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Por aqui vai passar o Rodoanel

OESP, Metrópole, p. C1, C3-C4
19 de Mar de 2006

Por aqui vai passar o Rodoanel
Marcos da Dersa já indicam o novo traçado em lugares hoje esquecidos, como ilhota cheia de garças na Billings

Marisa Folgato

Manhã na Represa Billings, São Bernardo do Campo. No braço Taquacetuba, Vila Nova Canaã, garças descansam numa ilhota enquanto dezenas de biguás vão atrás de cardumes de peixes, vez ou outra surrupiados por um martim-pescador. Na margem, com um resquício de mata atlântica exuberante às costas, mulheres pescam. "Se o trecho sul do Rodoanel estivesse pronto, estaríamos pescando bem debaixo do viaduto, na sombra", diz Marilza Guilherme Santini, de 41 anos. "Triste vai ser o barulho. Os bichos vão sumir."

Para a maioria das pessoas, o trecho sul do Rodoanel ainda é uma linha imaginária de 57 quilômetros num mapa da Grande São Paulo, que corta sete municípios - Embu das Artes, Itapecerica da Serra, São Paulo, São Bernardo, Santo André, Ribeirão Pires e Mauá -, e custará R$ 2,65 bilhões. Mas para quem mora na região é realidade. Bem no ponto da pescaria, uma balsa de prospecção da Dersa e estacas de madeira no chão mostram que a obra deve seguir por ali. A ilhota das garças é o ponto onde vai ser apoiado um dos pilares da maior ponte do anel, que terá quatro pistas por sentido e receberá o tráfego rumo ao Porto de Santos.

O Estado conseguiu, com exclusividade, um mapa detalhado com o que deve ser o traçado definitivo (Veja na página C4). A reportagem percorreu ruazinhas de terra, sítios, áreas de mananciais invadidas, propriedades há décadas com a mesma família para contar a expectativa de quem sabe que vai ter de se mudar, mesmo sem querer. A Dersa estima que cerca de 1.700 famílias serão desapropriadas. Mas o número exato depende de cadastramento, que começa na primeira semana de abril.

"Lá para cima, no meio da mata, tem uma mina que brota do barranco. Tão boa", diz o ex-metalúrgico e ex-garimpeiro Moacir de Paula Cruz, de 63 anos, que mora há 10 na Canaã. "Agora é só tranqüilidade. Vai mudar com o Rodoanel, mas não sou contra. Vai ser bom para tirar caminhões de dentro de São Paulo." A estimativa da Dersa é de que o trecho sul do Rodoanel permita reduzir em 43% o tráfego diário de 165 mil caminhões nas Marginais; e em 37% os 25 mil que usam a Avenida dos Bandeirantes.

"Na Vila Balneário, a estrada vai cortar a montanha pela mata atlântica bem preservada. Dá dó. Lutei muitos anos para preservá-la", afirma o serralheiro Hermínio Jerônimo Costa, de 61 anos, presidente do Serviço Aéreo Terrestre de Salvamento e Proteção Ecológica (Sats). "Ninguém é contra o Rodoanel. Aliás, já devia ter sido feito. O problema é o traçado."

Irmã Terezinha Souza Lima ainda não sabe o que dizer aos pais sobre o futuro do Centro Educacional Infantil Jardim Almeida, em Parelheiros. Pelos marcos instalados pela Dersa, ele vai sumir do mapa, assim como a Igreja Rainha da Paz. Ambos estão em obras de ampliação, que andam meio paradas pela incerteza. "Atendemos cem crianças. Se precisar, vamos mudar, claro."

"Pelo menos deve ser feito um parque na mata ao lado da creche, o Itaim, mas ainda é promessa. Os moradores estão em pânico", diz o coordenador do Fórum de Desenvolvimento Sustentável Rumos para Parelheiros, Nério Fernandes. A casa de sua mãe deve ser retirada.

Pelo menos 20 mil m2 dos 48 mil m2 do terreno de Helena Reimberg Hessel Christe, de 55 anos, em Parelheiros, vão virar área de estrada. "No que sobra não dá para ficar, por causa dos caminhões", diz, olhando o gramado interminável, cheio de árvores. Sua família é tão antiga ali que virou até nome de rua. Seu irmão e vizinho, Henrique Reimberg Hessel, de 58, também vai ser atingido. "Fui criado aqui, não queria sair nunca." É o crescimento da cidade. E há compensações prometidas.

Mauá, a grande beneficiada
Rodoanel começará por ali e há planos de ligação com Guarulhos

MARISA FOLGATO

O município de Mauá deve ser o grande beneficiado pelo trecho sul do Rodoanel. Já ganhou a extensão do trajeto original até a Avenida Papa João XXIII, onde terá um cobiçado acesso - os outros são nas Rodovias Anchieta e Imigrantes - e a promessa do governador Geraldo Alckmin de que as obras começarão por ali. Sem falar na possibilidade de criação de um atalho até Guarulhos e o Aeroporto Internacional Franco Montoro, em Cumbica, pela ligação com a Avenida Jacu-Pêssego e a Rodovia Ayrton Senna.

"Calculamos que, com essas ligações com o Porto de Santos e outras estradas via Rodoanel, conseguiremos uma redução de 15% no custo do transporte", diz o secretário de Desenvolvimento Econômico de Mauá, Marcos Soares. Segundo ele, isso já atrai investimentos ou, pelo menos, atenção para o município, um dos menos desenvolvidos do ABC. Soares diz que recebeu 130 consultas de empresas nos últimos meses.

A cidade entrou de cabeça na guerra fiscal, oferecendo incentivos. "De 20% a 30% do valor investido pode ser abatido dos impostos num período de dez anos." Além disso, não deve ter muitos problemas com desapropriações. "Foi deixada uma previsão de passagem do anel viário na época da construção da João XXIII. Os imóveis têm recuo." E só 20% do seu território estão em área de mananciais, ao contrário da maioria dos municípios vizinhos cortados pela obra, nos quais esse índice varia entre 60% e 100%.

São Bernardo do Campo também saiu ganhando, embora tenha 60% do território em área de mananciais. Dois dos acessos ficam na cidade, já beneficiada por ser próxima das Rodovias Imigrantes e Anchieta. "O governador disse que é a melhor esquina do Brasil", conta o prefeito William Dib (PSB).

O prefeito afirma que três centros de distribuição já se instalaram próximo da Anchieta. "O Rodoanel vai melhorar a competitividade. Sofremos com o sobrepeso do transporte. Para chegar ao ABC, um caminhão perde, no mínimo, duas horas preso no trânsito de São Paulo."

Para o diretor da Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio (Embraesp), Luiz Paulo Pompéia, é cedo para falar em valorização de imóveis. "Quando vier, será mais forte no acesso da Anchieta."

Estacas da Dersa, sinal de que o sossego vai acabar

MARISA FOLGATO

O japonês Tsuneyuki Totake, de 78 anos, pensou ter encontrado o paraíso há 20 anos num sítio de 8.400 metros quadrados em Botujuru, São Bernardo. Há meses, ganhou um marco de cimento com placa de metal da Dersa grudado ao lado das dálias da mulher, Irene, bem onde passará o Rodoanel. "Podiam tirar tudo, menos o jardim que ela ama", diz a nora, Tereza.

"Tem de fazer a estrada, mas precisava ser aqui, neste sossego?", diz Totake. "Fico olhando os tucanos e pensando que vai vir um monte de carro e, junto, favelas e mais gente."

Pela estaca colocada no quintal, na beira da Represa Billings, em Santo André, o Rodoanel vai pegar em cheio a casa da auxiliar de escritório Daniela França de Souza, de 25 anos, há 13 no mesmo endereço, na Favela Pintassilgo. "Faz tempo que ouço, mas não acredito", diz a mãe, Vera Lúcia dos Santos Gomes, de 50. "Fico pensando onde vou achar um terrenão desses, casa espaçosa e horta."

Mesma pergunta se faz o advogado e piloto aposentado da Vasp Durval Magalhães, de 78 anos. Depois de morar a vida inteira no Jardim Paulista, rendeu-se há seis anos aos encantos do sítio em Parelheiros, zona sul da capital: nascente, lago, mata atlântica, casa baixa e esparramada num terreno de 26.350 m2. "Ainda não acredito que o Rodoanel vai passar aqui. Mas estou preparado para a pancada." As estacas na entrada e dentro do sítio não deixam dúvidas. "Mudar não é problema, conheço o mundo, tenho do Pólo Sul ao Pólo Norte para morar. Mas, aos 78 anos, não dá mais tempo para brigar." M.F.

No verde, perdas e ganhos
Dersa promete preservar 3.600 hectares; ecologistas estão de olho

MARISA FOLGATO

As obras do trecho sul do Rodoanel vão suprimir 297 hectares de áreas verdes em regiões sensíveis para o abastecimento de água, como as Represas Billings e Guarapiranga. A Dersa garante, porém, que o retorno será de cinco vezes essa área com a incorporação de 3.500 hectares, prevista como contrapartida da obra. Segundo a empresa, na construção do trecho oeste, que teve custo de R$ 1,6 bilhão, foram destinados R$ 280 milhões para mitigações e R$ 9,6 milhões para compensações ambientais. "No trecho sul, estimado em R$ 2,65 bilhões, esse investimento subiu para cerca de R$ 610 milhões e R$ 51 milhões, respectivamente", informou a Dersa.

Para evitar ocupações no extremo sul da capital, a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente fechou um acordo com o Estado como compensação pela obra. Segundo o secretário Eduardo Jorge, serão quatro unidades de conservação ligadas por um parque linear de até 300 metros de largura, ao longo de onde o trecho sul cruza a cidade, na região de Parelheiros. "Está em discussão a possibilidade de essa proposta ser estendida para todos os 57 quilômetros, se os outros municípios se interessarem", afirmou a procuradora da República Ana Cristina Bandeira Lins.

"Parelheiros é uma área ainda rural, fonte de água, importante para a estabilização climática. Precisava ser preservada", diz Eduardo Jorge. Segundo ele, a proposta inicial era de apenas dois parques, com um total de 600 hectares. "Queríamos 1.900, mas chegamos a um acordo significativo para a cidade, com 1.200 e quatro unidades de conservação: Jaceguava, Itaim, Varginha e Bororé."

O secretário diz que as unidades serão entregues cercadas, com plano de manejo e desapropriadas. A Prefeitura só terá de administrar. "Mas é importante ainda o parque linear, que vai dar uma continuidade biológica de mata, possibilitar o trânsito de fauna e, principalmente, impedir o avanço da ocupação."

Na várzea do Rio Embu-Mirim, vão ser criados também parques, na altura do Embu e de Itapecerica da Serra. Nesses dois pontos, as pistas do Rodoanel, que no resto do trajeto correm paralelas, vão abrir, abraçando os parques. Para o prefeito do Embu, Geraldo Cruz (PT), isso vai ajudar na recuperação dessas áreas, que sofreram processo de degradação.

'OMBUDSMAN'

A coordenadora do Programa de Mananciais do Instituto Socioambiental (ISA), Marussia Whately, diz que a principal reivindicação dos ambientalistas é a criação de um conselho gestor, com representantes da sociedade civil, para acompanhar a construção passo a passo e garantir o cumprimento de acordos. "É uma obra de grande porte e longa duração (pelo menos quatro anos), numa área imprescindível para o abastecimento de milhões de pessoas. Gestões podem mudar nesse período, e quem vai zelar por esses acordos? O conselho seria o ombudsman do Rodoanel."

Marussia diz que é preciso antecipar as compensações para evitar invasões em áreas que sejam desmatadas. "Precisamos conhecer o cronograma." Outra preocupação é com os acessos. "Eles estão previstos só na ligação com as Rodovias Anchieta e Imigrantes e em Mauá. Mas a pressão por mais é grande. A fiscalização é indispensável."

Sobre o risco de o Rodoanel comprometer a captação de água da Sabesp, em especial na Represa Billings, onde passa bem próximo, a Dersa negou qualquer problema. Segundo a empresa, na Represa Guarapiranga, que abastece 4,5 milhões de pessoas, a distância até o Rodoanel é de 13 quilômetros. No braço Taquacetuba, é de 7 km e na Barragem da Anchieta, de 2,5 km. Ele ficava mais próximo, mas o traçado mudou, a pedido da Sabesp. Haverá ainda um sistema de drenagem para evitar acidentes com cargas perigosas. Será feito por tubulação, que lançará a água retirada da pista para fora da área dos mananciais.

O processo de licenciamento ambiental do trecho sul levou quase cinco anos. Há 112 itens a serem cumpridos antes da liberação da licença de instalação que permite o início da obra. Também é preciso zerar todas as pendências do oeste. Segundo a procuradora Ana Cristina, os prazos estão sendo cumpridos.

Indenizados voltam para as margens do trecho oeste

MARISA FOLGATO

A indução da ocupação é uma das maiores apreensões de ambientalistas quando o assunto é Rodoanel. Preocupação reforçada por casos como o de Zildete Alves Maciel, de 46 anos. Em 2000, ela teve de desocupar seu barraco na Favela Vista Alegre, em Embu, por causa da obra do trecho oeste do anel viário, inaugurado em 2002. Ganhou uma casa de dois cômodos e banheiro num conjunto construído pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) em Osasco. "Mas fiquei só um mês e meio. Meu filho ficou doente. Não me acostumei nem com a cidade nem com o aperto."

Zildete vendeu a casa por R$ 15 mil e, como muitos vizinhos, voltou ao Vista Alegre. "Construí minha casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, bem grande. Falta acabar, mas é melhor." Uma chacrinha com bananeiras, pés de café, milho, horta, galinhas, patos, gansos e uma torre de transmissão no terreno, cortado por um córrego. Está 100% onde não deveria: em área de proteção de mananciais. "Mas eu me preocupo, não deixo ninguém ocupar."

Mesmo assim, queixa-se da falta de passarela. "Tava no mapa, mas não saiu. Todo mundo atravessa na pista o Rodoanel e já houve atropelamentos", diz.

Neuma Aragão, de 36 anos, também voltou. Alugou o apartamento da Dersa por R$ 250,00, espichou a casa da mãe na favela. "Só fiquei em Osasco uns cinco meses. Mas era contramão e não conseguia pagar as despesas que nunca tive, como água, luz e IPTU." Andréia da Silva diz que retornou porque só recebeu R$ 3 mil de indenização da Dersa. "Não dava para ir para outro lugar."

A baiana Evani Moura da Costa já pertence a uma nova onda de ocupação. Chegou há um ano. Pagou R$ 3 mil por dois lotes. "O vendedor avisou que não tinha documentação."

Segundo a Dersa, na época de construção do trecho oeste, 2.796 famílias viviam em favelas e loteamentos clandestinos. Desse total, 1.707 escolheram a indenização e 1.089, o reassentamento. A Dersa informou que, após a entrega das moradias, sua responsabilidade é manter desimpedida a faixa de domínio, onde está o Rodoanel: o que ocorre fora dessa faixa é responsabilidade das prefeituras e a ocupação irregular não pode ser traduzida como uma indução provocada pelo anel.

OESP, Metrópole, 19/03/2006, p. C1, C3-C4

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