar que tem um fazendeiro japonês que paga R$ 13 por dia para a gente trabalhar", conta.
Mascote falante
0 agricultor João Luiz da Silva, 65 anos, mora sob a lona no Jair Ribeiro há nove meses. Pernambucano de Jaboatão, é um homem envelhecido pelo trabalho duro. Chegou a Presidente Epitácio há seis anos com a família toda, mulher e três filhos. Como a tão sonhada terra para plantar ainda não veio, os filhos foram saindo de casa. Um a um. Hoje, trabalham na cidade como engraxate, empregada doméstica e serralheiro. "Somos apenas eu e minha mulher." (Sônia Maria da Silva, 62 anos).
0 agricultor reclama da espera. Argumenta que está velho demais e cansado para começar uma vida de trabalhador rural. Queixa-se ainda do abandono em que o acampamento está mergulhado. "Mas a gente não tem outra saída. Tem?", questiona. 0 barraco dele é um dos primeiros da estrada.
A monotonia do cotidiano de João no acampamento Jair Ribeiro, segundo ele conta, foi quebrada há três meses, quando um caminhão de cargas foi apreendido pelo Ibama com carregamento ilegal de animais silvestres. Na hora de fazer a apreensão, os técnicos do Ibama deixaram cair em frente a sua barraca uma gaiola com filhotes de papagaio. Vários deles fugiram. João capturou um pra si e escondeu em casa. No dia seguinte, um fiscal foi até lá buscar a ave de volta. O sem-terra implorou para o animal ficar com ele. Chegou a chorar e acabou convencendo o funcionário.
Hoje, João e o papagaio, que ganhou o nome de Eurico, não se separam. A ave chama o dono pelo nome e canta até gritos de guerras do MST. A paixão do velho por Eurico é tão forte que ele chega a dizer que, se para ganhar um lote ele tiver entregar o papagaio, ele prefere continuar sem-terra. "Outro dia, um coordenador do movimento disse que manter animal silvestre em casa é crime. Respondi a ele: e ocupar fazendas, saquear caminhões e matar o gado dos outros é o quê?", relata rindo.

memória
O dia em que o medo nasceu
Morar provisoriamente em acampamento dá medo. Os sem-terra dizem que existe o receio de que, a qualquer momento, eles sejam alvo de violência. A origem desse medo tem data. No dia 17 de abril de 1996, um grupo de cerca de 1.500 agricultores sem-terra estava acampada na fazenda Macaxeira, no município de Eldorado de Carajás, sul do Pará.
Como forma de protesto, bloquearam a rodovia PA-150, que liga Belém a Parauapebas. A idéia era caminhar até a capital do estado para pressionar o governo a desapropriar a área. Vencidos pelo cansaço, fecharam a estrada e exigiram 50 ônibus para o transporte das famílias. Como resposta, foram cercados por dois contingentes da Polícia Militar - um de Parauapebas e outro de Marabá.
A PM tinha ordem do então governador Almir Gabriel (PSDB) para desobstruir o caminho. Sob o comando do coronel Mário Pantoja, a tropa que saiu de Marabá abriu fogo contra os sem-terra. Dezenove agricultores foram mortos. No local do massacre, foi construído um pequeno monumento projetado por Oscar Niemeyer. A obra foi destruída no ano seguinte. 0 arquiteto fez outra idêntica, que está na sede do MST no Pontal do Paranapanema.
Em junho de 2002, a justiça do Pará julgou e absolveu 144 dos 146 militares acusados de matar trabalhadores rurais. Foram condenados o coronel Mário Pantoja (228 anos de prisão) e o tenente-coronel José Maria Pereira de Oliveira (158 anos). Os condenados recorreram da sentença e aguardam em liberdade o julgamento dos recursos. O caso está sendo examinado até hoje pela Comissão Internacional de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). (UC)

Um pé no asfalto outro na terra
0 acampamento Jair Ribeiro tem 2.300 famílias e estende-se pelos dois lados de oito quilômetros da rodovia SPV-35, que liga Presidente Epitácio a Teodoro Sampaio. De acordo com dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), apenas 1.380 famílias de lá estão cadastradas para receber lotes na região.
Apesar da enorme quantidade de gente, o acampamento começou o ano com 70% dos barracos fechados. Segundo o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Natalino Donizete Vianna, a maioria das famílias foi passar as festas de fim de ano na cidade e ainda não voltou. "Esse acampamento foi organizado pelo José Rainha. Como ele ficou preso por seis meses, as ações do movimento ficaram fracas por aqui. Mas estamos esperando ordem para começar as ocupações", avisa.
O MST permite que famílias com moradia na cidade levante um barracão nos acampamentos para pleitear um lote do governo. Segundo Natalino, essa é a única maneira de garantir a terra. A família que fecha o barracão no assentamento para passar dias fora tem de pagar R$ 6 ao movimento. "Esse dinheiro é revertido em cestas básicas para as famílias que ficam", conta o sem-terra.
Enquanto esperam pela terra, os agricultores que permanecem no acampamento vão se virando como podem para sobreviver. João Pedro da Silva, 52 anos, montou um pequeno comércio no Jair Ribeiro. Vende uma lata de óleo a R$ 2,20, um quilo de feijão a R$ 2,50 e uma dúzia de ovos a R$ 2,50, preços equivalentes a de supermercados de grandes cidades. "Não vendo fiado porque os sem-terra daqui não pagam', avisa. João, que administra as vendas com a mulher, Cleonice dos Santos, 42. "A gente deve R$ 400 para os fornecedores", diz ela.
0 sem-terra Elias Sodré, 30 anos, descobriu que sua moto Honda, apesar de velha, é uma fonte de renda. Passou a fazer serviço de transporte levando passageiros na garupa. Nas cidades do interior, essa atividade é conhecida como moto-táxi. Para levar um pessoa do acampamento à sede de Presidente Epitácio, ele cobra R$ 3.O trajeto soma dez quilômetros. 0 percurso até Teodoro Sampaio, a 70 quilômetros do acampamento, custa R$ 20. "Há dias que faço seis viagens. Tá dando um bom dinheirinho", conta o sem-terra. (UC)

Sob a lona
Evolução dos acampamentos na zona rural, ano a ano, de 1996 a 2003
1996 – 250 / 1997 – 281 / 1998 – 388 / 1999 – 538 / 2000 – 555

CB, 12/01/2004, Brasil, p. 8

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