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Que engoliu a mata

CB, Cidades, p.25-26
08 de Ago de 2004

Que engoliu a mata
A onça comeu o lobo que comeu o rato que matou o homem

Larissa Meire
Da equipe do Correio

Então o homem chegou ao cerrado e desandou a destruí-lo. A derrubada da vegetação do Planalto Central não é fato recente. Começou há quase cinco décadas, quando os candangos vieram construir a nova capital. A ação foi rápida, bem mais veloz do que noutros ecossistemas brasileiros. Enquanto a Mata Atlântica demorou cinco séculos para chegar a 7% da sua área original, em cerca de 50 anos o cerrado está reduzido em quase 60%.
As conseqüências são gravíssimas e se espalham pelas seis paisagens típicas da região - a mata de galeria, o cerrado arbóreo, o campo sujo, o campo rupestre, o campo limpo e a vereda.
O cerrado arbóreo é o tipo mais sacrificado do bioma, com 70% de devastação só no Distrito Federal. Nas matas de galeria, vivem mais de 75% da fauna e 30% da flora, além de árvores com até 30m de altura. Formado por capim baixo, o campo sujo protege as matas de galeria da ação do fogo. O campo limpo reserva a beleza das flores.
A destruição desses cenários implica alteração climática, modifica a cadeia ecológica e provoca danos ainda reversíveis. O aparecimento da hantavirose no Distrito Federal é o primeiro alerta de que o homem invadiu, sem responsabilidade, o segundo maior bioma do Brasil, que apresenta uma das maiores biodiversidades do Planeta.
"Tudo na natureza faz parte de um ciclo", ensina a engenheira florestal e coordenadora da Pós-Graduação em Ciências Florestais da Universidade de Brasília (UnB), Jeanine Felfili. "Todos os elementos tem um papel fundamental para o funcionamento perfeito do ecossistema. A base está na vegetação. A hantavirose é um sinal claro desse desequilíbrio".
Hoje, cerca de 20% das espécies originais, entre arnica, ipê e cerejeira, estão cada vez mais escassas ou já se perderam no desmatamento. 0 sumiço das plantas nativas e a ocupação desordenada do solo restringiram o habitat de animais.
Sem predadores suficientes e motivados por alteração no clima, espécies como os ratos se proliferam. A invasão do espaço humano se torna a única alternativa de fonte de alimento. Na forma de surto, a hantavirose insere o homem no ciclo da cadeia ecológica. E o mal pode ser apenas o primeiro dos avisos da natureza.
A seguir, a destruição de duas importantes cadeias alimentares e por que todos os caminhos do desamamento levam ao rato.

Expulso de casa
Há quase cinco décadas, o cerrado é desmatado pelo avanço da ocupação humana. A invasão do habitat natural de animais do ecossistema afugenta bichos como o lobo-guará, coruja e cobra - predadores naturais do rato silvestre.

Cadeia da destruição
Pelo menos 200 espécies do cerrado têm valor econômico para as indústrias farmacêutica e de cosmético. Entretanto, o apelo financeiro não freou a transformação da vegetação na moderna cidade criada por Oscar Niemeyer e Lucio Costa. 0 baixo preço da terra, na década de 50, motivou o desenvolvimento de técnicas para adaptar a agricultura ao solo da região.
"O cerrado nunca foi considerado um ecossistema bonito. As pessoas pensavam: para que preservar um lugar sem vida, que pega fogo", lembra o professor do Departamento de Ecologia da UnB e doutor em Ecologia pela Universidade de Campinas (Unicamp), Raimundo Henriques.
O bioma que ocupa 25% do território nacional é único em quase 50% de suas espécies. Ou seja, parte considerável da vegetação do cerrado tem ocorrência restrita a essa região. Relatório da Universidade de Oxford, Londres, aponta que o resto das plantas nativas pode desaparecer do Planalto Central até 2015, pois a taxa de ocupação da agropecuária continua a expandir 3% ao ano. Para especialistas, a situação é agravada também pelo baixo índice de preservação do ecossistema, em relação a outros biomas.
O percentual de conservação do cerrado é de 1,5%-na floresta amazônica é de 3,8% e na Mata Atlântica, o índice é de 7%. A restrição do espaço com vegetação intacta espantou também os pássaros. "Hoje, esses predadores de insetos, vermes, roedores e alguns vertebrados vivem confinados a pequenas áreas", explica o biólogo e professor de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília, Manuel Cláudio da Silva Júnior. "Como a disputa maior entre os bichos, é inevitável que a população diminua, como é o caso do gavião-carcará."

O Cerrado esquentou,secou, entro num ciclo doente. Mas ainda existe uma saída
O Ecossistema que agoniza

Uma região fria e úmida. Era o cerrado há 40 mil anos. A revelação integra pesquisa da palinóloga Léia Laboreaux, professora de Geologia e coordenadora de pesquisa na UnB sobre paliclima. Ela e seus alunos estudam o passado do clima no Brasil Central.
Dados históricos mostram que chovia muito, a temperatura era quatro graus mais baixa do que hoje e o período de seca não ultrapassava a média de dois meses.
Da pré-história aos anos 50, o cerrado esquentou e secou. A partir daí, encheu de gente e se esvaziou de animais e plantas.
As alterações climáticas são por um lado, naturais, mas por outro, decorrem da fúria do desmatamento. Quando a chuva bate na vegetação, em vez de ir direto pro chão cai de forma amaciada e penetra no solo rumo ao lençol freático.
"Sem as plantas, ela bate direto no chão, arranca a terra, vira enxurrada e não alcança o lençol freático", esclarece a palinóloga. "O lençol freático fica prejudicado, o que resulta em baixas umidades".
Hoje, 40% do rebanho bovino brasileiro é criado no cerrado. Arbustos e árvores retorcidas deram lugar a pastagens de braquiárias e plantação de soja, responsáveis por 6% da ocupação do bioma.
A substituição da vegetação nativa pelos capins facilitou a multiplicação dos roedores. O pasto serve de colônia para os ratos, que se alimentam dos grãos e das sementes.
É um ciclo doente. O desmatamento altera o clima que modifica a rotina dos bichos, da onça aos ratos. De janeiro a maio deste ano, choveu 1.204 m3, com um aumento de quase 50% do índice pluviométrico no região em relação ao mesmo período de 2003.
"Com a chuva, aumentou a oferta de comida e os ratos tiveram mais facilidade de se reproduzir. Eles sempre existiram, mas com o habitat inflado, precisaram buscar comida nas áreas periurbanas", avalia o pesquisador científico do Instituto Adolfo Lutz há 38 anos, Luiz Eloy.
A mudança no tempo ganha um importante aliado no incentivo à procriação do rato: o desaparecimento de espécies predadoras com importante papel na cadeia alimentar. É o caso da onça.

A debandada da bicharada

Onça
Há três tipos de onça no Brasil. Além da jaguatirica e a parda (também conhecida como suçuarana), a pintada chama a atenção por ser a mais bonita. Com altura média de 97cm,1,20m de comprimento sem a cauda e 150kg, a onça-pintada é o maior predador natural terrestre do Brasil e o maior felino do continente americano.
Ocupa o topo da cadeia alimentar, ou seja, não pode servir de alimento para outro animal. De hábitos solitários, a espécie só fica junto - machos e fêmeas - até o nascimento da cria. A pintada é altamente exigente em relação à qualidade de seu habitat e depende de grandes espaços para sobreviver. No cerrado, estão confinadas às estreitas áreas de preservação, o que tem tornado freqüente o aparecimento dos felinos em perímetro urbano. Para caçar, se aproxima com cuidado da vítima e lhe fratura o pescoço. Entre as presas da onça-pintada, está o lobo-guará.

O Lobo-Guará
Ele mais parece uma raposa, com pernas longas e finas. Presente na lista de espécies em extinção, tem comportamento tranqüilo e anda em casal. Um macho e uma fêmea precisam de 80 mil hectares para se reproduzir. O Parque Nacional de Brasília, por exemplo, tem 30 mil hectares de extensão. Pouco agressivo, ele é capaz de virar uma fera para defender seus filhotes. Só existe uma espécie no Brasil. Um provável sumiço do animal pode causar complicados desequilíbrios ecológicos. Eles são dispersores de plantas nativas da região e adoram os frutos da lobeira, árvore típica de cerrado. Para minimizar os impactos causados também pela caça do bicho, foi criado, em 1990, o Comitê de Manejo do Lobo-Guará, que desenvolve projeto de reprodução do animal em cativeiro. O lobo-guará se alimenta também de vertebrados e ratos.

E agora
O cerrado agoniza com o desmatamento e o brasiliense sente-se sitiado pelo rato da hantavirose. 0 que fazer?
Alguns atacam o Bolomys lasiurus, espécie de rato silvestre, com estilingues, ratoeiras e até queimadas. Especialistas alertam ser em vão. "Os ratos silvestres costumam viverem tocas subterrâneas e não morrem com o fogo. Ficam mais motivados a se deslocar para o habitat do homem': esclarece a professora de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília (UnB), Jeanine Felfili.

Para o ecologista Raimundo Henriques, o rato silvestre é importante no ecossistema, como dispersor de plantas nativas e controlador de pragas. O doutor em epidemiologia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Luciano Toledo afirma que as novas doenças, que aparecem e matam "numa velocidade impressionante, têm origem na transformação das áreas rurais em urbanas".
A situação ainda não é irreversível. 'Basta plantar de novo, conscientizar sobre a importância dos ecossistemas. Tenho unia visão otimista', define a palinóloga e professora de Geologia da UnB, Léia Laboreaux.

CB, 08/08/2004, Cidades, p. 25-26

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