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Autor: Lia Hama
11 de Jun de 2024
Desde 2017, ONG apoiada por MacKenzie Scott e Jeff Bezos doou US$ 85 milhões a organizações indígenas, incluindo da Amazônia
Em 2017, o ambientalista norte-americano Peter Seligmann recebeu uma ligação do amigo Sebastião Salgado, que tinha acabado de voltar do Vale do Javari, no oeste do Amazonas. O fotógrafo brasileiro visitou a região que possui a maior concentração de povos indígenas isolados do planeta e registrou imagens que mais tarde integrariam a exposição "Amazônia", de 2022. "Salgado me contou dos desafios enfrentados pelos indígenas do Vale do Javari e perguntou se havia alguma organização que poderia ajudá-los", conta o norte-americano.
Na época, Seligmann havia deixado o cargo de CEO da Conservation International, ONG ambientalista criada por ele em 1987, e fundara a Nia Tero ("Nossa terra", em esperanto), instituição com sede em Seattle, nos EUA, cujo objetivo é apoiar povos indígenas na proteção de seus modos de vida e territórios.
"Me reuni com Beto Marubo, líder da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), e fui conhecer a região onde ele vive. Ali pude ver de perto as ameaças do garimpo, da pesca ilegal, do narcotráfico e do esvaziamento de órgãos governamentais de proteção aos indígenas", lembra Seligmann.
Os povos do Vale do Javari fazem parte dos 271 grupos indígenas que são apoiados financeiramente pela Nia Tero, organização da qual Seligmann é CEO. Desde sua fundação em 2017, a ONG afirma ter doado US$ 85 milhões a organizações de povos indígenas e seus aliados, com prioridade para os que habitam a Amazônia, a América do Norte e as Ilhas do Pacífico. A expectativa é que o valor atinja US$ 100 milhões até o final do ano. Os recursos ajudam a proteger uma área total de 128 milhões de hectares, maior do que o Estado do Pará.
Em entrevista a Um Só Planeta, o ambientalista de 73 anos falou sobre o papel exercido pelos povos indígenas no combate ao aquecimento global e na proteção da biodiversidade, a importância do engajamento de empresas e consumidores para a saúde do planeta - Seligmann integra o conselho da companhia aérea brasileira Azul - e os preparativos para a COP 30, que ocorrerá no ano que vem em Belém.
UM SÓ PLANETA - Você ficou conhecido como um dos principais nomes da área de conservação ambiental em todo o mundo. Por que decidiu fundar há sete anos a Nia Tero, voltada para apoiar povos indígenas?
PETER SELIGMANN - Entre 2012 e 2017, no período em que estava preparando a transição para deixar o cargo de CEO da Conservation International, eu e minha equipe trabalhávamos na ideia de usar soluções baseadas na natureza para combater o aquecimento global. Isso envolveu uma pesquisa sobre o papel que as florestas, os mangues e as algas marinhas exercem no sequestro de carbono da atmosfera.
Uma equipe de cientistas me mostrou um mapa com os locais mais importantes do planeta que exercem essa função. Perguntei a eles: "A quem pertence esses territórios?". Foi quando me dei conta do papel dos povos indígenas como guardiões de territórios que são fundamentais para combater as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade. Metade das florestas do planeta estão sob a guarda de povos indígenas e 40% da biodiversidade global se encontra em suas terras. Nia Tero é uma organização voltada para apoiar povos indígenas que estão comprometidos com a proteção desses territórios.
Como é o trabalho que vocês desenvolvem com os indígenas?
Procuramos por parceiros indígenas que confiam em nós e em quem nós confiamos. Desenvolvemos uma relação de parceria, estabelecemos objetivos em comum e damos apoio para o que eles solicitam. Um dos melhores exemplos é a nossa parceria com a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), no Amazonas. Fomos conhecer a região onde eles moram, ouvimos atentamente sobre suas necessidades e conversamos sobre o que seria necessário para aumentar o monitoramento e a segurança do território de forma a protegê-lo contra invasores e doenças. Beto Marubo, líder da Univaja, e outras lideranças também foram nos visitar em Seattle. Até hoje somos importantes apoiadores deles e encorajamos outras instituições a fazerem o mesmo.
Vocês dão o dinheiro e eles decidem o que fazer com os recursos?
Nossos fundos vão para organizações indígenas e não indígenas que eles, indígenas, nos pedem para apoiar. Damos dinheiro e oferecemos equipes técnicas para que eles possam fortalecer a administração de suas finanças e a capacidade de obter recursos. Isso é importante porque, apesar do enorme papel que exercem para manter a saúde do planeta, os povos indígenas recebem menos de 1% dos recursos de filantropia existentes. Isso se deve, em parte, a uma enorme desconexão entre a cultura e as práticas indígenas e os fundos de filantropia, governos e agências de desenvolvimento.
Existe um desconhecimento por parte dos indígenas sobre como obter esses recursos?
São duas coisas: uma é a falta de conhecimento por parte das instituições filantrópicas, das agências multilaterais e dos governos sobre o papel fundamental que os povos indígenas exercem para a saúde do planeta. As pessoas não entendem o fato de que os povos indígenas enxergam a floresta e os rios como se fossem parentes deles e não como commodities. Além disso, o quadro regulatório que orienta essas organizações exige certos pré-requisitos burocráticos para obter financiamento que são de difícil compreensão para as culturas indígenas. Então temos que pensar em como criar pontes entre esses dois mundos para que esses recursos cheguem aos indígenas.
Quem financia a Nia Tero?
Temos apoio de várias organizações, incluindo a Mulago Foundation, a MacArthur Foundation, a Emerson Collective e de filantropos como MacKenzie Scott e Jeff Bezos.
Qual é a participação indígena no conselho de administração e na equipe da Nia Tero? Mais de 50%?
Somos 12 membros do conselho e, destes, 7 são indígenas. O presidente do conselho é do povo Maori, da Nova Zelândia. A vice-presidente é do povo Miskita, da Nicarágua. O mesmo acontece com nossa equipe composta tanto por membros indígenas como não indígenas. Somos uma organização que tem como objetivo ser uma ponte entre esses dois mundos.
No Brasil, há indígenas que são favoráveis à exploração da mineração e do petróleo em seus territórios. O que acontece quando um grupo indígena toma uma decisão que vai contra aquilo que vocês defendem?
Quando você olha para um vasto território, existe uma série de decisões que precisam ser tomadas. Se for uma decisão que garanta a segurança daquele território indígena, de seu ecossistema e de sua cultura, nós vamos apoiar. Se não for, não vamos apoiar. É uma relação entre duas partes, que requer decisões de ambos os lados. Até agora não tivemos nenhuma experiência com povos indígenas dizendo "Não estamos interessados em proteger nossas terras". Em alguns lugares, há desenvolvimento econômico e está tudo certo. Entendemos que eles precisam cuidar de suas famílias e os apoiamos.
Existe algum projeto relacionado ao mercado de carbono?
Os mercados de carbono são controversos entre os indígenas e isso está relacionado ao histórico de relacionamento deles com o governo e o setor privado. Ao longo do tempo, houve promessas que não foram cumpridas, então há muita descrença por parte dos indígenas, o que é legítimo. Alguns grupos estão interessados em participar do mercado de carbono. Outros, não. No Quênia, por exemplo, o povo Massai fez acordos interessantes para venda de créditos de carbono. Eles estão recebendo milhões de dólares para financiar a proteção de seus territórios e beneficiar suas famílias.
Quais são os planos da sua organização para a COP 30 em Belém no ano que vem?
Estaremos lá junto com nossos parceiros indígenas. Parte de nossa estratégia é atuar para que as políticas dos governos em todo o mundo reconheçam que é de interesse deles apoiar os povos indígenas em seus direitos e na segurança de seus territórios por uma série de razões, inclusive para enfrentar a crise climática. Estaremos em Belém para conseguir mais recursos para as organizações indígenas, inclusive estamos trabalhando para conectá-las com grandes fundos, como o Fundo Verde para o Clima (fundo da ONU voltado para mitigação e adaptação às mudanças climáticas em países em desenvolvimento).
Você integra o conselho da companhia aérea brasileira Azul. Você enxerga, no setor privado, empresas que, de fato, estão comprometidas em reduzir suas emissões de carbono?
Vejo muitas empresas pensando nesse tema. Nas nossas conversas no conselho da Azul, reconhecemos que nossa principal emissão vem da queima de combustível e que, até conseguirmos um combustível que seja carbon free, não conseguiremos resolver o problema. Hoje o combustível sustentável é quatro vezes mais caro do que o comum. Estamos conversando com outras companhias aéreas para aumentar a demanda, de forma que os preços caiam. Então vejo uma tentativa sincera, mas é difícil fazer a transição. Essa é a realidade de muitas empresas de diferentes setores que temem aumentar seus custos e, com isso, perder a competividade.
Qual é a saída?
O que não muda é o poder do consumidor. Se os consumidores exigirem, as empresas terão que segui-los. Atualmente os consumidores dizem: "Parem de usar combustíveis fósseis", mas eles mesmos continuam a consumir gasolina. Precisamos da ação dos consumidores e dos eleitores, isso irá acelerar a mudança que precisamos. Na sociedade moderna, estamos acostumados a pensar no curto prazo, nos resultados trimestrais das empresas, e perdemos o horizonte de vista. É preciso buscar um sistema de valores que nos ajude a tomar melhores decisões de longo prazo. Temos que aprender com povos indígenas que há milhares de anos vivem em harmonia com a natureza porque entendem que todos os seres estão relacionados e dependem uns dos outros para sobreviver.
https://umsoplaneta.globo.com/clima/noticia/2024/06/11/povos-indigenas-…
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