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Profetas do sertão miram o horizonte para farejar chuva

FSP, Brasil, p. A6
18 de Jan de 2004

Profetas do sertão miram o horizonte para farejar chuva
Encontro no Ceará reúne "meteorologistas naturais"

Flávia Marreiro
Enviada especial a Quixadá

"E aí, seu Chico Leiteiro, chove?" Do alto da árvore, Francisco dos Santos mostrou: "Cupim com asa, sinal de chuva".
Era domingo de céu sem nuvens -"descascado"-, pouco mais do meio-dia, e Chico Leiteiro (o apelido vem da ordenha e distribuição de leite que faz), 66, alcançara com agilidade o cupinzeiro, um dos elementos que usa para prever o "inverno" (a época das chuvas) na região de Quixadá, das mais secas do Ceará.
No dia anterior, sábado, último dia 10, mesma roupa, chinelos e meio-sorriso, apesar de menos à vontade por falar com microfone para quase cem pessoas, ele apresentou a previsão no Encontro de Profetas Populares: a reunião que une em janeiro, desde 1996, meteorologistas profissionais e amadores, geógrafos e, em média, 20 "profetas da chuva" da região no auditório da associação de lojistas da cidade.
Os "profetas", convidados pelos organizadores entre os reconhecidos por saber se vai ser ano de fartura ou seca, vieram, na edição de 2004, de quatro cidades: Quixadá, Banabuiú, Ibaretama e Camocim.
Na platéia, alguns agricultores, secretários municipais, gente da cidade e uma dúzia de repórteres de jornais, da TV e de rádios.
Ao lado dos cupins de Leiteiro, as observações do horizonte, do comportamento de animais e das pedras de sal ao ar livre (veja as "experiências" em quadro) -métodos passados de pai para filho ou desenvolvidos ao longo do tempo-, sem contar predições em sonhos e visões.

"ANO DE QUATRO"
"Digo que não é um "ano de quatro" como a gente esperava", disse, grave, outro profeta, Espedito Silva. É que a previsão poderia desmanchar a expectativa boa, tradição nos sertões, de que "ano de quatro" -os terminados em quatro- são muito bons de chuva. Era preciso ter certeza: "Pegar esse nome de profeta para quando acabar errar... É muito ruim. Peço em sonho ao meu anjo da guarda que me diga a verdade".
O meteorologista da Funceme (órgão oficial de previsão no Estado), lado a lado com os "profetas", falou de El Niño, um dos fenômenos causadores da seca. Um geógrafo professor da Universidade Estadual do Ceará fez suas ponderações. Entre os depoimentos, "profetas" que acumulavam a função de poetas recitavam. Houve cantoria de viola e um deputado federal apareceu de surpresa, ao final, para falar aos profetas em nome da bancada do Nordeste.
Como em todos os anos, não saiu ata nem parecer unificado da Babel. E nem poderia, já que o clima entre alguns profetas não é dos mais límpidos. Alguns desautorizam a previsão dos colegas -"Não tem nada a ver chuva com olhar formiga, cupim. O que importa é olhar o mês de julho anterior"- e desafiam até a Funceme (o órgão só deve apresentar sua previsão oficial de chuvas para 2004 na sexta-feira, mas antecipou que as chuvas devem ficar dentro na média histórica).
Ainda assim, as rádios da região e até os jornais, porém, acabam, ao final dos encontros, reproduzindo uma espécie de placar (ou a "profecia mais freqüente"). O de 2004 ficou assim: 18 previsões para boas chuvas, contra 2 para tempo "desmantelado" (sem regra).
Foi o gerente de concessões da Cagece (a companhia estadual de água), Helder Cortez, que teve a idéia de convidar profetas -espalhados, ainda hoje, no Nordeste rural, tradição debitada à herança indígena e, em parte, à ibérica- para a conferência inédita, quase inverossímil. Conseguiu o apoio dos lojistas da cidade, da prefeitura e, em alguns casos, meios para trazer os "profetas", que não recebem dinheiro para ir ao encontro.
Gilmar de Carvalho, professor da Universidade Federal do Ceará e estudioso da cultura popular, explica o termo: "Essa construção "profetas da chuva" me parece não vir deles, mas de fora. Como vivemos um processo muito doloroso de expectativa de chuva, talvez tenham passado a chamá-los de "profetas da chuva" e não algo como interlocutores da natureza. Muito em função da nossa carência, mas em função também da popularização da profecia no Nordeste brasileiro".
Foi em Quixeramobim, cidade da qual Quixadá se desmembrou, que nasceu Antonio Conselheiro (1830-1897), o profeta mais famoso do Nordeste.
Desde a época de Conselheiro que chover ou não é variável determinante em Quixadá. A região foi a primeira do país a receber obra contra a seca -o açude Cedro, construído de 1888 a 1906. É também lugar de memória dolorida das grandes secas. E é lá que 12 mil pessoas dependem, hoje, de carros-pipa para sobreviver.

A CIÊNCIA E OS PROFETAS
Nesse cenário, a repercussão e a força dos "profetas" chegam a ser mais do que curiosas. "Pela necessidade, na primeira chuva, o pequeno produtor planta. Ele precisa comer. Se a previsão tiver sido ruim, ele reza para que ela seja errada", diz o meteorologista da Funceme, Namir Mello.
As "experiências" dos profetas ainda não foram confirmadas cientificamente. Mas há indicativos, dizem meteorologistas, de que o comportamento de animais pode, sim, ajudar a previsão.
Para a Funceme, participar do encontro têm objetivo estratégico: aproximar-se dos "profetas", já que têm a simpatia popular.
A tentativa é melhorar a comunicação com seu público e aumentar a credibilidade, arranhada desde o erro histórico em 1993. Naquele ano, o órgão previu boas chuvas, mas houve seca. "A previsão deles calibra o sentimento, a esperança do sertanejo", diz o presidente da fundação, Francisco de Assis Souza.
Para o professor Carvalho, tal conduta pode ser questionável: "Há uma apropriação pela cultura oficial desse saber popular. Tem um lado interessante, de valorizar, mas às vezes parece ser forma de livrar responsabilidade de quem tem que tratar isso como uma maneira rigorosa, técnica".

"Se a previsão for ruim, não digo"

Da enviada especial a Quixadá

Chico Mariano é "pop". Antes de iniciar o Encontro de Profetas Populares, já conversava em reservado com jornalistas, formavam-se rodinhas em torno dele.
Camisa branca, boina preta, pegou o microfone, pediu "uma salva de palmas" para os organizadores da reunião. Estava à vontade: "Profeta? Só teve um verdadeiro, que foi Noé. O primeiro profeta do mundo passou 40 anos anunciando. Ninguém acreditou. "É um doido, besta". Aqui ainda tem uns daquele tempo de Noé".
O recado era para os que, porventura, duvidassem de suas "profecias". Uma resposta a Raimundo Nonato, 68, um dos poucos agricultores da platéia: "Já vi o Mariano errar muito". Nonato, embora um profeta da chuva, já que também observava a lua para prever estiagens, nunca quis participar do encontro. "Nunca errei", disse Mariano, 69, à reportagem. A autoridade vinha do seu "conhecimento" da água.
Já a fama vinha da cobertura dos jornais: "Previsão de Chico Mariano preocupa" foi título de reportagem, em 1999, no "Diário do Nordeste", jornal de maior circulação no Ceará. A preocupação, porém, foi em vão: choveu em 99.
Mariano faz previsão olhando o céu do mês de julho: se em 1o de julho há nuvens, é janeiro de chuva. Se o dia 2 é limpo, fevereiro seco. E não tem cerimônia em desconsiderar métodos alheios. "Isso é conversa dele, homem", ria, ao falar da "experiência" de previsão de Paulo Costa, 58, dentista que também participava do encontro de profetas apresentando a "vigília de Noé" -método que inclui observar o céu por 40 dias, rezas e abstinência sexual.
Mariano e Costa estavam, na tarde do dia 10, junto com outro profeta, Joaquim Santiago. Embora não fossem amigos, eles conviviam algumas horas para a gravação de um documentário. "Profetas da Chuva", que deve ficar pronto em julho, é rodado desde 2002, dirigido pelo cineasta cearense Marcus Moura.
À câmera, Mariano dirá que a técnica de prever as chuvas aprendeu com o avô, mas que ainda não a passou a nenhum dos seus sete filhos. Deve dizer também, como disse à reportagem, em tom de confissão, que nem sempre diz tudo que prevê: "Já viu médico dizer para o paciente que ele vai morrer? Ele diz que tem esperança. Vai ver o bicho escapa. É a mesma coisa comigo. Se for ruim demais, não digo tudo..."

Livretos circulavam com "profecias" do tempo

Da enviada especial a Quixadá

Da tradição oral ao papel. Da Idade Média ao Nordeste. As "experiências" dos profetas das chuvas envolvem um amplo circuito -do imaginário de gerações, cordéis (com folhetos a favor e contra as previsões) e músicas ("Asa Branca", de Luiz Gonzaga, por exemplo). Mas as ligações alcançam ainda livreto publicado pela primeira vez em Portugal em 1473: "Lunário Perpétuo", manual para assuntos aleatórios que trazia uma tabela capaz de prever o tempo em todas as eras.
Em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), o livro, adaptado, virou, nos anos 40, o "Lunário Moderno ou Manual do Nordestino". Depois, surgiram as versões anuais do almanaque. O mais famoso deles -"O Juízo do Ano", editado por Manoel Caboclo- chegou a ter 35 mil cópias e circulou de 1960 a 1996.

FSP, 18/01/2004, Brasil, p. A6

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