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A pujança do agrobusiness é só uma parte da história. Falta contabilizar os prejuízos socioambientais

Carta Capital
Autor: RODRIGUES, Roberto
01 de Set de 2004

A pujança do agrobusiness é só uma parte da história. Falta contabilizar os prejuízos socioambientais

Por Amália Safatle e Flavia Pardini

O agronegócio responde por um terço do PIB, 42% das exportações e 37% dos empregos. Com clima privilegiado, solo fértil, disponibilidade de água, rica biodiversidade e mão-de-obra qualificada, o País é capaz de colher até duas safras anuais de grãos. Nenhuma nação teve crescimento tão expressivo na agropecuária quanto o Brasil nos últimos anos. Em 2003, gerou superávit comercial de US$ 25,8 bilhões.
As palavras são do Ministério da Agricultura e correspondem aos fatos. Essa é, no entanto, apenas a metade da história. Há uma série de questões pouco debatidas: Como se distribui a riqueza gerada no campo? Que impactos o agronegócio causa na sociedade, na forma de desemprego, concentração de renda e poder, contaminação da água e do solo (já que promove o uso intensivo de agrotóxicos) e destruição de biomas? Quanto tempo essa bonança vai durar, tendo em vista a exaustão dos recursos naturais? O descuido socioambiental vai servir de argumento para a criação de barreiras não-tarifárias, como a que vivemos com a China na questão da soja contaminada?
O balanço de perdas e ganhos do agronegócio é negativo à sociedade brasileira principalmente porque seu modelo reforça a estrutura de dominação das elites, diz Guilherme Delgado, economista do Ipea, órgão ligado ao Ministério do Planejamento:
- O agronegócio brasileiro mistura a modernidade técnica com o atraso das relações sociais. A sociedade brasileira está acostumada a crescer sem assimilar o pessoal de baixo.
A modernização da atividade agrícola, necessária para compensar a perda de rentabilidade com a queda nos preços das commodities agrícolas, elevou a produtividade das principais monocultoras exportadoras brasileiras. A tal ponto que autoridades norte-americanas argumentam que o Brasil não pode ser mais considerado nação em desenvolvimento nas negociações comerciais, uma vez que seu agronegócio, com máquinas agrícolas munidas de computador de bordo, é de "Primeiro Mundo". O resto do País continua afundado no "Terceiro Mundo", com 3,6 milhões de famílias rurais em situação de extrema pobreza, vivendo com menos de US$ 1 per capita ao dia.
A agricultura de grande escala gera pouco emprego e causa um êxodo rural que os centros urbanos não são capazes de absorver com dignidade. No estudo Transformações Tecnológicas e a Força de Trabalho da Agricultura Brasileira, pesquisadores da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e da Unicamp, entre os quais José Graziano da Silva, mostram que na década de 90 houve uma diminuição de 21,5% na demanda de força de trabalho agrícola em 30 culturas, sendo 21% na de grãos. Escrevem os autores:
- Se a tecnologia mais moderna utilizada hoje fosse disseminada para todas as regiões produtoras do País, a demanda da força de trabalho agrícola sofreria redução de até 70%.
O agronegócio não é solução, é parte do problema, pois resolve a vulnerabilidade externa do País, aumentando a interna, na opinião de Delgado. Para ele, o boom agrícola recente é o relançamento da estratégia que o País praticou nos anos 80, durante a primeira grande crise do balanço de pagamentos brasileiro. As exportações dos complexos agrícolas e agroindustriais foram priorizadas como forma de gerar elevados saldos comerciais e tirar o Brasil da crise de liquidez criada com o endividamento da década anterior.
Essa estratégia só foi abandonada no governo FHC, que adotou políticas liberalizantes, privatizando estatais e atraindo investimento e liquidez. O saldo da balança comercial passou a ser negativo e, de 1994 a 2004, o Brasil acumulou um passivo de US$ 185 bilhões, ancorado na crença de que poderia importar tudo, suprido pelo capital internacional.
As crises financeiras internacionais provaram, no entanto, que o idílio não duraria e em 1999 o governo mudou a política macroeconômica, inclusive a cambial, passando a perseguir superávits comerciais com base no agronegócio. O atual governo do PT continua a executar, portanto, a estratégia montada durante o segundo mandato de FHC.
Como o Brasil tem conseguido gerar saldos comerciais suficientes para zerar o déficit em conta corrente e até tornar essa conta superavitária, não há pressão para mudar a situação vigente.
Neste cenário, os rentistas, ou seja, os detentores de títulos da dívida pública brasileira - interna e externa - continuam ganhando. Do outro lado da moeda, a estratégia exportadora não dissemina os benefícios pelo País e deixa a descoberto a base da pirâmide social, mesmo que o crescimento se sustente.
A agricultura exportadora, de larga escala, é extremamente produtiva e eficiente, mas permite a existência de latifúndios improdutivos e especulação fundiária. Os proprietários lucram com o fato de que, devido à boa performance do agronegócio, o preço de suas terras sobe e alimenta o ímpeto especulativo no campo, argumenta Delgado:
- O agronegócio é a associação do grande capital com a grande propriedade: ganham os dois lados.
De acordo com o economista, os mesmos proprietários que têm fazendas-modelo na produção agrícola detêm latifúndios improdutivos, áreas vazias à espera de valorização.
Outros países trataram de solucionar esse problema, abordado pelo economista David Ricardo já no século XIX, com mecanismos de tributação da propriedade territorial ou a distribuição de terras aos camponeses. Mas o Brasil opta por não colocar em prática sua própria lei agrária, que permite taxar mais as terras improdutivas e implementar uma política de desapropriações.
Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 74% das propriedades ocupam 50 milhões de hectares de terras ou 12% das terras agricultáveis do País, enquanto 1,7% das propriedades ocupa 183 milhões de hectares - 43% das terras agricultáveis.
A má distribuição das terras propicia não só poder econômico aos grandes proprietários: exemplo notório é Blairo Maggi, um dos maiores produtores de soja do País, eleito governador de Mato Grosso.
Carlos Lessa, presidente do BNDES, faz um contraponto. "Não acho que a grande empresa agrícola seja um personagem a ser repelido na organização brasileira. Deve, sim, co-existir com a pequena produção organizada e sólida para o mercado." Lessa lembra que onde a grande propriedade vira empresa, a vida urbana renasce e se moderniza, gerando empregos indiretos.
Da mesma opinião compartilha Antônio Márcio Buainain, economista da Unicamp:
- Os dólares recebidos pelos agricultores - pequenos, médios e grandes - movem cidades. Onde há agrobusiness, há dinamização. A única salvação para a agricultura familiar é transformar-se em agronegócio.
O economista Plínio de Arruda Sampaio rebate a argumentação:
- Se a agricultura em larga escala dinamiza a economia local, a familiar dinamiza muito mais, porque o pequeno produtor depende de uma rede capilar e menos concentrada. Sampaio coordenou uma equipe responsável pelo atual Plano Nacional de Reforma Agrária, que previa originalmente o assentamento de um milhão de famílias em quatro anos, com a desapropriação de 30 milhões de hectares.
O plano custaria R$ 24 bilhões ao governo que, diante da determinação em cumprir apertadas metas de superávit primário, recuou e reduziu o número de famílias para 520 mil - objetivo que, pelo andar da carruagem, dificilmente será cumprido.
A preocupação de estudiosos da situação agrária como Sampaio é que, sem um plano ambicioso de repartição da terra, é quase impossível manter as pessoas nas áreas rurais, embora a agricultura apresente o menor custo para a criação de empregos dentre todos os setores econômicos.
O custo unitário de geração de um posto permanente de trabalho nos assentamentos de reforma agrária é de R$ 8.036, enquanto na indústria é de R$ 13.599, nos serviços, R$ 25.622, e, no comércio, R$ 20.311, calcula o professor de pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Sérgio Leite.
Além de gerar mais empregos e de forma mais barata, a agricultura familiar é responsável por boa parte da produção de alimentos no Brasil. Segundo dados da Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário, responde por 67% do feijão consumido no País, 58% da carne suína, 54% do leite e 49% do milho. E ocupa cerca de 70% da mão-de-obra no campo.
Embora o governo federal disponibilize uma linha de crédito especial para os agricultores familiares (o Pronaf) e os recursos estejam crescendo - R$ 7 bilhões para esta safra -, a maioria dos agricultores não é beneficiada. Muitos não têm acesso a banco, não recebem orientação ou não podem mais pegar recursos porque ficaram inadimplentes, afirma Bernardo Mançano, professor de Geografia da Unesp:
- Os grandes existem com tranqüilidade, é preciso garantir a existência dos pequenos.
A título de comparação, só os recursos liberados pelo Banco do Brasil a dez grandes empresas do setor - entre as quais Aracruz, Cargill, Bunge, ADM e Nestlé, de R$ 4,349 bilhões - quase atingiram o montante aplicado à agricultura camponesa no Plano Safra 2003/2004, de R$ 4,5 bilhões. Hoje, a Bunge fatura mais no Brasil que nos EUA, exemplifica John Wilkinson, professor da UFRRJ
Segundo ele, a promoção dos agronegócios nos anos 60 não foi acompanhada por políticas de fortalecimento da agricultura familiar, por meio de terra, crédito e pesquisa. Com isso, foi fadada a desaparecer ou a se transformar em mão-de-obra para as fazendas em processo de modernização.
-Possibilidades inéditas de desenvolvimento no Nordeste e Norte foram desperdiçadas em investimentos multidimensionados porque só se acreditava em projetos de larga escala, diz Wilkinson.
Para Brás Albertini, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo (Fetaesp), a agricultura familiar é inviável em sua forma atual. O volume de recursos disponibilizado pelo governo é razoável, admite, mas os agricultores necessitam de orientação em várias áreas e de auxílio para a comercialização de seus produtos:
- Precisamos de assistência do Estado.
Apesar de manter duas estruturas separadas, uma para o agronegócio no Ministério da Agricultura e outra para a questão fundiária no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o governo mostra iniciativa ao tentar ajudar os pequenos agricultores. O MDA possui uma secretaria dedicada à agricultura familiar e, além do programa de crédito com taxas equalizadas a esses produtores, torna disponível desde a safra passada recursos para aquisição de alimentos da agricultura familiar.
O programa dá segurança e garantia de comercialização da produção desses agricultores, diz Francisco Menezes, presidente do Conselho de Segurança Alimentar (Consea):
- A virtude do programa é que se adquire do pequeno produtor e distribui-se no próprio local, fazendo com que regiões mais empobrecidas tenham renda e recuperem sua condição econômica.
Para esta safra, os recursos poderão chegar a R$ 800 milhões, dependendo da demanda pelos agricultores.
Ainda assim, a desigualdade entre a assistência dada a grandes e pequenos produtores é gritante. Diante da alta dos custos dos insumos e da queda nos preços das commodities agrícolas que o País exporta - o que deve levar a uma desaceleração do PIB agrícola este ano, segundo a Confederação Nacional da Agricultura -, o ministro Roberto Rodrigues já está articulando maneiras de atender os produtores e evitar que o espetáculo do crescimento, pelo menos o do agronegócio, não esmoreça (entrevista ao lado).
O ministro parece pouco preocupado com os impactos ambientais da produção agrícola em larga escala. Lembra que o Brasil ainda tem 90 milhões de hectares de terras agricultáveis e cita estudos do setor de fertilizantes segundo os quais grande parte da expansão da agricultura se dará em áreas atualmente ocupadas por pastagens.
O acelerado crescimento da produtividade no setor de carne para corte, segundo Rodrigues, permitirá ao País produzir mais em menos área, liberando terras para a agricultura. Rodrigues enfatiza que basta utilizar técnicas adequadas para a recuperação dos solos e o meio ambiente não será afetado.
Hugo Penteado, economista-chefe do banco ABN Amro e um dos poucos adeptos da economia ecológica no Brasil, ressalta, no entanto, que a agricultura é uma atividade totalmente dependente de recursos renováveis, mas finitos. Apesar das técnicas disponíveis, a natureza ainda leva cem anos para produzir um centímetro de solo cultivável.
Ao contrário do que reza a cartilha tradicional, o meio ambiente não é elemento de um sistema maior, o econômico, e sim o sistema no qual a economia se insere. Portanto, representa o limite para que qualquer economia cresça.
Penteado destaca que o Brasil é a única fronteira agropecuária em expansão no mundo, mas o modelo econômico vigente não inclui os recursos naturais como variável a ser considerada, e nem como custo a ser cobrado:
- A agricultura, da forma como é praticada hoje, é totalmente insustentável e vai encontrar limites.
A preocupação com a sustentabilidade cresce entre os economistas. A Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP) promoveu na sexta-feira 27 palestra sobre a sustentabilidade do negócio brasileiro.
Para o palestrante Marco Antonio Fujihara, consultor da PricewaterhouseCoopers, os players do agronegócio "precisam acordar":
- O agronegócio caminhou muito depressa, sem pensar na sua perenidade. Agora, terá de escolher entre ter alta rentabilidade em um negócio que vai se exaurir a curto prazo, ou rentabilidade menor em um número maior de safras.
Para Fujihara, o agronegócio brasileiro está dando munição ao bandido quando, por exemplo, emprega trabalho escravo e não respeita reserva legal.
- É um negócio que está muito exposto à competição internacional e com o flanco aberto para a criação de barreiras não-tarifárias.

Rodrigues aponta a cooperativa como saída
Ministro nega dicotomia entre pequenos e grandes

Seguem trechos da entrevista com o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues:

CartaCapital: Há como o Brasil produzir e ao mesmo tempo minimizar os impactos socioambientais?

Roberto Rodrigues: Há uma falsa dicotomia do processo agronegócio vis-à-vis a agricultura familiar. Agronegócio são todas as formas de agricultura. Começa na prancheta de um pesquisador e termina na gôndola do supermercado. A economia globalizada exige padrões tecnológicos que garantam a competitividade, se não, não se consegue avançar sobre os mercados, além de se transformar em importador de produtos agrícolas de países mais eficientes. Os processos de modernização são irrecorríveis. Temos de fazer com que esses processos não destruam a sustentabilidade no seu conceito lato, que implica tudo: garantias de preservação ambiental, de renda, de função social da terra etc. Esse é o grande problema. E aqui o cooperativismo pode ser o grande diferencial entre a agricultura de mercado e a de subsistência. As cooperativas agrícolas têm hoje 80% de seus associados com menos de 50 hectares. É aí que está a grande alavanca de articulação dos pequenos para que, em seu conjunto, sejam grandes.

CC: Esse não é um papel do governo?

RR: O governo pode e está tentando ser um estimulador. É uma determinação constitucional, razão pela qual temos no ministério um departamento só de promoção de cooperativismo, para que ele possa se tornar um instrumento de agregação da agricultura familiar e da pequena propriedade.

CC: O senhor disse que o agronegócio engloba todas as formas de agricultura. Por que há dois ministérios, um da Agricultura e outro do Desenvolvimento Agrário?

RR: Porque o Fernando Henrique quis fazer isso. Acho estranho, porque o Brasil é o único país que tem dois ministérios.

CC: O atual governo mantém a estrutura.

RR: Sim. O Ministério de Reforma Agrária acabou incorporando os processos da agricultura familiar por decisão do governo anterior e o nosso governo manteve.

CC: Isso não reflete uma visão compartimentalizada do campo? Também há o crédito para o grande produtor e o Pronaf.

RR: Não há uma linha de crédito para o grande produtor, há uma linha de crédito para o pequeno produtor e outra para o resto. É uma visão compartimentalizada que faz sentido, o crédito tem de ser diferenciado mesmo, a agricultura familiar tem de ter algum tipo adicional de proteção para custos menores e para compensar as perdas que tem em processos tecnológicos, e para que possa acessar novos recursos tecnológicos e se incorporar ao mundo competitivo.

CC: O Brasil é a última fronteira agrícola em expansão no mundo. A agricultura é uma atividade que utiliza recursos como solo e água e, em outros países, esses recursos não são tão abundantes como os nossos. Ao exportar os produtos agrícolas, exportamos o nosso equilíbrio ecológico e não cobramos por isso. Quanto tempo isso pode durar?

RR: Não compreendi a pergunta. Se você tem tecnologias que garantem a sustentabilidade, não exaure os recursos naturais e o assunto da preservação fica garantido.

CC: Mesmo com essa expansão agressiva?

RR: Desde que a expansão se dê dentro de padrões tecnológicos adequados, não há risco. Precisamos tomar cuidado com certas áreas, não podemos entrar na Amazônia com soja de uma maneira gratuita. Se vamos usar 30 milhões de hectares de pastos que não estão na Amazônia, não vamos precisar dela.

CC: A expansão da fronteira agrícola não vai adentrar a Amazônia?

RR: Não necessariamente. Também, mas não necessariamente.

CC: O Brasil dá munição para os países que impõem barreiras não-tarifárias?

RR: Eu acho que realmente a gente, às vezes, dá um pouco de munição para o adversário. Mas, enfim, isso faz parte da vida.

Carta Capital, 01/09/2004

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