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Protesto na aldeia

Revista IstoÉ
Autor: Rita Moraes
18 de Jul de 2001

Crianças guaranis sofrem com a falta de escolana capital paulista

Com a voz doce e baixa, Clarisse Djatxuka Mirim, 15 anos, tenta explicar a pronúncia do nome de sua filha de pouco mais de um ano, Jullye Yua Poty. Nós temos um nome normal e um nome indígena. O som do y é de ã, diz ela, com um meio sorriso. A variedade de sons é bonita e a falta de sincronia não incomoda. Funciona como amostra da mistura de culturas a que estão expostos os cerca de 640 guaranis que moram no Morro da Saudade, em Parelheiros, extremo sul da capital de São Paulo. Vizinhos da agitação, do consumismo e da boemia de São Paulo, eles tentam manter seus valores, ritos e danças dentro dos 26 hectares de terra demarcados há apenas 17 anos. Não deve ser tarefa fácil. O glamour do mundo dito civilizado chega via satélite nas tevês das casas toscas, de tronco de árvore, enquanto faltam escola e atendimento médico adequado na aldeia. Clarisse conta como é o seu dia-a-dia na casa de três cômodos onde mora com mais 13 pessoas: pais, avó paterna, tio e nove irmãos. Só há dois colchões, as outras camas são estrados de galhos de árvore. Levanto cedo, faço o café, cuido da minha filha, ajudo minha mãe a lavar roupa, almoço. À uma hora da tarde, começo a assistir televisão, conta. Não são poucos os afazeres, mas a televisão toma o lugar do estudo. Na aldeia, há apenas quatro classes, de primeira a quarta série, com professoras de fora da aldeia. Para completar o primeiro grau, os meninos índios têm que andar um quilômetro. Em grupo, sempre, eles vão a pé. Já melhorou. Antes eram quatro quilômetros até a escola estadual mais próxima, conta o cacique Karai Poty, o Manoel Lima. Não foi pouca a resistência que enfrentou quando decidiu mandar as crianças estudar fora da aldeia. Eles são alvo de comentários, e às vezes se revoltam. Mas digo que devem estudar e aprender a lidar com o mundo lá fora, afirma ele. Nem sempre é fácil convencer os índios da importância do estudo. Clarisse, por exemplo, deixou a escola, apesar de querer ser enfermeira. Ela é ainda uma criança. Sorri como uma. Mas, aos 12 anos, casou-se com Ricardo, na época com 17, de outra aldeia guarani. Foi morar com ele em Bertioga. O mar é lindo, diz ela, contando que eles mergulham de roupa porque têm vergonha de expor o corpo. (A declaração parece uma ironia quando se pensa que andar nu, ou quase, era normal entre seus ancestrais.) Depois do nascimento da filha, o casal brigou e ela voltou. Manoel Lima explica que o casamento precoce não é comum e deve ser sempre entre iguais. Se casar com branco, tem que sair da aldeia. Precisamos manter a cultura, diz. Essa resistência e o apego às tradições surpreende os acostumados à busca do conforto máximo. A vida na aldeia é precária. Eles vivem praticamente de doações de universidades e projetos de organizações não-governamentais. Temos um pequeno posto de saúde que aguarda há dois anos a chegada de equipamentos. O objetivo é funcionar em convênio com o Sistema Unificado de Saúde (SUS). A promessa da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), ligada ao Ministério da Saúde, é equipá-lo até o final de julho, diz, esperançoso, o cacique. Há quatro anos comandando a aldeia, ele já comemora vitórias como a instalação de uma caixa dágua de 80 mil litros e o trabalho prestado por uma equipe de médicos, enfermeiros e dentistas engajados em um projeto do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo. Devido à falta de equipamentos, só fazemos a prevenção, ensinando a eles a importância de escovar os dentes, diz a dentista Maria Egláucia. Alegres, Wellington Weerá Potygua, 13 anos, e Patrícia Ará Mirim, 7, se apressam em mostrar o que aprenderam. Enquanto isso, outros pequenos transformam um talo de bananeira em escorregador. Parecem querer mostrar que, apesar da realidade muitas vezes cruel, eles resistem e continuam a sonhar.

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