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Quase brancos, quase pretos

Valor Econômico, EU& Fim de Semana, p. 18-19
15 de Ago de 2014

Quase brancos, quase pretos

Por Bruno Yutaka Saito
De São Paulo

"Contingente Yanomami" (2003), de Adriana Varejão, artista que inspirou a exposição "Histórias Mestiças"

Num momento em que exposições "blockbusters" levam um clima de parque de diversões a espaços culturais de São Paulo, "Histórias Mestiças" (a partir deste sábado no Instituto Tomie Ohtake) chega ao cenário com vocação de experimento social informal. Afinal, se a mostra anterior, "Yayoi Kusama - Obsessão Infinita", foi responsável pela maior visitação do local (522.136 pessoas) ao estimular o público a tirar alegres "selfies" com bolinhas coloridas, desta vez questões duras serão lançadas aos visitantes. Histórias de racismo, exclusão social e violência - a própria história do Brasil enfim -, nem sempre nos tradicionais tons coloridos que agradam o senso comum, são temas que entram na exposição. Quem se verá refletido e quantos vão, invertendo a expressão popular, oferecer a ferida ao dedo?
"Esta é uma exposição política", afirma Lilia Schwarcz, que divide a curadoria com Adriano Pedrosa. "É uma exposição que tem tudo a ver com o Brasil de hoje", completa Ricardo Ohtake, diretor do instituto. "Histórias Mestiças" busca promover um contato íntimo entre passado e presente, arte e documento, para colocar em chave crítica os processos de mestiçagem que deram forma à noção de nação brasileira. Diferentemente de exposições de teor pop, esta é de consumo mais lento, pois desafios aos confortáveis estereótipos que povoam o imaginário brasileiro serão lançados.
Cerca de 400 obras foram reunidas, provenientes de diferentes países e períodos, do século XVI aos dias atuais. Peças como urnas marajoaras, tangas ameríndias, máscaras e instrumentos de castigo para escravos dividem salas com obras de artistas acadêmicos, como Benedito Calixto e Pedro Américo, que reproduziam o status quo da dominação branca, passando pelo modernismo de Tarsila do Amaral e por obras realizadas especialmente para a exposição, de nomes como Adriana Varejão, Beatriz Milhazes e Luiz Zerbini, provocados a causar mais "fricções".
Adriana, artista que tem uma obra calcada na mestiçagem, serviu como ponto de partida para a exposição. Tendo trabalhado anteriormente com Lilia e Pedrosa, ela notou que a dupla estuda temas semelhantes, "tinha tudo a ver", e fez as devidas apresentações. Historiadora e antropóloga, Lilia há anos vem estudando o tema em artigos, livros e exposições. Curador independente, Pedrosa costuma questionar noções eurocêntricas no mundo da arte - um Sul ampliado, o antes chamado Terceiro Mundo, é seu terreno. Uma de suas primeiras exposições de repercussão foi a Bienal de São Paulo de 1998, quando trabalhou como curador-adjunto de Paulo Herkenhoff. Foi a "Bienal da antropofagia", que já discutia questões de identidade nacional.
"Na arte, a visão canônica é a visão europeia. 'Histórias Mestiças' é uma tentativa de dizer que é preciso mostrar outras perspectivas, outras interpretações", diz Lilia. Assim, a exposição não está falando da mestiçagem sob o ponto de vista da "democracia racial", do "mito das três raças", tão cultivado quando negado, mas propagado com certo orgulho até hoje (vide a cerimônia de abertura da recente Copa do Mundo). O índio, o branco e o negro não são categorias estanques, divididas em salas.
São sete núcleos que têm o cuidado de contornar noções ocidentais de relação com o mundo: "Máscaras e Retratos", "Trilhas e Mapas" (faz parte deste segmento um mapa elaborado pelo historiador Alberto da Costa e Silva mostrando como era o tráfico de escravos dentro do continente africano), "Ritos e Religiões", "Tramas e Grafismos", "Emblemas Nacionais e Cosmologias", "Trabalho" e "Encontros e Desencontros". "Nós, ocidentais, produzimos história, ciência, filosofia etc. Eles produzem o quê? Mitos, crenças. A nossa compreensão já é hierarquizada", afirma Lilia.
"Libertação dos Escravos" (1889), de Pedro Américo, famosa representação ideológica da abolição como presente de figuras angelicais brancas a negros passivos, está próxima de trabalhos como "A Primeira Missa" (2014), de Luiz Zerbini, mostrando que a liberdade não foi algo tão simples, e não veio sem dor. Em outra sala, tecidos africanos com grafismos dividem espaço com registros de grafismos corporais e obras do neoconcretismo.
A exposição parte da ideia de que a mestiçagem teve como base dois traumas fundamentais: a invasão (e não descobrimento) do país pelos portugueses e o fato de que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão no Ocidente. A própria curadora lembra que tais conclusões não são novas. A noção de que o país nasce a partir do sofrimento e da dor já estava em estudiosos como Darcy Ribeiro, por exemplo. "Esse mosaico não é feito de mera convivência pacífica, e isso persiste até hoje, nos dados de inclusão e exclusão social e, sobretudo, na maneira como naturalizamos a exclusão", diz Lilia. Pesquisa do IBGE divulgada no começo do ano, por exemplo, mostra que, em 2013, trabalhadores negros ou pardos ganhavam, em média, pouco mais da metade (57,4%) do rendimento recebido por trabalhadores brancos.
"Nesse contexto, a antropofagia de Oswald de Andrade (1928) é compreendida como um projeto incompleto", escreve Pedrosa em texto para a exposição, "e pode ser repotencializada e ela mesma canibalizada como ferramenta para devoração de histórias ameríndias e africanas". "Aprender com o ameríndio e o africano implica desaprender histórias eurocêntricas." Além do catálogo, a exposição terá como desdobramento uma antologia de textos que forneceram reflexões para os curadores. Muitos desses autores, hoje, causam ojeriza, e foram representantes de teorias raciais que apontavam para uma suposta inferioridade de povos mestiços. É o caso do médico e antropólogo Nina Rodrigues (1862- 1906), que defendia códigos penais diferentes para negros e brancos: "O direito é um conceito relativo, e variável com as fases do desenvolvimento social da humanidade".
"Identidades nacionais são construções sociais", lembra Lilia, professora titular da USP. Por isso mesmo, na arte oficial do Império os escravos são esquecidos. "O visitante vai perceber que éramos retratados como bons indígenas. É uma nação construída por bravos", diz. No decorrer da história, a mestiçagem já foi veneno e antídoto. No século XIX, época dos determinismos raciais, o Brasil era visto, por muitos estudiosos, como um país sem futuro, condenado, devido à população mestiça. Nos anos 30, surge outra construção social quando a mestiçagem é entendida como o exemplo que o Brasil daria ao mundo. É o momento de "Casa-Grande & Senzala" (1933), de Gilberto Freyre, em que a sociedade brasileira queria se imaginar de outra maneira, e que manifestações mestiças como capoeira, samba e candomblé saem da ilegalidade para se tornar símbolos brasileiros, em que a feijoada é exaltada por Getúlio Vargas. "Esse é também um silenciamento. Produtos e produções que eram sobretudo afro-brasileiras são transformadas em produtos nacionais."
"A ideia de democracia racial é uma imagem que nos fez bem e mostrou uma face importante do país, mas é como as fases da Lua. Ao mesmo tempo que ilumina um lado, obscurece outro", afirma a curadora. "Histórias mestiças são histórias de discriminação e racismo." Para Lilia, o momento é propício para a discussão. "O país está mais crítico. É o país da inclusão, mas também da exclusão, que está batendo índices de desigualdade social a cada ano", diz. Para ela, o Brasil entrou tarde na discussão dos direitos civis: "A discussão sobre cotas raciais está se colocando, ninguém mais deixa de discutir". "O Brasil pratica um racismo silencioso, o preconceito de ter preconceito. Não existem bons racismos." (Bruno Yutaka Saito/Valor Econômico)

"Histórias Mestiças".
Exposição no Instituto Tomie Ohtake - rua Coropés, 88, Pinheiros, SP, tel. (11) 2245-1900. De ter. a dom., das 11h às 20h. Grátis. Até 5/10

Valor Econômico, 15/08/2014, EU& Fim de Semana, p. 18-19

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