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Quadros de uma natureza morta

OESP, Caderno 2, p. D10
Autor: HATOUM, Milton
08 de Jan de 2010

Quadros de uma natureza morta

Milton Hatoum

O rio é a estrada para toda a vida, escreveu Euclides da Cunha, resumindo a importância da imensa rede fluvial para os habitantes da Amazônia. A outra estrada - de barro, cascalho ou asfalto - poderia ser uma via de circulação de pessoas e mercadorias, mas ela não é só isso.

Na Amazônia, a colonização "à gandaia" (a expressão é também de Euclides) passa, hoje, pelas estradas da Transamazônica, pela Cuiabá-Porto Velho e por outras que ligam o centro do Brasil a Santarém e várias cidades do Norte.

Onde há estrada, há progresso? Não na Amazônia, onde uma estrada é o acesso mais fácil para o desmatamento, exploração predatória de madeira, plantação de soja, colocação de pasto. Isso porque a ausência do poder público ou de uma fiscalização eficiente permite a grilagem de áreas imensas e a consequente colonização e exploração à gandaia da floresta.

Pensei nessas estradas e na outra, fluvial e euclidiana, quando vi as fotos do amazonense Lula Sampaio. Na primeira semana de dezembro do ano passado, Lula visitou o município de Manaquiri, à margem do rio com o mesmo nome, a uns 80 quilômetros de Manaus. As imagens captadas pelo olhar do fotógrafo impressionam. O reflexo de escamas de milhares de peixes boiando no rio produz um belo efeito visual: uma extensa superfície prateada e encrespada, como se fosse uma faixa iridescente e ondulante, sem o reflexo de nuvens densas e enormes, as nuvens esculturais do céu do Amazonas. Mas essa beleza é apenas aparente. Quando se observa detidamente as fotos, a beleza revela violência e morte. Peixes asfixiados no rio raso ou na lama. Peixes sem água, uma ironia trágica no Amazonas. As fotografias lembram quadros de uma natureza morta.

A seca recente na Amazônia matou toneladas de peixes no Manaquiri e em tantos outros rios e lagos da região. Lagos que antes não "despraiavam" tornaram-se imensas calotas de lama cobertas por uma colina de peixes mortos. Fazendeiros, pescadores e ribeirinhos não entendem por que a prefeitura desses municípios não resgata milhares de peixes que sobrevivem por alguns dias. Moradores de Manaquiri olhavam perplexos para o rio transformado em cemitério de peixes. Algo semelhante aconteceu nas comunidades do município de Barreirinha. Nos lagos vizinhos à Terra Preta do Limão, cinco toneladas de peixes apodreceram.

Fala-se muito de crescimento sustentável numa região onde a pobreza e a miséria são insustentáveis. Para os moradores de Manaquiri e Terra Preta do Limão, qual terá sido o significado da conferência sobre o clima realizada recentemente em Copenhague? Ou do fiasco da COP-15?

O aquecimento do planeta não é uma ficção, mas o fato é que as grandes secas e enchentes na Amazônia tampouco são novidades. A grande enchente de 1953 inundou vilas, povoados e cidades, inclusive Manaus. Há registros de secas devastadoras na década de 1930. Mas nos últimos anos a variação incomum do nível das águas do Amazonas e de seus afluentes tem sido frequente, com consequências danosas à população ribeirinha.

É importante que os governantes do mundo discutam formas de evitar catástrofes climáticas. Mas COP-15 é apenas uma sigla abstrata e inútil para milhares de habitantes da Amazônia.

Na mesma semana em que Lula Sampaio fotografava cemitérios de peixes em Manaquiri, a chuva inundava várias cidades do sul e do sudeste, causando sofrimento e dezenas de mortes. Em Manaus, a fumaça proveniente de queimadas da floresta transformou o céu da cidade num cenário estranho, sombrio, meio apocalíptico.

Será esse o cenário do planeta num futuro próximo?

OESP, 08/01/2010, Caderno 2, p. D10

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