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Por R$ 12, ribeirinhos do Amapa viram cobaias expostas a malaria

OESP, Vida, p.A26
10 de Dez de 2005

Por R$ 12, ribeirinhos do Amapá viram cobaias expostas à malária
Moradores recebiam de pesquisadores ligados a universidade dos EUA para expor braços e pernas a picadas de mosquitos
Alcinéa Cavalcante
O promotor de Justiça Haroldo Franco, titular da Promotoria da Cidadania do município de Santana, no Amapá, acusa pesquisadores ligados a uma universidade americana de usar os moradores de São Raimundo do Pirativa como cobaia em suas pesquisas sobre o mosquito transmissor da malária. Franco visitou o vilarejo no final do mês passado. Os ribeirinhos lhe contaram que recebiam R$ 12 para ficar com o braço ou a perna expostos atraindo mosquitos, em turnos de seis horas e meia, durante nove noites seguidas.
No acordo assinado pelos moradores, uma cláusula esclarecia: "Você será solicitado como voluntário para alimentar 100 mosquitos no seu braço ou perna para estudos de marcação e recaptura. Isso ocorrerá duas vezes durante o ano". O acordo leva o carimbo da Universidade da Flórida e cita como "fonte financiadora" o Instituto Nacional de Saúde americano.
Na segunda-feira passada, Haroldo Franco notificou o responsável pela pesquisa no Amapá, Allan Kardec Galardo, e deu prazo de dez dias para que ele apresente documentos que comprovem a autorização da pesquisa e o parecer do Conselho Nacional de Biossegurança. "Se os documentos não forem apresentados, o MP adotará outros procedimentos até que tudo seja devidamente esclarecido", disse o promotor.
Galardo afirma que está providenciando tudo que foi pedido. Ele confirma que a pesquisa é financiada pela Universidade da Flórida, mas diz que está sendo feita em parceria com o governo do Estado do Amapá, Instituto Evandro Chagas (Pará), Universidade de São Paulo e Instituto de Estudos e Pesquisas do Amapá. Ele assegura que a pesquisa foi autorizada pelo Comitê Nacional de Pesquisas com Seres Humanos, um órgão do Ministério da Saúde.
QUILOMBO
Os moradores contaram ao Ministério Público que os pesquisadores atuam na área há três anos e que impedem que agentes da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) realizem a borrifação de repelentes na área. A informação que as pessoas receberam é de que os mosquitos capturados seriam secados com um reagente de acetato de etilo e depois enviados ao Instituto Evandro Chagas, em Belém.
São Raimundo do Pirativa é uma comunidade ribeirinha, formada por cerca de 150 negros, e que reivindica o reconhecimento como comunidade quilombola. Cerca de um terço dos habitantes aderiu ao projeto. Grande parte deles ficou doente. "As pessoas ficaram desnutridas e o dinheiro que recebiam não dava para comprar os remédios. Não tivemos nenhum benefício", disse a líder da comunidade, Maria Siqueira.
O agricultor Pinto Ribeiro disse que só aceitou participar da pesquisa porque, como outros colegas, precisava de dinheiro. "Não valeu a pena pois a única coisa que ganhei foi uma malária", contou. Contaminados, os ribeirinhos desistiram de alimentar os mosquitos e agora acusam os pesquisadores de os terem abandonado.
MOTIVAÇÃO POLÍTICA
O acordo garante que caso os "voluntários" adoeçam em virtude do estudo, "profissionais médicos cuidarão de providenciar uma clínica de saúde local ou na cidade de Macapá. Nenhuma outra compensação será fornecida". Galardo desmente que tenha abandonado os ribeirinhos doentes. "Aconteceram três casos graves e essas pessoas foram para clínicas onde receberam todo o atendimento médico", diz. "Os casos comuns de malária só necessitam de medicamentos em casa mesmo", completa.
Allan Kardec Galardo explica que a pesquisa tem por objetivo determinar se o tipo, a presença e a abundância de mosquitos podem ser usados para monitorar e prevenir o controle da malária, além de determinar os fatores potenciais que influem na transmissão da malária.
Para ele, as denúncias têm motivação política. "Estão querendo desestabilizar nosso trabalho. É uma questão política", afirma Allan Kardec, negando-se, porém, a dar nomes. "Não digo os nomes por uma questão ética. Não sou político, sou técnico."
O procurador Haroldo Franco afirma que nenhuma pesquisa pode ser feita usando "isca humana" com risco de causar qualquer tipo de mal aos voluntários. "E neste caso as 'iscas' estão contraindo malária", diz. Porém, para se habilitar a trabalhar na captura de mosquitos, os "voluntários" tiveram de fazer um curso de capacitação com a duração de 40 horas e certificado conferido pela Secretaria Estadual da Saúde. O manual do curso, elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz e Fundo Nacional de Saúde para captura, manejo e preservação de anofelinos, afirma que os métodos de coleta podem ser isca humana ou animal.
EM PROJETO
Mesmo assim, o presidente do Conselho Regional de Medicina no Amapá, Dardeg Aleixo, disse estar indignado com a situação e prometeu abrir uma sindicância para apurar o caso. "Isso é inadmissível, pois aproveitam a pobreza dos ribeirinhos da Amazônia para fazer experiência e pôr a vida deles em risco", reclamou. Aleixo disse ainda que mesmo que haja aprovação de uma comissão de ética, o CRM não concorda com o fato de utilizar os ribeirinhos como cobaias. "É um caso inacreditável. Infelizmente, nós brasileiros volta e meia servimos de cobaias", declara.
O professor-doutor José Carlos Tavares, da Universidade Federal do Amapá, disse que este não é único caso que está acontecendo no Estado do Amapá sobre experimentações clínicas usando como cobaia os nativos da Amazônia. No dia 29 de novembro, aconteceu na universidade a primeira reunião para criação do Comitê de Ética em Pesquisa. Este comitê tem como objetivo referendar as pesquisas científicas que envolvem o ser humano e animais de experimentação. "O que não for referendado por este comitê será clandestino e poderá ser questionado em instâncias judiciais", disse. Mas por enquanto, o comitê está apenas em projeto.

O QUE DIZ O ACORDO
FONTE FINANCIADORA: Universidade da Flórida, Instituto Nacional de Saúde dos EUA
OBJETIVO DA PESQUISA: Determinar se o tipo, a presença e a abundância de mosquitos podem ser usados para monitorar e melhorar prevenção e controle da malária
PROCEDIMENTO: O voluntário alimentará 100 mosquitos no seu braço ou perna para estudos de marcação e recaptura. Isso ocorrerá duas vezes durante o ano
POSSÍVEIS DESCONFORTOS: O risco é contrair malária. As múltiplas picadas podem provocar irritação e raramente infecção
BENEFÍCIOS: Não há benefícios diretos
EM CASO DE INFECÇÃO: Se o voluntário adoecer, médicos providenciarão uma clínica de saúde local ou na cidade de Macapá
CANCELAMENTO: O voluntário pode ser retirado do estudo sem seu consentimento se o estudo for cancelado e a pesquisa finalizada, ou se a ajuda não for mais necessária

OESP, 10/12/2005, p.A26

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