VOLTAR

Políticas para saúde indígena: história e desafios

Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos - www.gaspargarcia.org.br
02 de Jul de 2013

O marco oficial do cuidado com a saúde dos povos indígenas enquanto política pública inicia-se com a criação do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) em 1910. Dentro de uma política indigenista oficial que começava a se esboçar de modo a pacificar os índios para integrá-los na sociedade nacional, a assistência à saúde desses povos baseava-se no modelo médico curativo. Pelas frentes de expansão nacionais os povos indígenas tiveram parte de sua redução sociodemográfica ligada aos índices de mortalidade ocasionados pela enorme variedade de enfermidades bacterianas e virais antes estranhas às suas barreiras imunológicas.

Em que pese à finalidade da política indigenista, a assistência à saúde dos povos indígenas oscilava tanto em sua proposta curativa quanto em sua organização administrativa e gerencial. Ora a sua implementação se dava pelo Ministério da Saúde, através da Funasa (Fundação Nacional da Saúde), ora pelo Ministério da Justiça, através da Funai (Fundação Nacional do Índio), ora por ambos. Só muito recentemente as ações de atenção à saúde dos povos indígenas consolidaram-se numa política nacional praticada por um único ministério, que é o Ministério da Saúde, e numa secretaria própria, a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).

A década de 1990 cercou-se de contribuições importantes para a política de assistência à saúde dos povos indígenas. Fruto da 8ª Conferência Nacional de Saúde e da Constituição Federal de 1988, aquela década foi marcada por uma série de mecanismos participativos e garantidores de metodologias que asseguravam os direitos constitucionais como princípio fundamental para se pensar a política de saúde dos povos indígenas. Ainda que na confusão gerencial Funai/Funasa, criou-se os DSEIs (Distritos Sanitários Especiais Indígenas) que intentava fazer a diferenciação da atenção pela delimitação de regiões funcionais e territoriais, e em 1999 foi aprovada a Lei Arouca (Lei 9.836 de 23 de setembro de 1999), que consolidou o DSEI e o implantou como um subsistema de atenção diferenciada do SUS (Sistema Único de Saúde).

Um pouco mais adiante, em 31 de janeiro de 2002, é aprovada pela portaria do Ministério da Saúde no 254 a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena. O propósito de tal política foi o de garantir a atenção integral à saúde dos povos indígenas de acordo com os princípios e diretrizes do SUS, atentando para que, na área da saúde, fosse reconhecido, garantido e respeitado os modos próprios que cada povo concebe a relação no processo entre saúde-doença.

A Política delineia conceitos e a organização da atenção à saúde indígena. Define DSEI "como modelo de organização de serviços - orientado para um espaço etno-cultural dinâmico, geográfico, populacional e administrativo bem delimitado, que contempla um conjunto de atividades técnicas, visando medidas racionalizadas e qualificadas de atenção à saúde, promovendo a reordenação da rede de saúde e das práticas sanitárias e desenvolvendo atividades administrativo-gerenciais necessárias à prestação da assistência, com controle social". E concebe sistemas de saúde indígenas como "baseados em uma abordagem holística de saúde, cujo princípio é a harmonia de indivíduos, famílias e comunidades com o universo que os rodeia. As práticas de cura respondem a uma lógica interna de cada comunidade indígena e são o produto de sua relação particular com o mundo espiritual e os seres do ambiente em que vivem". Essas práticas e concepções são, geralmente, recursos de saúde de eficácias empíricas e simbólicas, de acordo com a definição mais recente de saúde da Organização Mundial de Saúde. Portanto, a melhoria do estado de saúde dos povos indígenas não ocorre pela simples transferência para eles de conhecimentos e tecnologias da biomedicina, considerando-os como receptores passivos, despossuídos de saberes e práticas ligadas ao processo saúde-doença.

Quanto à organização, ainda de acordo com a Política:

"cada distrito organizará uma rede de serviços de atenção básica dentro das áreas indígenas, integrada e hierarquizada com complexidade crescente e articulada com a rede do SUS. As Comissões Intergestores Bipartites são importantes espaços de articulação para o eficaz funcionamento dos distritos. As equipes de saúde dos distritos deverão ser compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos auxiliares de enfermagem e agentes indígenas de saúde, contando com a participação sistemática de antropólogos, educadores, engenheiros sanitaristas e outros especialistas e técnicos considerados necessários. (...) Na organização dos serviços de saúde, as comunidades terão uma outra instância de atendimento, que serão os Pólos-Base. Os pólos são a primeira referência para os agentes indígenas de saúde que atuam nas aldeias. Podem estar localizados numa comunidade indígena ou num município de referência. (...) Com o objetivo de garantir o acesso à atenção de média e alta complexidade, deverão ser definidos procedimentos de referência, contra-referência e incentivo a unidades de saúde pela oferta de serviços diferenciados com influência sobre o processo de recuperação e cura dos pacientes indígenas (como os relativos a restrições/prescrições alimentares, acompanhamento por parentes e/ou intérprete, visita de terapeutas tradicionais, instalação de redes, entre outros) quando considerado necessários pelos próprios usuários e negociados com o prestador de serviços. Deverão ser oferecidos, ainda, serviços prestados pelas Casas de Saúde Indígenas localizadas em municípios de referência dos distritos a partir da readequação das Casas do Índio. (...) as Casas deverão ser adequadas para promover atividades de educação em saúde, produção artesanal, lazer e demais atividades para os acompanhantes e mesmo para os pacientes em condições para o exercício dessas atividades". (Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena, 2002)

O território brasileiro é dividido por 34 DSEIs. O estado de São Paulo é cortado por dois distritos, o DSEI Litoral Sul, com seis Pólos-Base e uma Casa de Saúde Indígena, e o DSEI Interior Sul com um Pólo-Base e uma Casa de Saúde Indígena. A cidade de São Paulo está localizada no DSEI Litoral Sul e atende 1.875 famílias, na sua maioria famílias guarani.

Já o impasse da organização administrativa e gerencial da atenção à saúde indígena somente foi resolvido em 19 de novembro de 2010 com a lei 12.314 na qual se estabeleceu que as ações de atenção básica a saúde da população indígena deixariam de ser feitas pela Funasa e passariam a ser executadas diretamente pelo Ministério da Saúde, por meio da Sesai.

Desafios
O desafio da Política de Saúde para os povos indígenas é estabelecer o diálogo entre sistemas terapêuticos diferentes, a biomedicina ocidental e a tantas medicinas tradicionais dos povos indígenas. Os Guarani Mbya que estão nas aldeias Tekoa Pyau e Tekoa Ytu, situadas próximas ao Pico do Jaraguá, na zona norte de São Paulo, fazem esse diálogo de um modo muito objetivo, classificando a doença e a cura em dois tipos: a doença do branco (chamado de "Juruá"), que só o branco tem a sabedoria e a tecnologia para a cura; e a doença do Guarani, própria deles e que só eles possuem a sabedoria e os meios de cura. A identificação da doença, contudo, é de competência exclusiva do pajé (Xeramoi).

Quando necessitam da biomedicina recorrem à UBS (Unidade Básica de Saúde) Aldeia Jaraguá Kwaray Djekupe, localizada na aldeia Tekoa Ytu. Do contrário as curas acontecem na Casa de Reza (Opy´i) e/ou na troca de saberes e ervas entre os Guarani. Enquanto um subsistema do SUS, a UBS possui uma equipe ESFI (Estratégia da Saúde da Família Indígena) que raramente completa seu quadro de profissionais devido a alta rotatividade dos técnicos e especialistas de saúde, e nessa dificuldade do diálogo da volta dos "juruá", os Guarani apontam para a compreensão que fazem do estado da saúde guarani naquelas aldeias.

Apesar do ESFI da unidade de atenção indígena das aldeias próximas ao Pico do Jaraguá possuir agentes de saúde indígenas na equipe, a língua ainda é um fator inibidor do diálogo entre esses diferentes modos terapêuticos. Muitos dos Guarani, principalmente as mulheres e os velhos, não falam o português e muito dos entendimentos sobre o "sentir" depende da tradução feita pelo agente de saúde indígena, em um processo que por vezes pode perder o seu significado.

Abaixo, um comentário do cacique guarani Sr. Ari sobre doenças que acometem os indígenas hoje:

"Antigamente (...) lá na aldeia (referindo-se à infância no litoral) não existia índio com problema de coração, não existia índio com problema de diabete, não existia índio obeso, porque a alimentação era diferente lá, eu tinha isso até hoje, eu e minha mulher. E lá qualquer remédio do mato resolvia problema. O que está estragando com a nossa saúde é a alimentação, eu tenho experiência, estou falando isso porque eu vivi lá, eu não nasci na cidade, nasci no mato mesmo. É diferente, a gente vê que é diferente, a gente pesca lá, pega um peixe vivo ali, vai lá e assa ele, tinha óleo de bicho, um pedaço de carne de porco-do-mato, tem a paca que é uma carne especial que até branco de fora gosta. (...) café: nós tínhamos café plantado, mas tinha açúcar? Não, nós comia era banana verde bem madurinha, que solta aquele suco bem doce, então a gente assava ela na brasa e tomava café com aquilo. Poxa vida, tava sentindo falta daquilo."

http://www.gaspargarcia.org.br/noticia/pol%C3%ADticas-para-sa%C3%BAde-i…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.