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Projeto turístico busca resgatar cultura e gerar renda para indígenas no Amazonas

O Globo, Sociedade, p. 35
13 de Out de 2019

Projeto turístico busca resgatar cultura e gerar renda para indígenas no Amazonas
Projeto de cinco comunidades na região do Amazonas teve, em agosto, seu plano de visitação aprovado pela Funai
Projeto de comunidades indígenas do Rio Negro, no Amazonas, recebe turistas que buscam a experiência de viver como os locais durante uma semana. Dormir em rede, passear de canoa e seguir o cardápio dos nativos fazem parte do roteiro, informa

Cristina Fibe

A mãe de Clarice Braga Lopes, 41, domina o nheengatu, língua geral indígena formalizada após a colonização, e pouco fala português. Sua filha, da etnia baré, o contrário: domina o português e pouco fala nheengatu. Os netos não aprenderam nada do idioma da avó, e hoje estudam a partir do currículo do MEC, que não prevê disciplinas indígenas. Formada em Pedagogia e estudante de Letras e Matemática, a professora Clarice procura, em sala, valorizar a cultura dos ancestrais. Dá aulas para 17 crianças de 4 a 11 anos no sistema "multisseriado", implementado na pequena Aruti (bicho-preguiça em nheengatu), abrigo de 19 famílias, todas católicas. Além da escola, Clarice vê no turismo um incentivo para o resgate das tradições indígenas. Ela faz parte de um projeto de cinco comunidades da região do Médio Rio Negro, no Amazonas, que teve em agosto seu plano de visitação aprovado pela Funai (Fundação Nacional do Índio). Nas duas expedições organizadas pelas próprias comunidades - uma "aventureira" e outra "cultural" -, cada grupo de até 12 pessoas convive com moradores dos territórios indígenas por uma semana. O objetivo é não só gerar renda para os locais como fortalecer sua cultura.

-Está sendo um resgate até para nossas crianças, que agora têm mais interesse nas tradições-diz Clarice, envolvida na Expedição Serras Guerreiras de Tapuruquara desde sua idealização, em 2016. - Foi gente de fora que veio conscientizar as pessoas daqui da importância da nossa cultura. Tem morador que tem vergonha de suas origens. Vai pra cidade e esconde que é indígena. O público-alvo do projeto, que tem o apoio do Instituto Socioambiental (ISA) e da ONG Garupa -responsáveis por viabilizar alogística, da documentação à comunicação entre moradores e visitantes, numa região onde não há sinal de telefonia e menos ainda de internet -, é de turistas interessados em uma imersão nas tradições locais. A ideia não é se ornamentar para tirar fotos como se índio fosse, mas conviver com os moradores, ouvir suas histórias, experimentar as comidas plantadas e preparadas por eles, dormir em suas redes e caminhar por seus terrenos sagrados, onde mulheres grávidas ou menstruadas não entram, e é preciso lavar aboca antes de beberou se alimentar. -Agente perce beque o turismo já está resgatando as músicas, as danças, os mitos, os valores das poucas pessoas antigas que ainda temos - defende Cleucimara Reis Gomes, que era presidente da Acir (Associação das Comunidades Indígenas e Ribeirinhas) quando o projeto foi gestado. Além da Acir, a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) é responsável pelo projeto e pela capacitação das comunidades, acompanhadas também por Funai e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Desde a primeira expedição teste, há dois anos, os roteiros foram montados seguindo as indicações dos guias indígenas e as sugestões dos turistas "cobaias". A próxima etapa envolverá operadores que poderão vender o pacote aos interessados elevá-losa té as comunidades,que divide mentres ia rendadas expedições, com contas abertas na internet. Por ora, cabe à Garupa levar os visitantes, que desembolsam cerca de R$ 7,5 mil por expedição - dinheiro que cobre todas as despesas a partir de Manaus. -Aqui, averba de alojamento( coletivo, com redes e banheiro compartilhado) é da comunidade, porque todo mundo construiu. Das refeições, cada um que participou recebe uma parte. E o dinheiro da festa fica para a escola - conta Ivani a Mel gueiro Baltazar ,48, coordenadora da visitação à comunidade de Cartucho, onde estão 40 famílias. Viajantes e moradores sabem que o investimento para estar lá é alto, e todos parecem querer evitar o risco de ser mais uma intervenção negativa na História indígena. Mas o que se vê, ao contrário, são forasteiros fazendo um chamado às tradições, numa tentativa de resgate do que parece estar, por ali, quase definitivamente perdido.

Fartura em cinco refeições
Nas três pequenas vilas pelas quais O GLOBO passou em setembro, no roteiro cultural Maniaka, o que mais chamou a atenção dos turistas foi a fartura das mesas postas pelos moradores. Em cada expedição, as famílias se dividem para que não falte alimento: nas cinco refeições do dia, precedidas de orações católicas, aparecem principalmente derivados da mandioca - da farinha ao mingau de tapioca -, frutas e legumes da estação e peixes, a maior fonte de proteínas. Piranhas, surubins e tucunarés são servidos ensopados, assados na folha de arumã ou grelhados e comidos com colher ou com as mãos, sempre acompanhados de pimentas que, como a mandioca, saem das roças indígenas. O sistema agrícola do Rio Negro é considerado, desde 2010, patrimônio cultural brasileiro pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Ainda assim, conforme aumenta o acesso dos indígenas a produtos industrializados, mais difícil fica a manutenção de seu milenar método de sustento. Já é mais fácil comprar óleo na cidade do que produzir o próprio, e sucos de caixinha substituíram os das frutas da região - inclusive nas merendas escolares, em que não faltam itens como margarina, atum e salsicha enlatados. Com a "facilidade", diabetes e pressão alta já se fazem presentes nas comunidades. Ainda que sob o risco de aproximar mais os moradores dos supermercados, um dos objetivos do projeto turístico no Médio Rio Negro é ajudar os indígenas a resgatar também suas tradições alimentares. (Cristina Fibe)

O Globo, 13/10/2019, Sociedade, p. 35

https://oglobo.globo.com/sociedade/582327-projeto-turistico-busca-resga…

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