VOLTAR

Projeto Tietê, 20 anos: O rio ainda pede água

OESP, Especial, p. H1-H5
22 de Set de 2011

Projeto Tietê, 20 anos: O rio ainda pede água
Avanço em duas décadas inclui expansão da coleta e tratamento de esgoto, mas Tietê ainda parece morto na Região Metropolitana

Com 1,2 milhão de adesões a um abaixo-assinado - a maior mobilização por uma causa ambiental na América Latina até hoje -, a campanha de despoluição do Rio Tietê liderada pela então Rádio Nova Eldorado AM sensibilizou o governo estadual a dar início ao projeto de limpar o curso d'água mais famoso de São Paulo. Após 20 anos, várias ações surtiram efeito, como o aumento da coleta e tratamento de esgoto, reduzindo a mancha de poluição numa extensão de 160 quilômetros.
Os moradores da Região Metropolitana, porém, ainda não conseguem visualizar avanços na despoluição do rio - sua cor continua negra, a água não se movimenta e o cheiro ainda incomoda. Segundo a Sabesp, a melhora na qualidade da água ficará perceptível até 2015, quando 30 quilômetros de rio que cortam a metrópole passarão a ter vida aquática e outros 30 quilômetros deixarão de ter odor desagradável. A previsão é de que, até 2020, o rio inteiro deixará de ser fétido e 160 quilômetros do Tietê na Região Metropolitana poderão abrigar peixes. Para o geógrafo Wagner Ribeiro, a população deve fazer a sua parte, parando de usar o rio como depósito de lixo e fiscalizando promessas e prazos do governo.

Iniciativa da 'Rádio Eldorado' deu arrancada para campanha de despoluição do rio
Abaixo-assinado recolheu mais de 1 milhão de assinaturas, sensibilizou políticos e empresários e gerou projeto de US$ 2,65 bilhões

Karina Ninni

A campanha pela despoluição do Rio Tietê começou em 1990, com uma iniciativa da então Rádio Nova Eldorado AM (hoje Eldorado Brasil 3000) - um programa chamado O Encontro dos Rios, que traçava um paralelo entre o Tâmisa, que banha Londres, e o maior rio paulista em extensão.
O programa repercutiu e a população começou a se envolver, aderindo a um abaixo-assinado coordenado pela rádio. Estado, Jornal da Tarde e Eldorado FM abraçaram a causa. Criou-se então o Núcleo União Pró-Tietê, instalado na SOS Mata Atlântica, que recebeu patrocínio de US$ 350 mil do Unibanco. Na sequência, a Fiesp assinou um convênio com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente para controle dos resíduos industriais.
A Câmara Municipal também aderiu à iniciativa, aprovando três moções de apoio à campanha. O slogan "O Tietê pede água. Você não pode negar" parecia ter acordado as pessoas para a situação do rio, que, como disse o escritor Alcântara Machado, "despoetizou-se e empobreceu por São Paulo e pelo Brasil".
No meio disso, um personagem insólito apareceu, chamando a atenção para a possibilidade de vida naquelas águas: Teimoso, um jacaré que passou a habitar as várzeas imundas do Tietê. Até hoje tem quem ache que o abaixo-assinado que recolheu 1,2 milhão de assinaturas - maior mobilização por uma causa ambiental até hoje no País - deve muitas rubricas ao Teimoso, que acabou transferido para o zoológico de São Paulo.
Projeto Tietê. Com iniciativa da Sabesp e apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o governo do Estado lançou em 1992 o Projeto de Despoluição do Rio Tietê. A primeira etapa, entre 1992 e 1998, consumiu US$ 1,1 bilhão com a construção de três estações de tratamento de esgoto.
Na segunda etapa, entre 2000 e 2008, foram investidos US$ 500 milhões, sendo US$ 200 milhões financiados pelo BID e US$ 300 milhões com recursos da Sabesp, que teve apoio do BNDES. Na terceira, que se estende até 2015, serão investidos mais US$ 1,05 bilhão para coletar o esgoto de 1,5 milhão de pessoas e tratar o de mais 3 milhões.
A Sabesp diz que até 2015 os efeitos do projeto serão visíveis para a população da Região Metropolitana - 30 km do rio que cortam a metrópole passarão a ter vida aquática e outros 30 km deixarão de cheirar mal. E afirma que, até 2020, haverá a universalização do saneamento e o fim do mau cheiro das águas.
É difícil identificar o momento preciso em que a cidade virou as costas para o rio, mas há algumas pistas. "Em 1944, a Travessia de São Paulo a Nado, competição que acontecia desde 1924, foi cancelada porque se concluiu que o rio não podia mais garantir condições de salubridade aos atletas", lembra o professor do Departamento de História da Unifesp Janes Jorge, autor do livro Tietê - O Rio Que a Cidade Perdeu.
O Tietê chegou a abastecer com água vários bairros da cidade entre o final do século 19 e as duas primeiras décadas do século 20. Segundo Jorge, em 1898, com dificuldades para abastecer toda a população, a Repartição de Águas e Esgotos (RAE) retirou bairros proletários como Brás, Bom Retiro, Barra Funda, Belenzinho, Campo Grande e Cambuci do Sistema Cantareira, que provia água de excelente qualidade, e passou a abastecê-los com água captada no Tietê. "Isso provocou uma reação contrária dos círculos médicos, pois não havia um sistema de tratamento que garantisse a qualidade da água captada", afirma o professor. A água distribuída na cidade só passou a ser clorada em 1926.
Riqueza. O Tietê possibilitou o crescimento e o desenvolvimento de São Paulo. Forneceu areia, argila para os tijolos que transformaram suas várzeas, pedregulho, energia elétrica, peixes para os moradores do arredores, água para o consumo e a prática de esportes. "Na virada do século 19 para o 20, São Paulo era uma cidade de 250 mil habitantes que curtia o rio. Ele era usado por remadores, para passeios, caminhadas, banhos. Agora, podemos até despoluí-lo, mas é preciso pensar em como vamos reconquistar a beira-rio. Como o paulistano vai poder curti-lo de novo, à beira da Marginal?", pergunta Jorge. É algo a se pensar...

'Sanear é ação de cidadania'
Ambientalista afirma que, em 20 anos de Projeto Tietê, houve avanços, mas os desafios continuam grandes

Afra Balazina

"Não tem varinha mágica." Para Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da SOS Mata Atlântica, o processo de despoluição do Rio Tietê é demorado, mas houve avanços.
Quais foram as principais mudanças no Tietê nesses 20 anos de campanha pela despoluição?
De 1990 até 1999, o grande vilão era a indústria. De 2000 a 2005, passou a ser o esgoto doméstico. E, de 2006 até hoje, a gente passou a ter outros problemas além do esgoto: os biodegradáveis, o lixo e o desmatamento. Dá para dividir 50% em esgoto e outros 50% nesses três itens.
Qual é o problema dos biodegradáveis?
O princípio ativo que faz com que os componentes do biodegradável se decomponham é o oxigênio. A gente usa toneladas de biodegradáveis - pasta de dente, xampu, detergente -, e isso vai para o tratamento de esgoto, que não trata os químicos, apenas o material orgânico. Isso segue para o rio e deveria encontrar água com oxigênio para se decompor. Mas não há oxigênio nem movimentação. Quem ajuda a decompor são as corredeiras de Pirapora até Salto. Quando essas cargas passam por lá, a água oxigena. Ao longo de 100 km vai se oxigenando e formando as espumas.
E como resolver essa questão?
Os princípios ativos do biodegradável que o Brasil usa, o fósforo e o nitrato, têm a mesma base que os fertilizantes. Então, quando chegam na Billings, na Guarapiranga, eles aumentam a proliferação de algas, que consomem oxigênio. A gente precisa mudar a legislação. Alemanha, Suiça, Canadá e Holanda proíbem esses componentes. Mas, para nós, é cultural: ao usar sabão que não forma espuma você tem a sensação de que não limpa. Passa pela educação.
Qual foi a maior dificuldade durante os 20 anos de campanha?Em 1999, no fim da primeira etapa de despoluição, não tínhamos informação, não havia transparência do governo em relação à aplicação dos recursos. A gente precisava que ONGs parceiras no exterior contatassem o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em Washington para pegar dados. Era terrível. E aí a despoluição teve um grande uso político. Em campanha eleitoral, diziam que num curto espaço de tempo as pessoas beberiam água do Tietê. Isso foi um desserviço, as pessoas se sentiram enganadas.
E como contornaram essa situação?
A gente precisava reagir e foi lançada outra vinheta: Continuamos de Olho. A soma de uma imprensa que fiscalizava e cobrava e uma sociedade que se mobilizava foi uma vitória. Tivemos uma mudança de governo, entrou Mario Covas, e o Projeto Tietê não foi abandonado, o que é raro. Ele continuou com Covas, com Geraldo Alckmin, com José Serra e agora com Alckmin de novo. Foi um resultado positivo de cidadania.
Mas as pessoas da Região Metropolitana não veem muitas melhorias no rio...
Quem passa pela Marginal não percebe que o rio está mudando. Mas em Araçatuba, a cidade capta água para abastecimento público no Tietê. Quando a campanha começou, nenhuma cidade fazia isso.
O que você achou da ampliação das pistas da Marginal?
Foi um erro gravíssimo. A sociedade queria, todo mundo ascendeu economicamente e comprou carro. Mas se, em vez de mais uma pista, tivesse sido feito um metrô de superfície, não seria melhor? Mas a população queria mais pistas, e o governo respondeu à pressão. Logo perceberão que terão de desfazer para construir ciclovias. O trânsito está insustentável.
É viável ter táxis aquáticos no Tietê, como há em muitos locais?
A gente aposta nisso. É a grande saída para o Tietê, fazer as pessoas usarem o rio. O Tâmisa e o Reno são poluídos hoje por carga difusa, como fuligem de carro, resíduos de escapamento e chuva ácida, mas as pessoas usam. Então, aqui também dá para usar.
E qual é a sua expectativa para o futuro?
Que o cronograma anunciado pela Sabesp seja cumprido (universalização do saneamento até 2020 para a metrópole paulista e fim do mau cheiro). E que a sociedade exija mais. Saneamento é ação de cidadania para todo dia e não poluir teria de ser um hábito de todos.

População elevada e ocupação irregular são obstáculos
Professora da Poli/USP afirma que projetos de despoluição demoram e adverte que é preciso ajustar as expectativas

O rio citado por nove entre dez pessoas para traçar um comparativo com a situação do Tietê é o Tâmisa, na Inglaterra. Ele já estava poluído no século 17 e seu projeto de despoluição começou em 1860. "Houve um desvio de esgoto no final do século 19, que aliviou o problema por um tempo. Eles jogaram o esgoto para frente, mais perto do mar. Esse paliativo durou 30, 40 anos. Mas, com a 2.ª Guerra, parte da estrutura foi danificada e na década de 1950 ele começou a apresentar novos problemas", explica a professora da Escola Politécnica da USP Mônica Porto.
Ela afirma que não se pode comparar as situações dos rios. "A Região Metropolitana de São Paulo tem 20 milhões de habitantes, enquanto Londres tem 13 milhões. E Londres é um local de urbanização organizada, ao passo que em São Paulo a maioria dos córregos que deságua no Tietê está ocupada por invasões. Não se consegue passar canalização para coleta de esgoto. É preciso realocar as famílias."
Bons resultados. Para Monica, os bons resultados obtidos no Tâmisa e no Reno - que corta Suíça, França, Luxemburgo, Alemanha e Holanda - estão ligados à capacidade de endividamento público e ao nível de investimentos. "O trabalho no Reno demorou 30 anos, com investimento gigantesco. No Tâmisa, este ano, eles voltaram a ter problemas, pois o sistema antigo de coleta obriga os gestores a vazar parte do esgoto para o rio a cada vez que chove muito. Eles têm plano de gastar 3,8 bilhões de libras até 2020 para renovar o sistema."
Ela lembra que os EUA investiram US$ 200 bilhões em 25 anos para universalizar o tratamento de esgoto. "Em nosso caso, os resultados são bons. Passamos do muito ruim para o ruim. É preciso ter persistência." / K.N.

Entre a capital e Salto,Rio Tietê é cenário de poluição e esperança
Sobrevoo encontrou muita espuma, mas há trechos com mata

Afra Balazina

A falta de movimento da água é uma das principais marcas do Rio Tietê na cidade de São Paulo. Na região de Santana de Parnaíba, o azul das piscinas dos condomínios de alto padrão contrasta com o tom de piche do curso d'água que não corre em direção ao mar. E, em Pirapora do Bom Jesus, a espuma é a característica visual mais expressiva do rio.
Do alto de um helicóptero, num sobrevoo entre a capital e Salto passando por cima da Estrada dos Romeiros, ainda é possível sentir o mau cheiro do Tietê. E ver que muitas das matas ciliares que deveriam proteger o rio de receber mais poluição estão destruídas.
No trajeto também encontramos algumas queimadas para limpar pastagens, plantações de eucalipto e diversas pedreiras - que, onde se instalam, deixam o ambiente desolador. E, fora as pessoas que construíram casas na margem, ninguém se aventura a chegar muito perto do rio.
Algum alento vem de reconhecer trechos de Mata Atlântica, bioma que já perdeu 93% de sua área original, pelo caminho. E notar que o traçado retilínio artificial da capital é substituído pelas curvas naturais no interior.
Na parte cercada de mata e corredeiras, o rio com certeza "seria uma ótima opção de lazer, se a água fosse mais limpa", diz o geógrafo da USP Wagner Ribeiro, colunista da rádio Estadão ESPN que acompanhou o voo. Mas fazer rafting ali por enquanto está descartado.
Para ele, o Parque Ecológico do Tietê é um exemplo do bom uso do entorno do rio. "Se equipar e der condições, as pessoas vão utilizar." Na opinião de Ribeiro, o aspecto mais negativo do passeio foi observar a presença de muita espuma e cheiro forte até Salto. "Em Pirapora, foi instalado uma espécie de chuveiro para reduzir a espuma, mas não se vê resultado."
Condição ruim. Carlos Eduardo Carrela, superintendente de Projetos Especiais da Sabesp, explica que a vazão do Tietê é muito baixa, o que dificulta a dispersão dos poluentes. "O Tâmisa tem o dobro da vazão."
Quando o projeto de despoluição do rio começou, o esgoto gerado por 83% da população da Região Metropolitana de São Paulo não era tratado. Hoje, 70% do esgoto coletado é tratado.
Os trabalhos, segundo a Sabesp, permitiram que 8,5 milhões de pessoas passassem a ter esgoto tratado - o que seria capaz de atender uma cidade do tamanho de Londres. Com isso, a mancha de poluição, que antes chegava até a barragem de Barra Bonita, agora está em Salto - redução de 160 quilômetros.
Nesta terceira fase do projeto, que vai até 2015, 28 municípios da Região Metropolitana de São Paulo terão obras. Apesar de afirmar que o rio terá condições de abrigar peixes até o fim da década, a Sabesp não ousa falar que poderemos beber água do Tietê. Até porque, mesmo livre do esgoto, ele ainda recebe muito lixo e poluição difusa (como fuligem carregada pela chuva).
É por isso que tanto a Sabesp quanto as ONGs afirmam que apenas a ação do governo não basta: é fundamental o comprometimento de toda a população. Ainda se vê pessoas jogando móveis e objetos no rio. Parte da culpa é da coleta ineficiente e da falta de educação das pessoas.
Os dados atuais de monitoramento da qualidade da água obtidos pelos grupos de voluntários da SOS Mata Atlântica mostram que ainda há um longo caminho a trilhar. Nas bacias do Alto e Médio Tietê, de 338 pontos de coleta, 10,35% tiveram qualidade considerada péssima e 41,42%, ruim. No início da segunda etapa da despoluição, porém, a situação era pior: 11,11% dos pontos tinham classificação péssima e 51,85% ruim.

OESP, 22/09/2011, Especial, p. H1-H5

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,projeto-tiete-20-anos-o-rio…
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,iniciativa-da-radio-eldorad…
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sanear-e-acao--de-cidadania…
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,entre-a-capital-e-saltorio-…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.