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Promotora sai de cena

Correio Braziliense-Brasília-DF
31 de Out de 2001

A menos de uma semana do julgamento dos acusados de queimar vivo o índio Pataxó, a promotora Maria José Miranda se afasta do processo. Colegas afirmam que ela tem sido vítima de perseguição no Tribunal

Foram quase cinco anos de batalhas judiciais. A promotora Maria José Miranda percorreu um longo caminho até conseguir levar quatro dos cinco acusados do assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos a júri popular. Mas, a menos de uma semana do julgamento, ela tomou uma decisão polêmica. Maria José se afastou do caso. Visivelmente abalada, ela concedeu ontem, durante o intervalo de um julgamento no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), uma entrevista ao Correio, em que confirmou o afastamento. Ela não explica, no entanto, o motivo. ''Saio por causa de alguns problemas que aconteceram'', resume. A decisão, tomada na semana passada, foi comunicada à juíza titular do Tribunal do Júri, Sandra de Santis, na tarde da última segunda-feira. Foi uma reunião de quase três horas, a portas fechadas, da qual também participou o promotor Maurício Miranda. Sandra de Santis não quis comentar o assunto com a imprensa. Maurício Miranda vai substituir Maria José e terá apenas seis dias para ler as três mil páginas do processo. O julgamento está marcado para terça-feira. O promotor garante que não vai pedir o adiamento do júri. ''Até o dia 6 estarei pronto'', afirma. DisputaA decisão de Maria José às vésperas do julgamento trouxe à tona uma suspeita que há algum tempo ronda o caso Galdino: a de que o processo transformou-se em algo mais do que uma disputa jurídica entre a promotora e a juíza. Três promotores ouvidos pelo Correio afirmam que o afastamento da promotora teria sido provocado por perseguições. Nenhum juiz ou desembargador procurado pela reportagem quis comentar o assunto. Maria José prefere calar sobre o motivo de sua decisão. O problema começou quando, em 9 de agosto de 1997, a juíza Sandra de Santis desclassificou a tese de homicídio triplamente qualificado, apresentada por Maria José, e pronunciou os réus por lesão corporal seguida de morte. Com isso, além de não ser julgados por júri popular, os quatro acusados estariam sujeitos a penas bem menores. Maria José recorreu até a última instância possível, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde conseguiu a vitória quase dois anos depois da desclassificação. Os acusados foram novamente pronunciados por homicídio e o julgamento, remetido ao Tribunal do Júri. Nos últimos quatro anos, Sandra de Santis circulou entre o Tribunal do Júri e a segunda instância, que representa uma promoção. Em agosto, ela retornou à primeira instância, a tempo de presidir o caso Galdino. A medida administrativa provocou críticas entre promotores. ''Uma juíza que já desclassificou o crime anteriormente não deveria assumir o julgamento'', argumenta o promotor Diaulas Ribeiro. Desde a volta de Sandra, acusa um colega de Maria José, a promotora tem sido vítima de perseguição no Tribunal. ''Ela ficou impedida de ter acesso, nos julgamentos, a áreas livres para os promotores, como a sala secreta dos jurados e até o banheiro usado por eles'', conta. O procurador-geral do Ministério Público do DF, Eduardo Albuquerque, afirma desconhecer o desentendimento. ''Mas se a promotora fizer uma representação sobre isso, vamos apurar e daremos todo o apoio a ela'', garante.

Entrevista / Maria José MirandaPromotora diz que está cansada e exaurida. Mas confia que será feita Justiça

''Se lutei tanto é porque acredito no júri popular''CORREIO BRAZILIENSE - Quando a senhora resolveu sair do caso? MARIA JOSÉ MIRANDA - Recentemente. Nos últimos dias. CORREIO - Por que? MARIA JOSÉ - Alguns problemas que aconteceram. Por enquanto, prefiro não falar sobre isso. CORREIO - Sua saída do caso pode ser considerada um recado para que a juíza Sandra de Santis também saia? MARIA JOSÉ - A doutora Sandra não precisa de recado para tomar suas decisões. Tudo que ela faz é com muita consciência, ela não precisa de recado para agir. CORREIO - Mas é certo que, com a sua saída, ela vai sofrer pressão muito grande para sair do caso também... MARIA JOSÉ - Não vejo vinculação. Se ela sofrer pressão, será por outros motivos. CORREIO - Que outros motivos? MARIA JOSÉ - Ignoro. CORREIO - A senhora conversou com ela sobre a sua saída? MARIA JOSÉ - Rapidamente. Só comuniquei a ela que estava saindo. CORREIO - Qual foi a reação da juíza? MARIA JOSÉ - Ela achou estranho e até sugeriu que eu continuasse. Mas no fim encarou com naturalidade. CORREIO - Nos últimos cinco anos, a senhora se dedicou muito a esse processo. Não é estranho que, faltando apenas uma semana para o julgamento, a senhora se afaste do caso? MARIA JOSÉ - O Ministério Público tem o princípio da unidade e da indivisibilidade. O promotor que vai assumir o caso fará a mesma coisa que eu faria. É um promotor muito competente, muito estudioso, mais experiente do que eu. Talvez ele possa até fazer um trabalho melhor do que o meu, quem sabe. CORREIO - Houve muita pressão sobre a senhora? MARIA JOSÉ - Não diretamente. Mas todos nós sabemos que um processo envolvendo gente importante dá mais trabalho do que centenas de processos de pessoas comuns. Isso é indubitável, todos sabem disso. CORREIO - A senhora sofreu algum tipo de ameaça? MARIA JOSÉ - Ameaça de morte, desse tipo, não. CORREIO - Ameaças ao seu trabalho? MARIA JOSÉ - (silêncio) CORREIO - Há quanto tempo a senhora é promotora? MARIA JOSÉ - Eu tenho oito anos de Tribunal do Júri. CORREIO - Quantas vezes a senhora se afastou de um caso nesse tempo todo? MARIA JOSÉ - Nenhuma. CORREIO - Esse foi o caso mais rumoroso que a senhora já pegou? MARIA JOSÉ - Mais rumo-roso, sim. Não o mais difícil. Tecnicamente, juridicamente, esse caso é muito simples, muito fácil. Mas com certeza o mais rumoroso, o que teve maior repercussão. CORREIO - A senhora continua acreditando que os quatro réus são culpados de homicídio qualificado? MARIA JOSÉ - Eu tenho absoluta certeza de que, tecnicamente, juridicamente, eles praticaram homicídio triplamente qualificado, mais corrupção de menor. Pelas nossas leis, não há a menor dúvida. É certo, como dois e dois são quatro, que eles praticaram esses crimes. CORREIO - A juíza Sandra de Santis já estava há mais de quatro anos como desembargadora. Ela voltou para o Tribunal do Júri praticamente às vésperas desse julgamento. A senhora acha que depois ela vai voltar para a segunda instância? MARIA JOSÉ - Eu não tenho a menor idéia sobre isso. Eu acho que ela está perto de ser promovida, mas a distribuição de juízes é um trâmite administrativo do Tribunal de Justiça, que a gente não fica sabendo como se dá. Não sei nada sobre isso. CORREIO - A senhora acha que existe a chance de o crime ser novamente desclassificado pelo júri? MARIA JOSÉ - Como já disse, eu saí do processo, não quero mais me envolver nele. Eu estou muito cansada, exaurida, saturada, eu não quero mais nem ver, nem saber desse processo. Não gostaria mais de falar sobre isso. CORREIO - A senhora já teve medo, alguma vez, de perder a causa? MARIA JOSÉ - Não, porque confio muito no Tribunal do Júri. Se lutei tanto para levar o caso a júri popular, é porque acredito no júri popular. E seja qual for o resultado, a vitória já aconteceu. Eles serão julgados no mesmo local onde se julgam os réus do Paranoá, da Estrutu-ral, todas as pessoas comuns. Se o júri absolver, paciência, será a sociedade absolvendo. Mas eu não acredito que será assim não, porque não é assim que o júri tem agido em outras circunstâncias. Não acredito que será diferente, que abrirão uma exceção nesse caso. CORREIO - Como é que a senhora se sente agora, ao deixar o caso uma semana antes do julgamento? MARIA JOSÉ - Eu estou cansada, exaurida, saturada. Não quero mais nem ver o processo. É uma mistura de sentimentos, não dá para explicar. Eu confio em Deus, que a Justiça será feita, e confio muito na pessoa que vai me substituir, e no senso de justiça dos jurados.

O sofrimento de Galdino

20 de abril de 1997 1h30 Max Rogério Alves, 19, encontra-se com Antônio Novely Vilanova, 19, Tomas Oliveira Almeida, 18, Eron Chaves Oliveira, 19, e o menor G.A.J.N, 17 - irmão de Tomas - no Centro Comercial Gilberto Salomão, no Lago Sul. De lá, o grupo segue para a 312 Sul, onde entra numa lanchonete. 2h40 Os cinco amigos vão para a 204 Sul, onde mora o padrasto de Max. Trocam de carro e voltam ao Gilberto Salomão para que Eron pegue seu Gol, que também é deixado na 204 Sul. No retorno à quadra, eles pegam o Monza preto da mãe de Max. 3h40 O grupo passa em frente ao ponto de ônibus entre as quadras 703 e 704 da W3 Sul e vêem o índio Galdino Jesus dos Santos, 44 anos, dormindo no banco. Julgam ser um mendigo. Um dos rapazes propõe dar um susto nele. 4h Os cinco rapazes compram álcool em um posto na 406 Sul. O combustível é guardado em duas garrafas plásticas de óleo lubrificante, lavadas com água e sabão. A conta dá R$ 1,20 - pagos com uma cédula de R$ 1,00, uma moeda de dez centavos, outra de cinco e mais cinco moedas de um. 5h Eles estacionam na W2, em frente à 503 Sul, e vão para o ponto de ônibus onde Galdino dormia. Jogam o álcool nele e riscam fósforos. A vítima torna-se uma tocha humana. 5h10 Os criminosos correm para o Monza e voltam para suas casas. Outros motoristas vêem as chamas e param para socorrer Galdino. Uma testemunha consegue anotar a placa do Monza. 6h30 Policiais militares chegam na casa de Max. Ele nega ter usado o Monza. Vai para a delegacia da Asa Sul (1ªDP), onde é interrogado pelos agentes da Polícia Civil, e confessa o crime. Em seguida acompanha um delegado e um grupo de policiais civis às casas dos quatro amigos. O grupo é preso em pouco mais de uma hora. 21 de abril de 1997 2h O índio Galdino morre no Hospital Regional da Asa Norte, com 95% do corpo queimado. 22 de abril de 1997 16h Galdino é enterrado no município de Pau-Brasil, no sul da Bahia, onde fica a reserva dos pataxós.

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