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Povo tem 'fome'de aprender

A Crítica, Tema do Dia, p. A6
07 de Set de 2008

Povo tem 'fome'de aprender
Populações indígenas cobram dos candidatos maior compromisso em investimentos na área de educação

Em comunidades carentes de infra-estrutura, fontes de renda e acesso à informação, a Educação é a principal reivindicação dos índios que vivem às margens do Içana e seus afluentes.
Na região, a maioria das escolas é construída pelos próprios moradores com barro, madeira e palha. As carteiras escolares estão em frangalhos. A merenda escolar chega uma vez por ano e não dá para todos. Quem quiser completar o Ensino Médio têm de ir a alguma comunidade pólo ou para a sede do município, o que é inviável para a maioria das famílias indígenas.
Uapuí-Cachoeira, no rio Aiari, é um lugar sagrado para os baniwa. O local repleto de inscrições rupestres é considerado o "berço do mundo" pela etnia.
Mesmo com tamanha importância, a "escola" do lugar é precária. Trata-se de um pequeno prédio de pau-a-pique com pouco mais de 12 metros quadrados divididos em duas salas onde 82 crianças se revezam na hora de estudar.
O professor Alberto de Lima da Silva, 45, explica que na maioria das comunidades do rio Içana, as escolas são construídas pelos indígenas e que a prefeitura entra apenas com o pagamento dos salários dos professores, merenda e material didático, sendo que os dois últimos quase sempre chegam atrasados.
Durante a conversa com Pedro Garcia e André Baniwa, Alberto se levanta e começa a falar em tom grave. Nem é preciso entender baniwa para perceber sua indignação. "Essa escola é uma vergonha. Se nós não tivéssemos construído ela, as crianças não iam estudar", diz Alberto em sua língua materna.
O professor vai a um matagal e exibe esquadrias metálicas enferrujadas. "Isso aqui era para construir uma escola. A prefeitura mandou o metal, a gente tirou a madeira, mas até agora não vieram construir. A madeira já apodreceu", lamenta o professor da etnia baniwa.
'NA PAREDE'
O isolamento geográfico não é sinônimo de alienação política entre os índios de São Gabriel da Cachoeira. A atuação de quase duas décadas do movimento indígena capitaneado pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e a assessoria do Instituto Sócioambiental (ISA) despertaram uma consciência política que boa parte dos habitantes das capitais não têm.
Um exemplo de toda essa conscientização ocorreu em Mauá-Cachoeira, comunidade com pouco mais de 20 famílias no rio Içana. Lá, a comitiva foi recebida pelo professor José Gomes de Souza, 23, responsável por 32 alunos.
Após os cumprimentos, o compromisso. José aceita ouvir os candidatos desde que eles assinassem um ofício manuscrito em duas vias onde estão as reivindicações da comunidade: uma escola nova e uma casa de oração. "Vocês assinam e se foram eleitos, a gente leva a nossa via para São Gabriel para cobrar o que está escrito", disparou José Gomes. Hesitante, Pedro assina e começa o discurso.
O mesmo rito se repete em Vista Alegre, no rio Cuiari. Desta vez, a principal queixa dos moradores é a construção do novo centro comunitário de 12X22 metros, prometido em 2006 e que até agora não foi erguido. "O centro é importante pra gente. É lá que nós fazemos as reuniões da comunidade e assistimos televisão quando conseguimos combustível pro nosso geradorzinho", conta o "capitão" Emílio Rozendo, 46.

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'' Renilce Helen Promotora de Justiça de São Gabriel da Cachoeira

"É muito difícil coibir a compra de votos aqui em São Gabriel da Cachoeira", afirma a promotora. As enormes distâncias entre a sede e a maior parte das comunidades aliada à falta de estrutura da Justiça Eleitoral criam um cenário ideal para burlar a lei. A principal moeda na compra de votos na região é a gasolina. Não há seções em todas as comunidades e boa parte dos moradores de São Gabriel têm de pegar os rios em direção a uma comunidade pólo. "Essa é uma brecha. Porque os candidatos doam o combustível para que os comunitários se desloquem à zona de votação e a Justiça Eleitoral não tem como competir", afirma a promotora.
Nas últimas semanas, Renilce Helen ordenou fiscalizações nos portos da sede de São Gabriel para coibir a subida de combustível que poderia ser utilizado na compra de votos, mas esbarrou na falta de estrutura.
A Justiça Eleitoral não tem funcionários disponíveis em São Gabriel.

Promessas desfeitas têm conseqüências

Há um ano e meio, a comunidade de São Joaquim, no Alto Içana, era uma aldeia sem cacique. Cansados do desgaste e das dores de cabeça de liderar uma comunidade praticamente esquecida pelo Poder Público, ninguém queria ser o "capitão" de São Joaquim.
O "capitão" é o responsável pela organização social das aldeias da bacia do rio Negro, da qual o Içana faz parte e é sua maior liderança. Não se sabe exatamente quando o sistema de escolha dos capitães deixou de ser hereditário e passou a ser pelo voto dos comunitários, mas o fato é que o posto ainda impõe certo respeito.
O problema em São Joaquim começou quando o capitão Ramiro Luiz Mariauvo, 48, deixou o posto após quatro anos. A vaga ficou aberta, mas nenhum morador se candidatou ao posto. Diante do vácuo de poder, a comunidade se reuniu e elegeu, por aclamação, Carlos Lourenço Gregório, 36 anos.
De fala mansa, mas pouco domínio do português, Carlos tem a "ingrata" missão de trazer benefícios para a comunidade. "Quando o candidato chega na comunidade, promete muita coisa. Mas quando a gente vai na sede cobrar o que ele prometeu, diz que não tem dinheiro ou manda dizer que não está na cidade. A gente tem que voltar de mãos abanando. As pessoas não entendem", diz Carlos.
O antropólogo Aloísio Cabálzar, que há mais de 10 anos trabalha em São Gabriel da Cachoeira, se mostra preocupado com o cenário. "Os moradores têm dificuldade para entender que nem todas as promessas são cumpridas. Alguns colocam a culpa pelo não cumprimento delas nos capitães. Dizem que ele não chegou a falar com o prefeito ou que não conseguiu se expressar. Esse é um problema com o qual eles terão que lidar", diz.

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Sub-notificação dos dados do Ideb

Apesar de ter 233 escolas (entre estaduais e municipais), o Ideb de São Gabriel da Cachoeira é composto pelos dados de apenas cinco escolas. Professores da região afirmam que se os dados das demais escolas fossem computados, o Ideb de São Gabriel seria ainda menor que os 3,2 pontos atuais

A Crítica, 07/09/2008, Tema do Dia, p. A6

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