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Protesto deixa Boa Vista em clima de guerra

OESP, Capa e Nacional, p. A1 e A10
09 de Jan de 2004

Protesto deixa Boa Vista em clima de guerra
Comércio fecha, já falta combustível e cargas de arroz apodrecem; líderes denunciam ameaças

LEONENCIO NOSSA

Há três dias, a capital de Roraima vive isolada e em clima de guerra. O bloqueio das pistas de acesso a Boa Vista, montado pelos fazendeiros contrários à proposta do governo de homologar a terra indígena Raposa Serra do Sol, causou uma corrida de motoristas aos postos de combustíveis. Em alguns estabelecimentos, os tanques já estão vazios. O protesto conta com apoio do governador Flamarion Portela (sem partido), de policiais militares, empresários e uma pequena parcela dos índios.
A Polícia Rodoviária Federal alega não ter meios para retirar centenas de tratores e carretas carregadas de óleo diesel e madeiras que impedem o trânsito nas rodovias. Por sua vez, a Polícia Federal no Estado aguarda reforço e tenta, por meio de diálogo, soltar três religiosos mantidos como reféns na aldeia Surumuru, a 220 quilômetros da capital.
Até o início da noite de ontem, índios ocupavam o prédio da Fundação Nacional do Índio (Funai) e ameaçavam invadir uma catedral, onde o bispo defende a retirada dos brancos da reserva. O comércio fechou as portas, na quarta-feira, em apoio aos fazendeiros.
Pelas avenidas de Boa Vista, cidade normalmente tranqüila, com 240 mil habitantes, carros de som pediam apoio à manifestação. Nos sinais de trânsito, jovens pagos por políticos e fazendeiros escreviam frases de protesto nos vidros dos carros.
Por rádio, líderes de comunidades a favor da demarcação informaram ao Conselho Indígena de Roraima (CIR) sobre ameaças feitas por grupos contrários. Já fazendeiros temem que cargas de arroz apodreçam nas carretas.
Flamarion - Os fazendeiros se opõem ao Ministério da Justiça, que pretende homologar a reserva indígena como área contínua de 1,75 milhão de hectares, incluindo a sede de Uiramutã e fazendas de arroz.
Os manifestantes querem que seja homologada só uma parte das terras.
"O governo está clonando malocas", critica o fazendeiro Paulo César Quartiero, líder do movimento. Maior plantador de arroz de Roraima, ele chama de "irresponsáveis" o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Ele teme perder metade de seus 9,2 mil hectares.
Na área da disputa, vivem 15 mil índios macuxis, uapixanas, ingaricós, patamonas e taurepangues, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Cerca de 700 não-índios moram na região. "Vamos resistir, declarar desobediência civil", diz Quartiero. "A área é estratégica, faz fronteira com dois países e tem grande riqueza mineral."
Quartiero diz que o governador "dá apoio total" aos fazendeiros, mas o poder de negociação está fragilizado pelas denúncias de participação no esquema dos gafanhotos - Portela é suspeito de ter ajudado a inchar a folha de pagamento com funcionários fantasmas.
O governador, que hoje deverá se reunir com Thomaz Bastos, horas, em Brasília, afirma que se esforça para buscar um entendimento. "Há quem diga que (as denúncias) podem ter fragilizado o nosso poder de negociação, mas o ministro nunca me disse isso", afirma.
"As pessoas estão me cobrando posição mais radical, mas não posso perder a capacidade de diálogo." Flamarion poderá recorrer à Justiça: com a nova homologação, 46% do Estado será de reservas indígenas. "O restante é controlado pelo Ibama e pelo Incra. Sou governador de um Estado virtual."
(Colaborou Zequinha Neto, especial para o Estado)

A FAVOR

A favor da homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, o cacique Ivaldo Macuxi, da comunidade Maturuca, afirma que 90% dos índios que moram nas mais de 150 aldeias da região têm a mesma opinião. "Muitas comunidades não têm matas, buritizais e lagos. Se o governo não homologar de forma contínua, muitos não vão poder pescar ou caçar", diz. "Os brancos entraram nas nossas terras como bonzinhos, agora nos ameaçam todos os dias."
Para Ivaldo, os líderes indígenas favoráveis à permanência de fazendeiros na área estão sendo manipulados por autoridades, que ameaçam suspender o repasse de cestas básicas e outros auxílios. "Nossos parentes repetem que vão ficar isolados com a homologação. Isso é mentira. Vamos nos organizar ainda mais."
Segundo o cacique, os fazendeiros e o governo do Estado não querem diálogo e "mentem" quando dizem que os índios da área não são mais índios. "Essa gente acha que a gente deixa de ser índio só porque usa um relógio ou um sapato."
(L.N.)

CONTRA

Policiais militares, empresários, taxistas e até índios apóiam o protesto dos fazendeiros contra a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Desde terça-feira acampada na sede da Funai em Boa Vista, a índia Zenita Macuxi diz temer o isolamento da sua comunidade. "Já estou acostumada a comer comida com sal e usar sapato. Meu pai me alimentou com carne de veado, mas hoje eu até como carne de boi." Para ela, poderá haver aumento de violência entre os índios se for feita a homologação.
Um dos líderes da ocupação, o índio Jonas Macuxi diz não querer viver no mesmo "isolamento dos ianomâmis". "Se o governo homologar a reserva, os órgãos públicos deixarão de dar assistência aos índios."
Responsável pelo policiamento de um dos pontos de protesto na BR-174, o tenente Elson Paiva defende a decisão dos fazendeiros de bloquear a pista.
"Temos consciência dos prejuízos da homologação para o Estado. Não existe índio, existe só caboclo civilizado." (L.N.)

OESP, 09/01/2004, Capa e Nacional, p. A10

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