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Potiguara comemoram consolidação politíca em Baía da Traíção

Site da Funai-Brasília-DF
28 de Out de 2004

A consolidação política dos Potiguara que vivem nos municípios de Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação, no Litoral Norte da Paraíba, é uma resposta aos não índios da região que vem sendo elaborada desde 1956. Na época, o Cacique Geral, Daniel Santana, já falecido, se tornou o primeiro vice-prefeito índio do Nordeste e depois passou a influenciar novas lideranças para que se integrassem ao universo político-partidário dos "brancos". Nas eleições de 2004 os indígenas de Baía da Traição elegeram cinco vereadores e o vice-prefeito; os de Marcação, cinco vereadores, prefeito e vice.

- Os índios não tinham vez para os usineiros e eu via que nós devíamos participar da política para saber o que os "brancos" iam trazer para a gente - explica João Baptista Faustino, 71 anos, ex-Cacique Geral dos Potiguara e ex-vereador, conhecido como a memória política em Baía da Traição.

Essa tradição - que começa a ser sedimentada com a presença de Daniel, pai do atual prefeito (no segundo mandato), Marcos Santana, passa pela contribuição de João Baptista, com experiência política de longas datas - atinge a primeira etapa de seu processo de consolidação com a entrada em cena de Nanci Cassiano Soares, 63 anos, a primeira prefeita índia do Brasil, eleita em 1992.

- Os não índios começavam a olhar a nossa força política e viam no eleitor Potiguara uma forma de atrair para eles a atenção que precisavam para aumentar seus negócios - comenta Dona Nanci Cassiano, funcionária aposentada da Funai, enfermeira e parteira nas horas vagas.

Dona Nanci está aposentada da política também, depois de enfrentar dois cânceres e os dissabores da vida política numa terra cercada por problemas de invasões promovidas pelas usinas açucareiras. Ao expandir seus canaviais, com o advento do Proalcool, na década de 80, elas difundiram a ação devastadora de suas plantações pelas terras indígenas Potiguara, de 26 aldeias que compõem as áreas definidas como "tradicionalmente indígenas" e homologadas pelo governo brasileiro, em 1983. Dos 47 mil ha. que deveriam pertencer aos índios, 14 mil foram presenteados aos usineiros pelo regime de exceção, lembra o Cacique Baptista.

Os índios foram sendo empurrados aos poucos para fora de suas terras, impossibilitados, em grande parte, de viabilizar suas lavouras familiares e acabaram se transformando em trabalhadores rurais com empregos sazonais, nos canaviais, e um salário de fome. "Além da poluição e do assoreamento dos rios, a cana-de-açúcar e o desmatamento afetaram nossos mangues, destruíram os tabuleiros; acabou a caça e a pesca foi prejudicada", resume o Cacique Caboclinho, atualmente a principal liderança dos Potiguara.

Três décadas após o fenômeno da expansão da monocultura da cana - de - açúcar, os problemas são os mesmos e a sua raiz começa a se fixar e a se alastrar na região, de forma insidiosa, quando o governo brasileiro, no tempo do Serviço de Proteção ao Índio, passa a distribuir títulos de propriedade de origem duvidosa. "Esta é a pior herança de um poderio econômico que começa a se fortalecer ainda no período do Império", diz o ex-vereador José Ciríaco, o Capitão, uma das principais lideranças dos Potiguara.

Herança esta que não intimida os Potiguara. Eles a enfrentam com alternativas estratégicas para bloquear o avanço dos canaviais, tanto nas mesas de negociações quanto na busca de ações não muito amistosas.

Por exemplo, no aldeamento de Monte-Mor, ou Preguiça, a 8 Km de Baía da Traição, onde o problema é mais visível, os índios construíram casas e fizeram roçados em áreas de litígio que, originalmente, pertencem a eles. A idéia das lideranças é impedir a expansão dos canaviais na região e isso é um fato. O problema é que agora juízes paraibanos entraram ações de reintegração de posse em favor dos usineiros e o Ministério Público Federal procura resolver a questão de forma pacífica, dentro da lei, na defesa das terras indígenas de Monte-Mor.

A situação do aldeamento dos Potiguara se assemelha ao que está ocorrendo com os arrozais de Raposa Serra do Sol, em Roraima, onde a Justiça defende muito mais os interesses dos não índios do que os verdadeiros habitantes daquelas terras, as etnias de vários povos com direito a usufruto das glebas. A diferença é que a terra dos Potiguara já está homologada e registrada no Departamento de Patrimônio da União em cartórios municipais.

Monte-Mor é de fato uma pequena Raposa com suas 700 famílias Potiguara que procuram sobreviver da lavoura, criação de animais, coleta de crustáceos e de moluscos, extrativismo vegetal e artesanato, apesar da cana-de-açúcar. Fica entre Marcação e Baía da Traição, um conhecido reduto de resistência aos empresários do açúcar que contam com apoio de políticos e de representantes da Justiça na hora de concederem liminares que obrigam os índios a deixarem suas terras.

Política da cisão - Os Potiguara se orgulham do seu nível de organização social, harmonia entre os habitantes das 26 aldeias e de sua razoável condição de vida, em comparação com os graus de carência registrados em outras etnias. Orgulham-se, também, de ter a maioria dos políticos nas câmaras municipais de Baía da Traição e de Marcação e de sobreviverem no mesmo lugar desde o primeiro relato de sua existência, pela Coroa Portuguesa, em 1501. Na época eram cerca de 100 mil pessoas; hoje, são 10 mil os sobreviventes dos massacres do passado.

São também famosos pela sua capacidade de negociação, perseverança e crença no êxito de seus objetivos comunitários. "Eles sentam na mesma mesa com o adversário e conseguem dialogar", diz Petrônio Machado, administrador regional de João Pessoa (PB). Na política, conforme Petrônio, eles procuram não misturar as coisas. "Mesmo sendo adversários nas eleições, por questões partidárias, eles não brigam dentro das aldeias e se respeitam entre si", explica.

Essa arquitetura de fraternidade, construída em mais de cinco séculos, porém, começa a ser abalada pelos artifícios políticos dos usineiros da região. Eles plantaram as sementes da divergência entre os Potiguara, primeiro quando perceberam que a união dos índios poderia ser um empecilho para seus projetos. Então, resolveram interferir de modo mais contundente no financiamento das campanhas; depois, passaram a cooptar índios com propostas de participação de lucros no cultivo da cana-de-açúcar.

- Mas o que eles ganham é muito pouco em relação aos lucros dos usineiros. Saem perdendo dos dois lados: porque a atividade polui os rios e mata a fauna e provoca divisões entre as lideranças que não apóiam a exploração da monocultura - avalia Machado. E isso gera conflitos entre os que querem preservar o meio ambiente e os que querem obter lucros, acrescenta o administrador. Há ainda um terceiro braço de lideranças que opta por eles mesmos plantarem a cana e venderem às usinas.

Essas são questões bem visíveis numa conversa com as principais lideranças da região que, aos poucos, sem perceber, vêm permitindo que os tentáculos da política partidária dos usineiros causem rachaduras em seu sistema de vida coletiva, erigido sobre as bases de uma aparente harmonia entre os caciques das 26 aldeias e outros líderes potiguara.

O cacique Djalma Domingos, 54 anos, da aldeia de São Francisco (a maior de todas), por exemplo, se desentendeu nestas eleições com o ex-cacique João Baptista Faustino, responsável pelo começo da consolidação política dos indígenas de Baía da Traição. Os dois foram candidatos ao cargo de vereador, mas perderam as eleições. Passaram um bom tempo intrigados, até que no dia 15 de outubro apertaram as mãos e trocaram algumas palavras na casa de seu Baptista. Foi o administrador Petrônio Machado o responsável pelo reencontro dos caciques. Relembraram fatos das primeiras campanhas e se despediram em paz. Ou deram uma trégua, não se sabe.

Este não é o único exemplo das dissensões políticas causadas pelas disputas nas urnas e pela influência corrosiva dos não índios que buscam romper os laços de fraternidade entre os Potiguara para ampliar os plantios de cana-de-açúcar.

A briga do beiju contra a lagosta - Manoel Messias, 41 anos, é o atual presidente da Câmara Municipal de Baía da Traição e está em seu terceiro mandato. Primo de Dona Nanci Cassiano Soares, ele aprendeu a dar valor às riquezas da mata e das águas dos rios e do mar com seus ancestrais. A defesa do ecossistema de sua região é sua principal plataforma. Sonha em ver concretizados projetos preservacionistas para "salvar o que ainda resta de mata e de bicho". Messias não é contra produção em área indígena, desde que não agrida o meio ambiente.

- A cana-de-açúcar é o nosso problema principal porque estraga o solo e, além disso, eles invadem nossas terras - comenta o vereador e afirma que prefere, por enquanto, apostar no crescimento da cidade a partir de investimentos no turismo e na prestação de serviços.

Em 1992, quando Nanci foi eleita a primeira prefeita indígena do país, Messias tinha 29 anos e preparava sua carreira. "Hoje vemos que o crescimento de nossa política é uma realidade e os não índios reconhecem que não trabalhamos somente para as comunidades indígenas, trabalhamos para o município". Ele se lembra da campanha de sua prima que carregava um curioso slogan: "A briga do Beiju contra a Lagosta".

A concorrente de Nanci ao cargo na prefeitura era uma empresária da pesca da lagosta, financiada por empresas pernambucanas que não se conformaram com a derrota. O articulador político de Nanci, o comerciante Davi Falcão não chegou a ver o trabalho da prefeita.

Eles (Davi e Nanci) prometiam impedir a grilagem de terras em Baía da Traição e Falcão acabou sendo assassinado a tiros dentro de sua própria casa, em plena luz do dia. "Eles queriam me matar, como não conseguiram mataram meu secretário. Não gastei um tostão, não saí de casa para pedir um voto sequer, porque tinha vergonha, mas ganhei a eleição", conta a ex-prefeita, em sua casa, a caminho da Aldeia São Francisco, a mais organizada de todas.

A briga do beiju se explica porque os Potiguara têm nas casas de farinha uma de suas principais atividades de consumo e de renda. "Diziam que a lagosta ia comer o beiju, mas foi o contrário", lembra a enfermeira e ex-servidora da Funai que gostava de fazer partos e orientar as mães sobre os cuidados com a alimentação e a higiene dos recém-nascidos.

Ela sabe muito bem porque passou a ensinar essas práticas: dos seus 22 irmãos, apenas sete (7) sobreviveram. O exemplo serve para a maioria das famílias daquela época, que nem desconfiavam da importância da nutrição adequada e da higiene. "Eles cortavam o cordão umbilical dos bebês com facas, tesouras enferrujadas, canivetes e a criança acabava pegando doenças", diz a ex-prefeita.

A língua perdida - Os Potiguara habitavam em 1500 uma faixa litorânea de mais de 400 léguas entre os estados da Paraíba e Maranhão e falavam o tupi até 1750, quando o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas e obrigou os índios a falarem apenas o português. Aos poucos o idioma original se perdeu na trama lingüística armada pela Coroa Portuguesa e somente agora, 250 anos depois, é que a população Potiguara de Baía da Traição começa a reaprender a língua. Isso só está sendo possível porque em 2001 a Administração Regional de João Pessoa firmou um convênio com a Universidade Estadual de São Paulo (USP) e contratou um professor de Lingüística para ensinar o tupi aos índios de Baía da Traição.

Eduardo Navarro morou seis meses nas aldeias e ao final desse período deixou plantadas as bases de ensino da língua que permitiriam a formação de 16 professores indígenas para ensinar o tupi a crianças da terceira à quinta série, em todas as aldeias. Hoje, além do aprendizado do idioma, as crianças resgataram músicas do passado e se apresentam em suas manifestações culturais falando a língua nativa, sobretudo durante festejos em que dançam uma das versões do Toré.

Com o tempo, Navarro ajudou os professores Potiguara a elaborarem uma cartilha para o ensino do tupi e os resultados são comemorados em cada aldeia da região.

A organização social dos indígenas de Baía da Traição reedita o antigo sistema dos conselhos de lideranças que decidem sobre as iniciativas de suas comunidades seja no aspecto da guerra ou da paz, de medidas para desenvolver projetos sociais e econômicos, quanto ao uso dos recursos da Funai destinados à etnia e onde eles devem ser investidos. "Instalamos aqui o sistema de orçamento participativo em que são os indígenas que decidem onde aplicar essas verbas", explica Machado.

Cada aldeia escolhe um representante para integrar o Conselho de Lideranças e o Conselho de Gestão de Recursos. Esses recursos, embora escassos, com uma média de R$ 10,00 por índio, ao ano, são bem aplicados em projetos de vários gêneros, tanto na compra de equipamentos para roçados, coletas de moluscos, pesca e criatórios de camarões, uma das principais fontes de renda do lugar. Mantêm quatro casas de farinha cuja produção atende o consumo das famílias e ainda sobre para comercializar. Mulheres e crianças cuidam das casas de farinha e da produção do beiju, da farinha de mandioca e outros derivados.

No relatório de auditoria operacional do Tribunal de Contas da União de 06 de agosto de 2004, o sistema de orçamento participativo da Administração Regional de João Pessoa aparece como modelo a ser seguido por outras unidades da Funai. O texto dos auditores se refere à "necessidade de administração planejada na gestão de seus recursos, a exemplo do programa Waimiri Atroari, administrações de Manaus e João Pessoa". Segundo o administrador Petrônio Machado, "são os índios que decidem onde querem ver os recursos aplicados. Não fazemos nada sem consultá-los".

Os eleitos - Na tarde do dia 15 de outubro o futuro prefeito de Marcação, o potiguara Paulo Sérgio, eleito por uma coligação de cinco partidos (PT, PSL, PL, PSB e PRP) não foi localizado no município. Moradores do município disseram que ele está ameaçado de morte e tem evitado aparecer em público, passa mais tempo na casa de amigos e em um dos criatórios de camarões da região.
A história de ameaças de morte e de violência se repete 12 anos após Davi Falcão ter sido assassinado porque ajudou a eleger Nanci prefeita de Baía da Traição. A diferença é que Paulo Sérgio resistiu e está trabalhando com seus assessores para iniciar seus projetos em defesa da comunidade. Pretende investir em educação, saúde, agricultura familiar e meio ambiente com o apoio de parceiros como o Programa Nacional de Agricultura Familiar, do Ministério da Agricultura, o Pronaf, Funasa e departamentos de educação indígena do Ministério da Educação.

A vice-prefeita, a indígena Íris Falcão, também não estava no município pelo mesmo motivo de Paulo Sérgio. Prefere deixar passar essa nuvem de revanchismo pós-eleições e pretende ajudar o prefeito a concretizar seus planos, sobretudo no que diz respeito à resolução de problemas fundiários. Marcação teve cinco vereadores Potiguara eleitos neste pleito e o atual presidente da Câmara, José da Estiva, reeleito este ano, é também um índio.

No caso de Baía da Traição, o prefeito é um não índio casado com uma indígena e irmão de uma índia do primeiro casamento do pai. "Ele não é índio mas identificado com a nossa causa", afirma Adelson Deolindo, vice de Oscar, um Potiguara da Aldeia São Francisco que sonha em melhorar a vida dos indígenas que sofrem com os efeitos da expansão da cana-de-açúcar. Deolindo e Oscar foram eleitos por uma coligação do PMDB com o PV. Além de Deolindo, outros cinco Potiguara assumem seus cargos de vereador na Câmara Municipal de Baía da Traição no dia 1 de janeiro de 2005.

Os Potiguara foram os que mais elegeram representantes indígenas no Brasil, seguidos pelos Pataxó, da Bahia, que fizeram 11 vereadores, etnias de Mato Grosso, com cinco vereadores e do Mato Grosso do Sul, com quatro vereadores, segundo consulta a listas da Câmara dos Deputados sobre os resultados do primeiro turno das eleições municipais.

Com a proximidade do final do ano, os Potiguara de Baía da Traição esperam começa 2005 com outra vitória: a recuperação das terras da ex-sesmaria de Monte-Mor. "Temos certeza que vamos ganhar mais, somos pacientes e temos fé, mais cedo ou mais tarde a Justiça será feita", disse o Cacique Geral Caboclinho, antes da solenidade de homologação de 14 terras indígenas, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio do Planalto, no dia 27 de outubro.

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