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'Proteção' e preconceito

Jornal do Brasil-Rio de Janeiro-RJ
Autor: Azelene Kaingang
03 de Jul de 2001

A participação dos povos indígenas do Brasil na Conferência Nacional contra o Racismo e a Intolerância, de sexta-feira a domingo, no Rio, terá de considerar os processos históricos de violência que resultaram em perdas territoriais, culturais e físicas. Bem como o reconhecimento, pelos governos, da dívida existente para com nossos povos, assumindo o compromisso de buscar medidas que visem à imediata adoção de políticas públicas nas áreas de saúde, educação, formas de produção que considerem e respeitem os sistemas tradicionais, proteção dos conhecimentos tradicionais e patrimônio genético. E que tenham como objetivo maior a implantação de ações afirmativas e compensatórias, que reflitam minimamente o compromisso e a disposição de redefinir a política indigenista oficial que, por sermos diferentes, nos considera incapazes.
A Constituição de 1988 determinou um prazo de cinco anos para que fossem demarcados todos os territórios indígenas do país. Treze anos depois, o que vemos são bancadas parlamentares se articulando para propor a diminuição de terras indígenas. Como agravante, há o irrisório orçamento que o governo reserva para a demarcação, fiscalização, proteção e extrusão de terras indígenas. Esta será nossa reivindicação na Conferência Mundial contra o Racismo, diante do descaso do governo brasileiro. Temos um órgão indigenista (Funai) com uma estrutura ultrapassada, incapaz de pensar e propor políticas modernas e eficientes que objetivem repensar a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas. Relação essa que necessariamente passa pelo reconhecimento e o respeito à diferença, mas sem diferença nos direitos.
Quando, pela primeira vez, falamos de racismo e discriminação racial, não sabíamos muito bem como conduzir. Como povos que historicamente sofreram todas as formas possíveis de discriminação racial, os efeitos devastadores dessa ideologia e os instrumentos usados para explicitá-la, nunca havíamos reservado um momento para tais questionamentos. Ao contrário, seguimos nossas lutas, passamos por massacres de governos, de igrejas, de fazendeiros e de exércitos. Em determinadas regiões, povos inteiros desapareceram fisicamente; em outras, desapareceram culturas inteiras - a nosso ver, a pior das mortes, pois nos transforma em povos sem identidade e sem referência. Esse foi o principal papel desenvolvido pelas religiões e igrejas, que em nome de um deus, de uma alma e de um céu, nos catequizaram e nos doutrinaram. É também por esses massacres étnicos que queremos compensação.
Desde 1991 lutamos pela mudança da legislação indigenista brasileira. Não conseguimos porque não existe vontade política do governo. A atual legislação é assistencialista, paternalista e integracionista. Nos considera populações transitórias, fadadas à extinção através da integração na sociedade nacional, significando que quando nos integrarmos deixaremos de ser índios. E, pior, sair da incapacidade relativa (art. 6o do Código Civil) e passar a ser reconhecidos como cidadãos plenamente capazes é deixarmos de ser índios.
Em pleno século 21, o governo brasileiro nos dá proteção por sermos incapazes, não por sermos diferentes. A Funai diz que essa tutela é a ideal para ''proteger'' os povos indígenas. Para nós, não passa de preconceito e uma das formas mais perversas de discriminação racial, porque sempre significou a substituição das nossas vontades. Ainda hoje sentimos dificuldades de participar de fóruns nacionais e internacionais para defender nossos direitos, pois vários segmentos da sociedade não índia se consideram mais legítimos para nos representar e decidir nossos destinos. É preciso alertar os governos sobre a falta de ações que explicitem o compromisso e a preocupação de combater a discriminação racial e o racismo em todas as suas formas, com a participação direta dos povos indígenas.

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